Em 2020, o historiador e ambientalista Donald Worster publicou texto sobre a pandemia (covid-19) que irrompera no final do ano anterior e que continua devastando o mundo. Em seu texto, Worster (2020) chamava a atenção para o silêncio deixado nas cidades pelo afastamento da população dos possíveis caminhos capazes de cruzar com o tão temido coronavírus SARS-Cov-2, e que estava a se propagar de continente a continente, alcançando novas vítimas. Agora, a causa do silêncio não mais seria o pesticida DDT, como alertado por Rachel Carson em 1962 em seu livro Silent spring, mas um inimigo silencioso, não humano, que chegava desequilibrando a ordem social mundial. Como em outros surtos epidêmicos e pandêmicos, são os animais silvestres e seus patógenos apontados como os grandes vilões da história, e, assim como ocorreu com o Sars ou Ebola, a falta de certeza científica sobre o verdadeiro reservatório é compensada por representações sistemáticas e generalizadas de poucos animais selecionados; no caso, os morcegos, como “bandidos” epidemiológicos (Lynteris, 2019).
É na busca pela elucidação do enquadramento dos animais não humanos como vilões epidêmicos que o médico e antropólogo Christos Lynteris organizou e editou o livro Framing animals as epidemic villains: histories of non-human disease vectors. Parte da série Medicine and Biomedical Sciences in Modern History fundada pelo historiador John Pickstone e reeditada por Carsten Timmermann e Michael Worboys, da Universidade de Manchester, Grã-Bretanha, o livro é composto por nove capítulos que contam com a contribuição de historiadores e antropólogos europeus e brasileiros, com discussões sobre animais hospedeiros e vetores não humanos de doenças. Identificados ao longo dos dos séculos como os vilões responsáveis pelos surtos epidêmicos com grande impacto na sociedade, os ratos envolvidos na transmissão e manutenção do bacilo da peste em Suffolk, Inglaterra, os cães na transmissão da raiva, a marmota siberiana como reservatório do bacilo da peste e insetos dípteros – os mosquitos –, identificados e temidos como os grandes responsáveis por doenças como ebola, zika, dengue, febre amarela, malária, entre outras, são os temas apresentados no livro. As representações visuais como ferramenta para o entendimento científico dos reservatórios e vetores das doenças infecciosas também ganham destaque nos capítulos escritos por Sayer, Lynteris e Meerwijk. Esses trabalhos evidenciam como a representação visual desempenhou um papel fundamental na percepção dos agentes infecciosos causadores de epidemias com os estudos sobre ratos, marmotas e mosquitos. Muitas vezes a identificação de um protagonista epidêmico não humano como o rato, exemplificado no trabalho de Sayer, leva ao abandono pela busca de outras espécies possivelmente envolvidas na propagação da doença e também a ignorar a complexidade ecológica existente na persistência, transmissão e circulação de patógenos entre diferentes espécies em qualquer ecossistema.
A descoberta dos animais vetores de doenças no século XIX levou a olhar esses animais como flagelos do mundo natural e do bem-estar humano. Identificar e combater os vetores e parasitas visando a sua eliminação e à erradicação das doenças por eles transmitidas mobilizaram esforços globais ao longo do século XX, sem sucesso, e, com o surgimento de novas zoonoses epidêmicas no século XXI, o enquadramento dos animais não humanos como vilões epidêmicos foi consolidado.
Na realidade, porém, são os humanos, por meio de seus hábitos culturais e de comportamento, que estão no centro de quase todos os surtos e epidemias que afetam a sua própria espécie, e não os animais não humanos, como apontado por Laurie Garrett (1999) no final do século XX. Nos estudos sobre as diferentes zoonoses fica evidente que são os humanos os impulsionadores de eventos de transbordamento (spillover) que levam um vírus a passar de uma população animal não humana para as pessoas. Os animais não humanos são os hospedeiros naturais e originais desses vírus, sem que estes os afetem ou causem enfermidade. O entendimento dos animais não humanos como os grandes causadores de doenças continua levando a ações de cunho militarizado, utilizadas desde o século XX e ensejam desejos, lutas e debates políticos muito diferentes. Muitas vezes a representação de um inimigo global favorece ações governamentais de poder e dominação como mostrado nos trabalhos sobre zika, dengue e febre amarela.
Como apontado por Lynteris, enquadrar animais específicos como vilões epidêmicos é ideológica e biopoliticamente indispensável, mesmo quando a culpa do “vilão” em questão carece de evidência científica conclusiva. As análises trazidas pelos autores nos capítulos que compõem o livro reforçam o sentido de que, apesar das estratégias e dos esforços atuais das ações de saúde pública em utilizar o conceito de “saúde única” (one health) – que une o cuidado humano, animal e do meio ambiente, de forma conjunta – para a garantia do bem-estar das populações, a imagem e a vida social de animais não humanos como vilões epidêmicos é uma parte constitutiva da epidemiologia moderna e da saúde pública como aparatos de gestão estatal e capitalista (Lynteris, 2019).
Esse não é um livro simplesmente sobre histórias de eventos epidêmicos envolvendo vetores e reservatórios de doenças. Ele é inovador em sua abordagem dos não humanos como atores em suas narrativas. Todos os artigos trazem novos e importantes olhares para a compreensão de como os animais não humanos foram, e ainda são, importantes atores e vítimas da cultura humana, socialmente construídos, pensados, testados e utilizados em ações de saúde pública que abarcavam interesses políticos, coloniais, econômicos e de dominação e poder. Como nos lembra Donald Worster (2020), “assumir a responsabilidade por nosso papel na criação de epidemias exige a absolvição de agentes não humanos”. Estudos multiespécies e sobre o Antropoceno têm trazido novas perspectivas no entendimento do papel e da interação do homem com a biosfera. Os olhares sobre os não humanos abrem novas perspectiva de entendimento e releituras sobre o entrelaçamento da espécie humana com os demais componentes da rede da vida. Essa é uma obra de interesse multidisciplinar tanto para historiadores ambientais, da medicina e das ciências, da saúde global, como para antropólogos e epidemiologistas.
Referências
GARRETT, Laurie. Amplification. In: DeSalle, Rob (ed.). Epidemic! The world of infectious disease New York: The American Museum of Natural History; The New Press, 1999. p.193-196.
LYNTERIS, Christos (ed). Framing animals as epidemic villains: histories of non-human disease vectors [S.l.]: Palgrave Macmillan, 2019.
WORSTER, Donald. Outra primavera silenciosa. In: Sá, Dominichi M. de et al. (ed.). Diário da pandemia: o olhar dos historiadores São Paulo: Hucitec, 2020. p.78-90.
Resenhista
Magali Romero Sá – Vice-diretora de Pesquisa, Educação e Divulgação Científica, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Rio de Janeiro – RJ – Brasil orcid.org/0000-0002-5830-2525 E-mail: magalirsa@gmail.com
Referências desta Resenha
LYNTERIS, Christos (Ed). Framing animals as epidemic villains: histories of non-human disease vectors. [S.l.]: Palgrave Macmillan, 2019. Resenha de: SÁ, Magali Romero. Epidemias e animais não humanos: uma abordagem histórica e antropológica. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro. v.28, supl., dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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