Um dos mais conhecidos fenômenos dos anos 1990 mas nem sempre corretamente percebido ou criticamente analisado foi a aceleração dos processos de integração regional, sugerindo-se que o mundo do pós-Guerra Fria seria organizado em torno de blocos comerciais e econômicos. Superado o conflito bipolar, o fortalecimento do entorno asiático, chinês e japonês, somado à evolução da União Européia (UE) e à criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul), parecia indicar que a alternativa regional se fortalecia como meio de inserção mundial e progresso interno. Nesse contexto, mesmo países como os Estados Unidos, que nunca haviam demonstrado um interesse específico nessas políticas, apresentaram propostas de integração em seu hemisfério, começando pela Iniciativa das Américas (IA); depois o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), formalizando a interdependência pré-existente entre esse país, o Canadá e o México; até a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que visa abranger todo o continente.
Diante desses processos, muitos foram os que indicaram o início de uma nova era de prosperidade, sustentada nesses blocos, mas, principalmente, no fortalecimento das parceiras globais através desses novos atores. A despeito das implicações políticas e estratégicas que teriam tais acordos, essas discussões eram relegadas a um plano secundário à medida que o viés econômico, comercial e financeiro ganhava destaque, sendo percebido como motor de um crescimento e riqueza inevitáveis. Tais promessas eram particularmente disseminadas no continente americano, no qual os países menores percebiam a possibilidade de um acordo com os Estados Unidos como uma chance de recuperação doméstica e incremento de participação no sistema internacional. Porém, passada mais de uma década da eclosão da nova onda regionalista (a primeira fora nos anos 1950, com o nascimento da construção européia), poucos foram ainda os resultados reais em direção à prosperidade ou até na constituição dos acordos propostos.
Ainda que fatos positivos possam ser percebidos com a expansão da UE ao Leste Europeu, outros arranjos encontram-se em compasso de espera, em especial nas Américas. No caso da Alca, por exemplo, seu cronograma inicial pressupunha o encerramento das negociações até 2005, prevendo-se o seu funcionamento de imediato nesse ano. Em 2004, os indicadores sugerem que isso talvez não ocorra, por uma combinação de problemas políticos, econômicos e estratégicos. Todavia, os atrasos da Alca e as promessas que a cercam não devem nos impedir de refletir sobre esse desafio de forma direcionada. Porém, poucas são as obras de referência que, atualmente, cobrem todas essas dimensões, enfatizando somente um ou outro aspecto dessas preocupações.
Preenchendo essa lacuna, coloca-se como fundamental, o lançamento do livro Free Trade For The Americas? The United States’ Push for the FTAA Agreement, editado por Paulo Vizentini e Marianne Wiesebron. O livro é resultado de um seminário realizado em 2002 na Holanda, patrocinado pelo Clingendael Institute of International Relations, e conta com a colaboração de especialistas de diversos continentes, como Ásia, Europa e Américas, que participaram diretamente do evento ou, posteriormente, com o envio de suas colaborações. Tais especialistas pertencem a vários setores de atuação, sendo desde acadêmicos nas áreas de relações internacionais, política, economia e história até diplomatas envolvidos diretamente nos processos de negociação. Os artigos analisam os processos de integração nas Américas, seus efeitos intra- e extra-regionais, cobrindo desde questões financeiro-comerciais até as implicações político-estratégicas desses processos. Igualmente, é aberto espaço para a discussão de temas da agenda social, como questões trabalhistas e educacionais.
Para isso, o livro é dividido em quatro partes. Na Parte I, denominada Questões Estratégicas, Paulo Vizentini, Dorval Brunelle e Marc Lee, abordam em seus textos as razões que impulsionaram o início das negociações regionais nas Américas, assim como algumas de suas implicações iniciais. Os trabalhos demonstram a evolução e consolidação das propostas norte-americanas do Nafta à Alca e de que maneira a América Latina em geral e atores particulares, como Brasil, México e Canadá, foram afetados por essas propostas e quais foram suas respostas a esses desenvolvimentos. Como mencionamos inicialmente, até os anos 1990 os Estados Unidos não demonstravam interesse aberto pela integração regional, postura que mudou consideravelmente no pós-Guerra Fria, dadas as dificuldades que a superpotência passou a encontrar para o exercício de sua hegemonia. A integração regional é parte da reforma da agenda norte-americana em sua zona de influência hemisférica, assim como de sua projeção de poder global.
Contextualizada essa realidade norte e latino-americana, o livro passa a discutir em sua Parte II – Alca: Estruturas e Procedimentos – de que forma esses eventos têm sido administrados e as negociações encaminhadas. Temas da agenda de negociações, como governança e democracia, relações entre setor público e privado, tensões local e regional, democracia, transparência e participação da sociedade civil, são abordados nos artigos de Michel Duquette & Maxime Rondeau e Marianne L. Wiesebron & Jorge Witker.
Logo na seqüência, a Parte III avança na discussão destes e dos temas estratégicos já levantados na Parte I, analisando especificamente os seus efeitos sobre a América do Sul e, mais diretamente, sobre o Brasil. Essa parte – Implicações para América do Sul – é composta pelas avaliações de Jan Von Rompay e de Samuel Pinheiro Guimarães, embaixador brasileiro, cuja experiência prática no Itamaraty e nas negociações da Alca permite uma visão interna dos processos. Também é analisada a forma como Estados Unidos e Brasil – que possuem projetos de integração regional concorrentes e são os dois Estados-núcleo das negociações hemisféricas – têm administrado esses arranjos e o relacionamento bilateral. Ambos possuem liderança em suas regiões (apesar das elevadas assimetrias que os separam), assim como relações internacionais de cunho global e multilateral, havendo tanto cooperação quanto disputa em sua interação por maior influência, autonomia e poder.
Por fim, o livro é fechado com uma análise das conseqüências abrangentes da Alca. A Parte IV, deve-se destacar, é uma das mais interessantes do livro, à medida que traz contribuições pouco lidas no país. Dentre essas, cabe mencionar as de Yang Zerui e Mitsuhiro Kagami, expressando respectivamente o ponto de vista chinês e japonês diante de acordos de integração regional e da Alca mais detalhadamente. Apesar de ter enfrentado turbulências econômicas no final da década de 1990, a Ásia ainda apresenta um dinamismo estratégico e comercial que merece atenção. Kurt W. Radtke também aborda a Alca do ponto de vista da China e do Japão. Completando essas reflexões, Pitou van Dijck analisa a relação entre as negociações da Alca e o futuro do sistema multilateral de comércio, enquanto Willy J Stevens avalia a dinâmica de competição e complementaridade entre a Alca e a UE.
A amplitude das discussões do livro é resultado natural da dimensão da Alca, demonstrando a perspectiva ressaltada pelos autores: a Alca e o livre comércio patrocinado pelos norte-americanos são iniciativas que fazem parte de uma estrutura abrangente de ação política, econômica e estratégica dos Estados Unidos no pós-Guerra Fria, com efeitos amplos sobre as relações internacionais globais e não apenas uma iniciativa comercial. Assim, como se pode perceber, trata-se de um trabalho diferenciado que, dentro da grande variedade de temas levantados, apresenta uma elevada consistência em suas colaborações, compondo um todo equilibrado de artigos enxutos, críticos e analíticos. A abrangência e diversidade das temáticas, além disso, incentiva o leitor a questionar, escapando do senso comum. Afinal, como a própria interrogação do título indica, para que possamos encontrar respostas é preciso, primeiro, que estejamos dispostos a fazer perguntas.
Resenhista
Cristina Soreanu Pecequilo
Referências desta Resenha
VIZENTINI, Paulo; WIESEBRON, Marianne (Eds.). Free Trade For The Americas? The United States’ Push for the FTAA Agreement. London & New York: Zed Books, 2004. Resenha de: PECEQUILO, Cristina Soreanu. Revista Brasileira de Política Internacional, v.47, n.1, 2004. Acessar publicação original [DR]
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