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Fragmentos do porvir | V. da Silva

Impossível dissociar o crescimento dos estudos em torno da decolonialidade dentro das Universidades públicas da demanda colocada pelas estudantes, um perfil substancialmente alterado ao longo de 14 anos de petismo e 10 anos de lei das cotas. É comum ouvir outras colegas de profissão afirmarem que começaram a ler sobre raça, gênero e sexualidade, após as estudantes apresentarem algum texto. Quando esse movimento acontece, pesquisadoras com mais de 40 anos de trajetória acadêmica estabelecem um primeiro contato com um grupo de autoras, com as quais as estudantes possuem íntima proximidade. Enquanto as professoras engatinham nas questões e precisam se empenhar durante algumas madrugadas insones para compor a ementa de uma disciplina, as estudantes parecem absorver o conteúdo de maneira intuitiva. A leitura de Fragmentos do porvir, do jovem artista, escritor e professor, Vinícius da Silva, foi um desses abalos no meu, ouso dizer, também jovem, percurso de 10 anos de pesquisa voltada para a história e a teoria da arte.

Essa experiência indica que o interesse em sala de aula é melhor desenvolvido quando as leituras instituem pontos de contato com a vida. E, se a filosofia é o campo disciplinar que trabalha com conceitos, como transmutar em ação os seus pressupostos que parecem tão A afastados da matéria que dá forma à nossa prática cotidiana? O livro de Vinícius, sem a pretensão de encontrar uma resposta para esse incômodo que enfatiza o recorrente sentimento de esgotamento do campo das humanidades, é formado principalmente por conversas, reestabelecendo o campo de força das relações. O que dá sentido às aulas, ao debate acadêmico e à Universidade são as suas estudantes, categoria que à princípio parece passiva, diante da conformação disciplinar que coloca a professora no ponto visível da sala de aula, enquanto as alunas são dispostas homogeneamente em carteiras enfileiradas. Em Fragmentos do porvir, temos o encontro de um grupo de pessoas que marcaram o autor em diferentes momentos da elaboração de uma pesquisa em torno do amor na obra da escritora e ativista estadunidense bell hooks.

Vinícius nos apresenta o exercício filosófico como conversação através da reunião de nomes como Wanderson Flor do Nascimento, Helena Vieira, Luana Luna, Matheus Chagas e Andressa Dutra. Essa multiplicidade de vozes estruturam o tom do livro em um grupo de fragmentos que não convergem para um centro, pois todas as questões são jogadas coletivamente em uma explosão que abre diversos caminhos. Nos momentos em que Vinícius assina sozinho como acontece na “Introdução” e na seção “Políticas do amor e sociedades do amanhã”, somos convocadas a pensar com ele como se estivéssemos escrevendo o livro juntas. Vinícius se comunica na primeira pessoa do plural, o nós, indicando que ele fala em companhia do grupo de professoras convidadas, de bell hooks, da gente.

Vale salientar que é um livro erudito, sem o ranço de nicho acadêmico que a palavra geralmente evoca. As autoras Judith Butler e bell hooks, as principais intercessoras teóricas das conversas, são apresentadas entre os formatos de podcast e ensaio acadêmico, em uma época que temos tanta dificuldade de pausar as nossas agendas e nos dedicarmos ao ritual geralmente intimista da escrita e da leitura. Posta essa dificuldade, por que não fazer do exercício do pensamento algo que acontece no meio da multidão? Esse modo de produção é muito próximo às mulheres acadêmicas, que, de antemão, sabem que as suas folhas de trabalho sempre vão estar sujas de café, e, no caso das mães, de baba de criança. Em “Vivendo de amor”, bell hooks também racializa essa dupla-jornada entre o escritório e o cuidado doméstico, para nos indicar a solidão que é “vencer na vida” quando a sobrevivência não é um direito, mas um luxo que deve ser conquistado mediante um esforço que comumente brutaliza e adoece.

O amor seguindo essa lógica é secundário e a potência do ensaio de bell hooks, assim como do livro de Vinícius, é colocar o amor como uma ação que possui uma aplicabilidade política e transformadora quando nós nos descobrimos amáveis e capazes de amar. Portanto, ser amante e amado vira pré-requisito para podermos nos engajar na construção do tempo porvir. Para as pessoas que não habitam o mundo da norma, o conceito enlatado de amor romântico é sistematicamente negado por só parecer aplicável dentro do núcleo do casal branco, heterossexual, monogâmico, cisgênero e cristão. Todos os outros modelos de organização familiar nos são anunciados como fadados ao fracasso por miséria ou por doença, assim como as outras relações amorosas como as existentes nos laços de amizade são preteridas por serem consideradas transitórias ou menores. Existe, portanto, uma dificuldade de imaginar a militante negra e lgbtqia+ como um indivíduo sociável, alegre e capaz do festejo. É como se para aquela que se revolta contra uma sociedade que a nega, só restasse o manicômio, o cemitério ou a solidão.

Se na rotina diária não existe espaço para a materialização do amor, Vinícius, na esteira do pensamento de bell hooks, nos aponta que devemos usar a imaginação. Quando bell hooks, a partir da apresentação de casos da literatura, ilustra situações em que crianças negras, além de sofrerem a violência do racismo estrutural oriundo da herança escravocrata, também são ensinadas a responder aos seus sentimentos de frustração com a truculência passada de pais para filhos como práxis educativa, ela faz um convite para a conceitualização dessa dor. E, ao apresentar um caso no qual a personagem conhece o amor e o respeito, ela também usa a ficção como abertura para a multiplicação dos possíveis. Somos convidados ao exercício de identificar todos os processos em que o amor foi colocado em segundo plano, para podermos imaginar novos modos de vida. Seguindo essa premissa, podemos começar a falar de futuro. Ou seja, as coisas não devem ser simplesmente como são, pois a partir da criação de imagens mentais de novos mundos podemos quebrar o ciclo vicioso de homogeneidade da norma para podermos, mais uma vez, acreditar que existe futuro. A imaginação é o motor para apostar todas as fichas de que é sim possível mudar as coisas. A dor não é esquecida ou as diferenças apagadas, mas somos convidadas a visualizar um horizonte em que a vida pode ser uma A construção baseada na possibilidade de possuir em si tudo o que é necessário para causar amor.

Perceber que existe o desamor aponta que a desconstrução da norma envolve a desnaturalização de certos privilégios que são evidenciados mais nas ausências do que nos aparecimentos. Mesmo engajada no estudo da Teoria Feminista desde o ano de 2019, fui interpelada pelo questionamento das minhas estudantes que reivindicavam a presença de artistas mulheres no grupo de imagens que apresentava durante as nossas aulas de Arte Moderna — disciplina que, hoje, Vinícius faz comigo na EBA/UFRJ, reforçando nosso diálogo, um diálogo educador-estudante sem hierarquias. Era o meu primeiro semestre como professora substituta e, ao seguir o roteiro colocado pelo principal autor da bibliografia, sem nem ao menos perceber, não inseri o nome de mulheres nas minhas apresentações. De primeira, é comum nos confortarmos com o pensamento de que essa lacuna na nossa formação “é por conta do período estudado”, ou de que “talvez as mulheres só estivessem produzindo obras menos importantes devido à falta de encomendas oficiais”.

Essa indagação, ao ser encarada com seriedade após uma recusa de simplesmente deixá-la de lado, expandiu a minha biblioteca e modificou a minha prática em sala de aula, pois precisei procurar novas leituras e me aventurar para fora daquilo que estava dado nas ementas programáticas das disciplinas. Isso que vemos como “um trabalho artístico menor”, devido à ausência de posicionamento sobre as principais turbulências políticas, noções de anatomia ou virtuosismo formal, envolve também uma noção de gosto, que nos ensinou a desvalorizar as atividades do cuidado, que eu tanto observo na ternura presente nos rostos das crianças retratadas por mulheres do final do século XIX. Aqueles elementos que antes eram utilizados para enfatizar uma falta devido ao uso da métrica da régua do cânone ocidental, agora vemos como um rico material para falarmos sobre representatividade e maternagem.

Não se trata de buscar respostas ou de entregar uma receita que apaziguará todas as demandas das alunas e das professoras, mas de tensionar sentidos que sustentem os nossos encontros e os nossos estudos. O “nós” de Vinícius faz parte de uma escrita que rompe com as binaridades, que nos indicam o sujeito e o objeto ou o Eu e o Outro, e que estruturam as dinâmicas hierárquicas que, desde o séc. XVI, justificam uma série de políticas de extermínio que marcam a nossa realidade colonial. Portanto, elaborar um livro ou uma aula no ponto de encontro entre eu e você(s), além de promover a valorização de todas as vozes, engendra uma ação política baseada na certeza de que todas as pessoas merecem ser consideradas vidas amáveis em um sentido pleno.


Referências

BUTLER, J. “Introdução: Vida precária, vida passível de luto”. In: Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto?. Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha; revisão de tradução de Marina Vargas; revisão técnica de Carla Rodrigues. – 6° edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

DA SILVA, V. Fragmentos do porvir (Coleção X, coordenação de Rafael Haddock-Lobo). Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2022.

HOOKS, b. Vivendo de amor. In: WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maísa; WHITE, Evelyn, C. (orgs.). O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Trad. Maisa Mendonça, Marilena Agostini e Maria Cecília MacDowell. Rio de Janeiro: Pallas – Criola, p. 188-198, 2000.


Resenhista

Paula Amparo – Professora substituta no Departamento de História e Teoria da Arte da EBA/UFRJ, editora responsável pela Revista Garrafa e doutoranda em Teoria Literária na linha de pesquisa Linguagens, arte e pensamento do PPGCL/UFRJ (bolsista CNPq), onde desenvolve pesquisa multidisciplinar em torno da filosofia, da literatura e das artes visuais. E-mail: paulacgamparo@gmail.com  https://orcid.org/0000-0001-9704-1447


Referências desta Resenha

DA SILVA, V. Fragmentos do porvir. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2022. Coleção X, coordenação de Rafael Haddock-Lobo. Resenha de: AMPARO, Paula. Entre a biblioteca e a sala de aula, uma resenha do livro Fragmentos do Porvir de Vinícius da Silva. Abatirá – Revista de Ciências Humanas e Linguagens. Eunápolis, v.3, n.5, p. 648-652, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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