Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia – RIBAS (ARF)

RIBAS, Thiago Fortes. Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia. Curitiba: Editora da UFPR, 2014. Resenha de: BALTAZAR, Tiago Hercílio. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.12, jul./dez. 2014.

Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia se desenrola na antecâmara daquilo que conhecemos como o projeto arqueológico de Foucault. Thiago Fortes Ribas investiga o início do percurso teórico do filósofo francês, no momento em que suas estratégias se realinham em torno de um alvo (não mais uma forma determinada do conhecimento científico, mas a própria positividade de uma ciência) e também o momento da formulação de uma crítica extra-científica. Enquanto este objeto e o tipo de crítica histórico-arqueológica que Foucault elabora através dele, já são velhos conhecidos na literatura sobre o assunto, a empresa de Ribas recua um passo para tratar da própria constituição deste objeto e deste tipo de crítica na démarche do futuro arqueólogo. Se os textos pré-arqueológicos nos pareciam dispersos sob uma frágil unidade temática, saberemos agora que eles guardam uma decisiva transformação na relação do próprio Foucault com a verdade. “Numa palavra, pretendemos mostrar que a constituição do projeto de uma arqueologia do saber dependeu de uma mutação decisiva no modo como Foucault pensou a questão da verdade em sua relação com a psicologia, a psiquiatria e a loucura” (RIBAS, 2014, p. 16).

O primeiro capítulo, buscando contextualizar a primeira obra arqueológica de Foucault e discutir a supressão de seu prefácio original, parece apenas situar a questão da relação de Foucault com os saberes da radical “psi” em História da loucura. Mas na realidade ele já desloca o lugar da “reviravolta” no pensamento de Foucault. De fato, a literatura estabeleceu, entre o prefácio original suprimido de História da loucura (1961) e sua segunda versão (1972), uma importante modificação no pensamento de Foucault, muito discutida quanto a um possível prejuízo ontológico que se poderia apontar na crítica arqueológica da loucura. Mas é verdade que tal injunção é feita à luz dos próprios desenvolvimentos arqueológicos posteriores, que “evitariam” tal prejuízo e, por outro lado, trata somente daquilo que já é a arqueologia desde a primeira edição de História da loucura. É desse emaranhado que Ribas consegue escapar, trabalhando uma diferença mais decisiva para o projeto arqueológico de Foucault, situada entre o polêmico prefácio de 1961 e textos que datam dos anos 1950.

A referida mutação será então diretamente analisada no segundo capítulo, e com um nível de detalhamento que certamente satisfaz aos leitores em seus anseios por minúcias. Nesse momento, o foco do estudo recai sobre as diferenças teóricas entre dois textos que o autor seleciona para comparação: Doença mental e personalidade e Doença mental e psicologia. Escrito em 1954, e reescrito em 1962 com o segundo título, os dois textos permitem a engenhosa estratégia de Ribas para flagrar as modificações na relação de Foucault com a psicologia. Na realidade, poderíamos tomar a liberdade de dizer que se trata de apenas um texto em duas cenas, e entre elas uma transmutação de significados que iluminaria assim o nascimento de um grande problema filosófico.

Em sua primeira versão, lê-se na introdução que a raiz da patologia mental deve estar numa reflexão sobre o próprio homem. Eis a pista que nosso autor persegue, como uma “adulteração” em sua versão de1962, onde se diz que a raiz da patologia mental pode ser procurada numa certa relação, historicamente situada, entre o homem e o homem louco e o homem verdadeiro. Estes são vestígios que entregariam os motivos do filósofo francês:

aqui, somente essa mudança já nos mostra que a preocupação do autor é radicalmente outra. Não mais fundacionista, no sentido de fundar a investigação numa antropologia, agora a investigação quer procurar a raiz histórica da patologia mental. Ao invés de propor uma verdadeira psicologia, quer compreender como se construiu historicamente um discurso verdadeiro chamado psicologia. (RIBAS, 2014, p. 57).

Ao cabo de uma análise comparativa que se estende por todo o segundo capítulo, torna-se claro que o “projeto de fundação da psicologia” que Foucault lançava em 1954, equivaleria a um pensamento que acreditava na objetividade da ciência psicológica uma vezliberta de certos postulados equivocados (Cf. RIBAS, 2014, p. 57). Na sua reescritura, este rigor será substituído por um novo sentido: não mais a conquista de sua cientificidade, mas a posição de que sua própria positividade enquanto ‘ciência’ depende de condições históricas de existência. Trata-se aí de um rigor que, quando levado ao limite, compromete o estatuto de cientificidade e objetividade da própria verdade da medicina mental. (RIBAS, 2014, p. 58).

Tratar esta modificação como mera reformulação teórica seria perder de vista o essencial, isto é, o início de uma crítica de inspiração nietzschiana que faz aparecer o funcionamento de uma ciência no interior de um sistema de condições históricas. Contra a leitura de Pierre Macherey, para quem, até 1962, Foucault não colocaria em questão o pressuposto de uma natureza humana – incluindo História da loucura – Ribas nos faz vislumbrar o que seria uma aquisição básica no percurso teórico de Foucault, e com a qual este “se servirá até o fim dos seus escritos, e que alimentará a constante revisão de seus métodos” (RIBAS, 2014, p. 86).

Acercando-se mais das grandes teses de História da loucura, A pesquisa científica e a psicologia (1957) permite precisar um pouco mais a relação entre verdade e psicologia fora do seu aspecto científico-epistemológico. Despontam neste texto formas de interrogação – que reconhecemos prontamente como um traço foucaultiano – na direção das práticas que revelem o modo de funcionamento da ciência psicológica, através de suas instituições e de tudo aquilo que colabora para a produção do seu reconhecimento em nossa sociedade.

Vê-se que no artigo A pesquisa científica e a psicologia a verdade sobre a psicologia é de outra espécie. Ela já não diz mais respeito aos verdadeiros pilares de uma ciência, mas ao seu estatuto, ao seu funcionamento. A verdade que se busca sobre a psicologia também não virá mais de uma construção metodológica melhor apurada, mas há de vir, entretanto, da análise dos métodos utilizados para engendrar sua ‘cientificidade’. Nesse momento da reflexão foucaultiana, o estatuto da psicologia nada tem a ver com sua natureza estritamente epistemológica, mas, diversamente, aquilo que poderá revelar seu modo de funcionamento são as suas práticas. Desse modo, aquilo de que se tratará na interrogação da pesquisa psicológica são as suas instituições, suas formas cotidianas e as dispersões de seus trabalhos. Em poucas palavras, a verdade que se quer definir agora só será revelada através de uma análise histórica desses três pontos levantados, uma análise que se concentre no problema de como a psicologia chega à condição de ‘ciência’ ao lado de outras ciências, de como ela chega a tal reconhecimento atual em nossa sociedade. (RIBAS, 2014, p. 95-6).

Além deste passo decisivo na formulação de uma crítica extra científica, A pesquisa científica e a psicologia e outro texto do mesmo ano, A psicologia de 1850 a 1950, registram o aparecimento de mais uma hipótese fecunda na construção do projeto arqueológico: a hipótese segundo a qual a positividade da psicologia tem como condição de possibilidade uma experiência do negativo. Enquanto outras ciências mantêm uma relação provisória com o negativo, digamos, como limites ou dificuldades a serem superadas, “aquilo que distingue a psicologia é a relação vital que ela tem com o negativo, a ponto de não poder ser compreendida senão através dele.” (RIBAS, 2014, p. 108). Vemos que nestes dois artigos dos anos 1957, segundo a interpretação de Ribas, a psicanálise não gozaria de nenhum poder transgressor, pois, indiferentemente de qualquer outra pesquisa em psicologia, a psicanálise daria continuidade à escolha de toda psicologia.

“Se na análise da pesquisa freudiana fica evidente o papel do negativo na construção da verdade do homem, fica manifesta também a sua opção por continuar tal construção, ou seja, sua escolha em perpetuar o ‘mito da positividade’ em que a psicologia hoje ‘vive’ e ‘morre’. Desse modo, Freud afastou ainda mais a psicologia da compreensão de seu próprio sentido enquanto saber, pesquisa e prática” (RIBAS, 2014, p. 110).

Esta perspectiva foucaultiana sobre a psicanálise, como sabemos, se modificará na arqueologia da loucura, sob a consideração de uma nova abordagem interpretativa (e uma nova concepção de signo) que ela inaugura, e que desloca a linguagem da loucura para um tipo de interdição em que a linguagem não refere mais a um significado oculto, mas fica condenada a dizer apenas a si mesma e o código que permite decifrá-la1. Ainda que a tarefa da psicanálise seja malograda pelo fato de que a articulação transferencial repouse numa estrutura em torno da qual se constituem relações de dependência médico-paciente – em que um médico não busca fundamentalmente conhecer, mas dominar a loucura e alienar o paciente, apoiado em seus poderes e prestígios – a psicanálise ainda assim representará, em 1961, uma determinada ruptura em relação à psiquiatria e à psicologia, na medida em que sua abordagem abriria uma possibilidade de diálogo com a desrazão clássica.

Esse realinhamento na órbita em torno da qual gravitam os saberes da radical psi, ligado ao nascimento da arqueologia e implicando uma modificação importante na perspectiva de Foucault em relação à psicanálise, não é abordada no livro de Ribas.2 Sua argumentação, todavia, neste ponto consiste em apresentar a tese foucaultiana da profunda relação da psicologia com a negatividade, tese esta que, perpassando esses escritos de 1957 até a História da loucura, consistirá num elemento determinante para nos dar a ver uma perspectiva propriamente arqueológica sobre esses saberes.

Vê-se, portanto, que não se trata simplesmente de uma modificação na relação de Foucault com a psicologia, mas na sua relação com a verdade, o que implica um deslocamento no lugar que a psicologia ocupa no interior da investigação de Foucault. De objeto de uma “ambição teórica reformuladora”, a psicologia torna-se objeto de uma problematização que a ultrapassa em direção a um problema filosófico muito mais amplo. (Cf. RIBAS, 2014, p. 113). Qual é este problema filosófico, que não cabe mais ser colocado em termos epistemológicos, intimamente ligado a uma transformação na relação de Foucault com a verdade e que “constitui a condição de possibilidade do próprio projeto arqueológico.” (RIBAS, 2014, p. 18)?

Ele pode ser dito de muitos modos. Porém, creio que um dos pontos fortes do livro de Ribas – ainda que sejam apenas apontamentos para um “estudo futuro” – consiste em aborda-lo a partir das implicações políticas do pensamento arqueológico de Foucault. Estamos já na conclusão do livro, na qual se problematiza a interpretação tradicional da arqueologia como uma descrição despolitizada dos “frios blocos de saber”. O argumento consiste em mostrar como insustentáveis as afirmações de que a passagem para a política, na obra de Foucault, se daria apenas com a genealogia, isto é, a partir de uma volta para as instituições e práticas sociais no intuito de transformá-las.

É possível encontrar em Foucault elementos para formular outra concepção a respeito da ação política ou da dimensão política do pensamento.

Tal ação ou dimensão não precisa estar voltada para a transformação de algo fora do pensamento, como as instituições sociais, porque é o próprio pensamento que é o campo de batalha. Como ele mesmo afirma, ‘a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática’. Na medida em que para Foucault a política é entendida como luta de forças que não tem na verdade seu regimento, então tampouco se compreende porque seria necessário restringir a tarefa política do intelectual ao âmbito de transformação das instituições sociais. (RIBAS, 2014, p. 132).

As arqueologias de Foucault forneceriam um “operador intelectual”, ligado a concepção de verdade que, de matriz nietzschiana, combate pretensões universalistas a partir de sua inserção numa trama de relações históricas.

As verdades das arqueologias jamais se colocam no lugar daquelas que são criticadas, e sim reconduzem a uma apropriação do jogo de produção dessas verdades, produzindo por esta via um efeito transformador:

a via interpretativa que se propõe para um trabalho futuro nesta conclusão aposta na concepção desses livros arqueológicos como portadores de um pensamento político enquanto produtor de efeitos que podem ser avaliados pela transformação filosófico-discursiva que provoca. Seguindo essa hipótese os diagnósticos do presente oferecidos por tais estudos são vistos como armas imprescindíveis de uma luta política capaz de se apropriar das regras discursivas para impô-las outra direção. (RIBAS, 2014, p. 137).

Todas essas indicações de pesquisa foram desenvolvidas a partir dos estudos do autor na antessala da arqueologia foucaultiana. Isso foi elogiosamente caracterizado pelo professor Cesar Candiotto, na primeira linha do prefácio, onde atribui ao estudo levado a cabo neste livro o caráter de uma “arqueologia” da própria arqueologia de Foucault. Para os estudiosos de Foucault, não há forma mais direta para descrever o que aqui se vai encontrar.

Quanto aos leitores que, trilhando outros caminhos, cruzam com o pensamento de Foucault, estes encontrarão a oportunidade de acompanhar um dos maiores pensadores da atualidade no extraordinário momento de formulação de seu principal problema filosófico.

Notas

1 Cf. CHAVES, E. Foucault e a psicanálise. Apresentação de Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

2 É certo que sua menção à Freud consiste apenas num “exemplo privilegiado” para demonstrar a tese foucaultiana sobre a regra geral da pesquisa em psicologia como perpétuo arranchamento do solo consolidado (Cf. RIBAS, 2014, pp. 97 e segs.). Por outro lado, julgamos que esta modificação é um aspecto inalienável da crítica arqueológica nascente, ou seja, de seu poder para captar e diferenciar o espaço epistemológico que se instaura com a ruptura freudiana no discurso psicológico.

Tiago Hercílio Baltazar – Pós-graduando em Filosofia na UFPR. Email: tiago.baltazar@ig.com.br

Acesso à publicação original

 

Itamar Freitas

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