Grado Giovanni Merlo deu a seu último livro um título simples e eficaz: Irmão Francisco- Frate Francisco. 2 Duplamente eficaz pela atração imediata; por um lado, por ser um santo familiar a todos (realmente patrono da Itália desde 1939) e, por outro, pelo atual papa (eleito em 13 de março de 2013) que, pela primeira vez na história da Igreja, tomou o nome de Francisco. Tratam-se de duas figuras distantes, distintas, mas coligadas por mais do que uma linha comum, por um fio brilhante de prata: duas figuras que não cessam de surpreender, atrair e fazer pensar. Para além da inevitável atração, o título deste livro não é nem São Francisco e nem Papa Francisco (dos quais agora se encontram muitos exemplares nas livrarias), mas o menos habitual Irmão Francisco- Frate Francisco, segundo uma das múltiplas intuições do Autor espalhadas fecundamente nestas páginas. Se “São Francisco” torna-se de modo consciente e programático “Irmão Francisco“, significa que este livro captura, sacode e desvia para outros lugares as nossas expectativas introduzindo-nos em um mundo novo e diferente.
Antes de percorrer os aspectos mais fecundos e frutíferos deste “novo mundo”, gostaria de fazer algumas considerações de tipo temporal e quantitativo, incomuns e pouco ortodoxas, – e espero, não irreverentes, – para um livro de história. Como o Autor escreve na rica e prudente introdução – que, como sempre nos livros de Grado Giovanni Merlo, não deve ser dispensada – “este livro chega ao final de três décadas de pesquisa franciscana“.3 Cinco volumes em 30 anos, um volume a cada seis anos. Os títulos dos quatro anteriores são Entre eremitério e cidade – Tra eremo e città; Sobre o Irmão Francisco- Intorno a frate Francesco; Em nome de São Francisco: história dos Frades Menores e do franciscanismo até inícios do século XVI – Nel nome di san Francesco. Storia dei frati Minori e del francescanesimo sino agli inizi del XVI; e Sobre o Franciscano e o minoritismo – Intorno a francescanesimo e minoritismo. 4 O primeiro livro remonta a 1991 e, novamente, na introdução de Irmão Francisco – Frate Francisco, o Autor retorna ao seu primeiro estudo sobre Francisco de Assis de 1984.5 De fato, a publicação do primeiro ensaio sobre o franciscanismo – Pluralidade das experiências penitenciais no Piemonte do século XIV – Pluralità di esperienze penitenziali nel Piemonte del secolo XIV – é de 1980.6 São, portanto, trinta e três anos, em uma estimativa conservadora se pensarmos que as pesquisas e a elaboração do texto, nos levam, ao menos, ao ano anterior. A partir desses cálculos, Irmão Francisco- Frate Francesco representaria o trabalho de mais de trinta anos de pesquisa e, como escreve o Autor, “é inevitável que muito do que é encontrado nos quatro volumes recordados se reapresenta em forma renovada“.7 A isso deve-se acrescentar que, desde 1994, o Autor é presidente da Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos/ Società internazionale di studi francescani, a instituição mais importante para a investigação científica sobre Francisco e o franciscanismo.8
Encontramo-nos frente a estudos clássicos, produção de riqueza vertiginosa, contendo grandes temas e conceitos fortes, mas ao mesmo tempo novos, como se uma longa fermentação fosse agora oferecida sob a forma destilada. O referido destilado se concentra em 182 páginas, incluindo índices, que considerados como o produto de 33 anos de pesquisa e estudo são cerca de seis anos de trabalho por página. É um dado que faz refletir – e, para mim, francamente intimidador – porque não significa que cada página foi escrita em cinco anos (como facilmente poderiam argumentar os detratores da inércia acadêmicauniversitária), mas que ao peso líquido de cada página singular deve ser adicionada a tara do tempo adquirindo, assim, um peso total elevado. Todos sabemos – ou imaginamos – que estudar o passado é também uma questão de tempo, tempo bastante longo. Nestes termos, alguém poderia também replicar que é uma inútil perda de tempo, como fazem aqueles que não entendem – ou não querem entender – o valor do passado no fortalecimento do cotidiano do presente.
Continuamos na avaliação do peso específico deste livro. Se pesarmos Irmão Francisco- Frate Francesco constatamos que 182 páginas correspondem a menos de duas libras ou 192 gramas. Uma vez que o preço do livro é 15 euros, resulta que cada página vale 12 centavos: seis anos de elaborações e sínteses são estimados em 12 centavos. Estas considerações desoladoras aumentam o desânimo se pensarmos que um vinho antigo com mais de 30 anos de envelhecimento – pense no Barolo, no Barbaresco e no Brunello di Montalcino – com valores de custo que variam de 100 a 3000 Euros (se ele passar pelo processo de ricolmatura9 como no caso do Brunello Biondi e Santi). O valor dos produtos de qualidade “made in Italy” não podem ser comparados com o produto da pesquisa “made in Italy”. A
té agora tivemos um pouco de diversão com os paradoxos – não obstante serem muito graves – sobre pesos e preços dos Dzprodutosdz italianos aplicando uma lógica comercial italiana, que para alguns deve ser mesmo gerencial, e com as observações lógicas sobre a ilogicidade da gestão do patrimônio italiano compreendido em um sentido mais amplo, porque, entre outras coisas, como se exporta o vinho italiano se exporta um santo italiano – que agora faz parte do patrimônio religioso e cultural mundial, embora nós tendamos a ignorá-lo – e se exporta também um livro sobre aquele santo: Em nome de São Francisco: história dos Frades Menores e do franciscanismo até inícios do século XVI – Nel nome di san Francesco. Storia dei frati Minori e del francescanesimo sino agli inizi del XVI secolo, de 2003, que foi traduzido para o português brasileiro e o espanhol em 2005, para o francês em 2006, para o esloveno em 2007 e para o inglês em 2009.10 É evidente o interesse da historiografia franciscana brasileira por este manual, visto que a sua tradução foi publicada muito rapidamente (em apenas dois anos!).11 Espero que estas considerações, aparentemente excêntricas, induzam o olhar para este “pequeno livro” de uma forma diferente: as dimensões começam a ampliar-se sempre mais e uma resenha, inevitavelmente sintética, deve ser substituída por uma leitura lenta e uma escuta concentrada no livro.
O livro é dividido em cinco capítulos: A conversão religiosa de Francisco/ La conversione religiosa di Francesco, Um exemplo evangélico para homens e mulheres/ Un esempio evangelico per uomini e donne, Normalidade institucional de uma Ordem e a loucura cristã de um indivíduo/ Normalità istituzionale di un Ordine e pazzia cristiana di un individuo, A “grande tentação” e os estigmas/ La Dzgrande tentazionedz e le stimmate e, por fim, De Irmão Francisco a São Francisco/ Da frate Francesco a san Francesco. Precede uma introdução e acompanha As metamorfoses de São Francisco/ Le metamorfosi di san Francesco, ou seja, as conclusões nas quais o Autor mostra os múltiplos Francisco de Assis coabitando em um só nome e, finalmente, uma Nota bibliografica que, segundo um hábito agora consolidado do Autor, é um percurso pelos estudos e trabalhos relevantes, contextualizados historiograficamente. Merece ser destacado o valor dado às conclusões temáticas e à bibliografia fundamentada. Para um olhar mais atento, faltaria apenas uma cronologia que permitiria ao leitor menos conhecedor do franciscanismo medieval orientar-se temporalmente entre fatos vizinhos e distantes. A ausência se justifica pela finalidade do livro que não é um manual, como o muito mais amplo Em Nome de São Francisco: história dos Frades Menores e do franciscanismo até inícios do século XVI / Nel nome di san Francesco. Storia dei frati Minori e del francescanesimo sino agli inizi del XVI secolo (com 521 páginas e equipado com uma cronologia final de 22 páginas),12 mas uma pesquisa sobre o “Francisco histórico”: Irmão Francisco – Frate Francisco, de fato, e não Em nome da São Francisco, ou seja, as transformações e metamorfoses que atuaram sobre irmão Francisco, mas em nome de São Francisco.
Entendemos que este não é um instant book, um livro de ocasião sobre um tema da atualidade, ainda que a eleição do Papa Francisco sem dúvida o instou. Posso testemunhar sobre uma proposta editorial que data de 15 anos atrás, em Bolonha, em um restaurante em frente a um prato de espaguete com molho de carne e, em seguida, de um contrato enviado que permaneceu em uma gaveta do escritório junto a Universidade de Milão por muitos anos à espera de uma assinatura. O presente solicitou a realização em ritmo acelerado de um trabalho a respeito do passado e de um homem do passado (Irmão Francisco) pode ajudar a entender um homem do presente (Papa Francisco), mas sem renunciar a permanecer um livro sobre o passado, embora a conclusão – que também deve ser lida como a introdução – represente uma forte ancoragem na realidade atual por meio da análise das metamorfoses de São Francisco, que se movem a partir do franciscanismo de fins do século XIV perdurando até nós hoje, que se há tentado definir como “poligenético, literário e compiladodz.13
Detenhamo-nos agora sobre alguns elementos inovadores, permanências e em conceitos fortes. Vamos voltar para o título que expõe o refletor com energética clareza de São Francisco para irmão Francisco, porque desde a canonização de 1228, “o santo projeta as próprias características sobre o frade” 14 e o transforma nas permanentes metamorfoses de São Francisco. Nestas páginas é palpitante a grande aventura – que durou mais de 30 anos – da descoberta do sujeito “Irmão Francisco” em detrimento do protagonismo objetivo de “São Francisco”.15 Como isso acontece? Através do uso de uma nova hierarquia e relevância dada às fontes, que privilegiam os escritos de Francisco em relação às legendas sobre Francisco.16 A historiografia franciscana – e de modo particular o Autor – tem insistido muito sobre o uso adequado das preposições de/sobre e, especialmente, sobre o papel central e a beleza vital do Testamento de Francisco: um escrito fascinante que, para alguns de nossos estudantes, foi feito para ser memorizado e recitado até fazer circular no nosso sangue as palavras finais do santo de Assis, tornando-se parte integrante de nós. Lendo este livro, também aprendemos que “Francisco amava escrever.”17 Suas palavras foram transmitidas em curtos pergaminhos (preservados em Assis e Espoleto), que contribuem para esclarecer quem foi Francisco o que o torna ainda mais excepcional do que os mirabolantes lugares comuns, fabulosos e enganadores. Não por acaso, este livro contém na conclusão uma declaração de uma carta de Francisco, na qual as palavras do Senhor são definidas como perfumadas.
Um dos principais problemas dos estudiosos do franciscanismo é a subtração dos dados hagiográficos para obter o simples dado biográfico. A esta questão foi dedicada um parágrafo especial (O árduo delineamento de dados biográficos/ L’ardua delineazione dei dati biografici) que se desata entre “fontes franciscanas”. Se para entender quem era e o que queria irmão Francisco devemos recorrer aos seus escritos, para saber como ele se apresentava – ou qual era o seu retrato – nós temos o testemunho de um hagiógrafo, Tomás de Celano, que assim o descreve:
Meão de estatura, mais baixo que alto, cabeça regular e redonda, rosto um tanto comprido e saliente, testa plana e pequena, olhos regulares, negros e límpidos, cabelo escuro, sobrancelhas retilíneas, nariz equilibrado e afilado, orelhas sobressaídas mas pequenas, têmporas achatadas, língua pacificadora, ardente e penetrante, voz vibrante e doce, clara e sonora; dentes compactos, alinhados e brancos; lábios pequenos e finos; barba negra e rala, pescoço esguio, ombros direitos, braços curtos, mãos finas, dedos compridos, unhas acaneladas; pernas delgadas, pés pequenos, pele fina e enxuto de carnes. Vestia rudemente, dormia muito pouco e era extremamente generoso.18
Pode-se abrir uma questão adicional sobre a relação do santo com a iconografia e um grande capítulo sobre as metamorfoses artísticas de São Francisco. Um homem normal “sem nada em particular“, escreve o Autor, que em outro lugar havia salientado outro aspecto do Irmão Francisco: sua “dureza”. Irmão Francisco é um homem de aparência normal e de dureza surpreendente.
Eu conheci primeiro este Francisco, o homem do Testamento e da dureza, e fui nutrida lendo em 1991 Sobre o Irmão Francisco. Quatro Estudos/ Intorno a frate Francesco. Quattro studi, no qual encontrei algumas das páginas mais belas – no meu modo de ver- escritas pelo Autor e que são retomadas no capítulo A “grande tentação” e os estigmas/ La «grande tentazione» e le stigmate. Fiquei fascinada pela união de termos tais como tentação e estigmas, aparentemente inconciliáveis, e pela coragem por escolher a clareza: a clareza dos contrastes que me recordava os fragmentos de luz dos quadros de Caravaggio na Igreja de San Luís dos Franceses em Roma. Fragmentos de luz de cores inesperadas iluminavam o delicado contexto da estigmatização (presumivelmente ocorrida em 14 de setembro de 1224) e de outros fortes contrastes – antes, de “tensões dramáticas, incompreensões globais” 19 – entre o irmão Francisco e a sua Ordem. Fiquei fascinada também com o termo letitia, verdadeiro e próprio termo guia de uma investigação ao centro da experiência religiosa de Francisco. No breve – e belíssimo – De vera letitia (A verdadeira alegria/La vera letizia), em uma estratigrafia de leitura, de modo equivocadamente contrastante se confrontado à lógica humana e mundana em uma análise que – em meu pensar – permite recolher os delicados e clarificantes mecanismos evangelico-interpretativos. E mais: é nesta passagem e em um contexto dramático que Francisco se auto define irmão. «La vera letizia» escreve o Autor “não é o registro das coisas que realmente aconteceram, mas sim uma narrativa fictícia que tem como objetivo destacar os problemas, ao invés de relatar fatos: problemas reais que assaltavam a Ordem dos Frades Menores”.20 Vale a pena reproduzir este texto na íntegra:
Um dia o bem-aventurado Francisco chamou Frei leão em Santa Maria dos Anjos e disse: “Frei leão, escreve”. O qual respondeu: DzEis, estou prontodz. DzEscreve – disse – qual é a verdadeira alegria. Vem um mensageiro e diz que todos os mestres de Paris vieram para a Ordem, escreve: não é a verdadeira alegria. Também que todos os prelados ultramontanos, arcebispos e bispos; também que o rei da França e o rei da Inglaterra: escreve, não é a verdadeira alegria. Também, que os meus frades foram aos infiéis e converteram-nos todos à fé; também que tenho tamanha graça de Deus que curo doentes e faço muitos milagres: eu te digo que em tudo isso não há verdadeira alegria. Mas qual é a verdadeira alegria? Volto de Perusa e de noite profunda venho aqui e é tempo de inverno, barrento e tão frio, que se formam bolinhas de água fria congelada na barra da túnica e me batem sempre nas pernas, e corre o sangue dessas feridas. E todo no barro, no frio e no gelo, chego à porta, e depois que bati e chamei longamente, vem um frade e pergunta: Quem é? Eu respondo: Frei Francisco. E ele diz: Vá: não é hora decente de andar; não entrarás. E, insistindo de novo, ele responda: Vá; tu és um simples e idiota; agora não vens a nós; nós somos tantos e tais que não precisamos de ti. E eu estou de novo à porta e digo: Pelo amor de Deus, recolhei-me esta noite. E ele responda: Não o farei. Vá à casa dos Crucíferos e peça lá. Eu te digo que se eu tiver paciência e não me abalar, que nisto está a verdadeira alegria e a verdadeira virtude e salvação da alma.21
Nesta passagem os valores mundanos (o ingresso na Ordem dos mestres de Paris, dos prelados ultramontanos, dos arcebispos e bispos e também dos reis da França e da Inglaterra ou a conversão dos infiéis ou a cura dos doentes ou – ainda mais – a operação de milagresȌ não representam a “vera letizia”. A reinterpretação do cristianismo é reduzida ao tanto simples quanto inatingível seguimento de Cristo (sequela Christi) por meio da reação alegre, ou seja, com “a verdadeira alegria“, da aceitação da vontade de Deus, mas também através da ação do homem: assim como daqueles que, na extrema necessidade, ousam responder “nós somos tantos e tais que não precisamos de ti!” No momento em que a intuição religiosa do irmão Francisco se faz instituição se verifica uma separação entre o “cristianismo subordinativo” (a “boa nova” de Jesus Cristo) e o “cristianismo dominativo” (da instituição eclesiástica) que conduz, para usar uma comparação ousada do Autor, a “institucionalização da “Boa Nova” de Jesus Cristo”.22 Conceitos sociológicos complexos emergem de uma realidade por nada pacificada.
A letitia é um indício de desconforto que remete à “grande tentação” presente no Speculum Perfectionis na qual irmão Francisco se encontra em um estado de profundo sofrimento interior, devido ao qual “não podia mostrar a sua habitual alegria” 23 em que Francisco entristecido e dolorido “chega a um acordo consigo mesmo”;24 em que o homem Francisco, deste modo profundamente humano, é protagonista e não um arquétipo, não uma metáfora, não um personagem “de mil faces e da grandíssima eficácia imaginativa, mas sem qualquer consistência história“;25 em que a lógica humana – aqui definida como “lógica dominativa” – não toma procedência sobre a lógica da encarnação divina: superada a “grande tentação”, poderíamos dizer que Francisco se encarna na Cruz. O conceito de “lógica dominativa” se insere nas mais recentes reflexões sobre a Ordem reunidas em Sobre o Franciscano e o minoritismo – Intorno a francescanesimo e minoritismo de 2010, no qual um “minoritismo dominativo” leva a melhor sobre um “franciscanismo subordinativo” na transição da intuição do Irmão Francisco para a instituição. A natureza do franciscanismo do irmão Francisco é subordinativa, aquela do minoritismo da Ordem dos Frades Menores é dominativa: uma distinção que não pode ser atribuída ao irmão Francisco, mas que permite compreender a fundo uma vivência religiosa e humana que resulta sempre coerente com ela mesma – e com a sequela Christi – apesar de sua afirmação em uma lógica institucional. Daí a ambiguidade de um Francisco considerado “herético” – uma escolha nunca feita pelo Poverello de Assis – que na realidade é uma pura lógica extrema da Cruz. Uma passagem da Regra Bulada de 1223 ajuda a compreender esta adesão indiscutível:
Para isso imponho por obediência aos ministros que peçam ao senhor papa um dos cardeais da santa Igreja Romana que seja governador, protetor e corretor desta fraternidade, para que sempre súditos e sujeitos aos pés da mesma santa Igreja, estáveis na fé (cfr. 1Col 1,23) católica, observemos a pobreza e humildade e o santo evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, que prometemos firmemente.26
Nenhuma tentação herética, nenhum afastamento da Igreja, ou melhor: uma obbedienza (obediência) que é o pedido explícito de um cardeal protettore (protetor) e correttore (corretor) para serem “sudditi e sottomessi” ditos e sujeitos). A presença de um cardeal protetor não está em contraste com a escolha subordinativa dos frades, e da Ordem, mas são condições necessárias para a plena realização de tal subordinação. Nesta passagem emerge uma outra das características do irmão Francisco que o Autor identificou há tempos (em particular na análise do Testamento): o irmão Francisco não desdenha o uso de verbos fortemente assertivos – aqui ordino (imponho) – aparentemente estranho à sua imagem já estabelecida.
A separação entre a logica humana e logica mundana se encontra também em outro episódio no qual o amor de Francisco pelo escrito, colocado em realce pelo Autor, se contrapõe à destruição dos textos hagiográficos que foram considerados como prescritos no Capítulo Geral de Pisa de 1266, que assim sancionou o “inevitável domínio” cultural da Legenda maior, escrita em 1263, por Boaventura da Bagnoregio, ministro geral e primeiro cardeal da Ordem.27 Um episódio gravíssimo e devastador – que lembra muitas outras e mais dramáticas “queimas de livros” – e que retorna em uma lógica toda humana de eliminação das provas do passado e da manipulação dos indivíduos – santos (e não só) – funcionais para um projeto. Com esta referência estamos circularmente retornando ao início, à introdução, de modo orgânico ao texto para reapresentar o antecedente historiográfico-documentário para uma compreensão consciente das 182 páginas deste livro e que fornece os instrumentos para uma democracia da leitura em que quem lê tem direito, assim como o dever, de compreender, para refletir e escolher: escolher qual Francisco, entre os tantos, prefere. Voltamos ao ponto de partida de uma leitura empenhada durante a qual você pode saborear um bom copo de vinho envelhecido em barris de madeira: em outras palavras, um copo de vinho perfumado para lembrar a bela – e como sempre sugestiva – maneira que o Irmão Francisco define as palavras do Senhor.
Notas
2 Nota dos tradutores: Optamos por traduzir os títulos para o português, mas manter ao lado a forma em italiano.
3 MERLO, Grado G. Frate Francesco. Bologna: Il Mulino, 2013. p. 18.
4 MERLO, Grado G. Tra eremo e città. Studi su Francesco d’Assisi e sul francescanesimo Medievale. Assisi: Edizioni Porziuncola, 1991; ___. Intorno a frate Francesco. Quattro studi. Milano: Edizioni Biblioteca Francescana, 1993; ___. Nel nome di san Francesco. Storia dei frati Minori e del francescanesimo sino agli inizi del XVI secolo. EFR-Editrici francescane, Padova, 2003; ___. Intorno a francescanesimo e minoritismo. Milano, Edizioni Biblioteca Francescana, 2010.
5 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 18.
6 MERLO, Grado G. Pluralità di esperienze penitenziali nel Piemonte del secolo XIV. In: D’Alatri, Mariano (coord.). Il movimento francescano della penitenza nella società medievale. CONVEGNO DI STUDI FRANCESCANI, 3. Padova, 1979. Atti … Roma: Istituto storico dei Cappuccini, 1980. p. 159- 171.
7 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 18.
8 A Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos/Società internazionale di studi francescani (www.sisf-assisi.it), com sede em Assis, promove desde 1973 uma conferência anual sobre a temática franciscana, além de anualmente promover um “seminário de formação da história religiosa e estudos franciscanos”, que conta com historiadores italianos mais sensíveis a questões de história religiosa. Este ano, por ocasião do 30º aniversário dos seminários de formação, será realizada a conferência Estudos Franciscanos: perspectivas de investigação (Assis, 4 e 5 julho de 2015).
9 Nota dos tradutores: ricolmatura é uma técnica usada pelos produtores de vinho que consiste em retirar parte do vinho antigo das garrafas em maturação e acrescentar um pouco do novo.
10 MERLO, Grado G., Nel nome di san Francesco. Storia dei frati Minori e del francescanesimo sino agli inizi del XVI secolo. Padova: Editrici Francescane, 2003; ___. Em nome de São Francisco. História dos Frades Menores e do franciscanismo até inícios do século XVI. Petropolis: Vozes, 2005; ___. El el nombre de Francisco de Asís. Historia de los hermanos Menores y del franciscanismo hasta los comienzos del siglo XVI. Oñati: Arantzazu, 2005; ___. Au nom de saint François. Histoire des Frères mineurs et du franciscanisme jusqu’au début du XVIe siècle. Paris: Les Éditions du Cerf – Les Éditions franciscaines, 2006; ___. V imenu svetega Frančiška. Zgodovina manjših bratov in frančiškanstva do začetka ͳ. Stoletja. Ljubljana: Brat Fančišek, 2007; ___. In the name of Saint Francis. History of the friars minor and franciscanism until the early Sixteenth century. NY: Franciscan Institute Publications, 2009.
11 Esta prevista uma próxima publicação de Grado Giovanni Merlo no dossiê Franciscanos e franciscanismos no Brasil e no mundo, na revista Territórios & Fronteiras, em 2016.
12 MERLO, Grado G, Nel nome di san Francesco… Op. Cit., p. 479-501.
13 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 156.
14 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 10.
15 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 13.
16 Sobre este aspecto da história franciscana, ver os estudos reunidos em MICOLLI, Giovanni (org.). Francesco d’Assisi: realtà e memoria di un’esperienza cristiana. Turim: Einaudi, 1991. Sobre o início da aventura religiosa, ver os estudos ainda úteis reunidos em BARTLOLI, Langeli; PRINZIVALLI E. (org.) Francesco d’Assisi e il primo secolo di storia francescana. Turim: Einaudi, 1997.
17 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 11. Sobre esta questão, ver BARTOLI, Langeli A. Gli autografi di frate Francesco e frate Leone. Turnhout: Brepols, 2000.
18 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 33. Nota dos tradutores: A tradução aqui trancrita provém da edição da Vida Primeira 83, 7-10 elaborada por Frei José David Antunes, OFM, e disponível em http://www.editorialfranciscana.org/files/5707_1Celano_(1C)_4af850265f034.pdf . Acesso em 25/06/2015.
19 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 107.
20 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 107.
21 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 106-107. Nota dos tradutores: A tradução aqui transcrita provém da edição Centro Franciscano de Espiritualidade de Piracicaba, disponível em http://centrofranciscano.capuchinhossp.org.br/ . Acesso em 25/06/2015.
22 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 166.
23 Ibid., p. 111.
24 Ibid., p. 109.
25 Ibid., p. 162.
26 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 131. Nota dos tradutores: A tradução aqui trancrita provém da edição Centro Franciscano de Espiritualidade de Piracicaba, disponível em http://centrofranciscano.capuchinhossp.org.br/ . Acesso em 25/06/2015.
27 MERLO, Grado G. Frate Francesco… Op. Cit., p. 14.
Resenhista
Marina Benedetti – Universidade Estadual de Milão. E-mail: marinabenedetti@unimi.it
Referências desta Resenha
MERLO, Grado Giovanni. Frate Francesco. Bologna: Il Mulino, 2013. Resenha de: BENEDETTI, Marina. Algumas palavras sobre irmão Francisco de Assis e sobre um pequeno/grande livro. Tradução resenha: SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; CAMACHO, Victor Mariano. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.243-253, 2015. Acessar publicação original [DR]
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