Foucault: saber, verdade e política | Thiago Fortes Ribas

Professor do departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Thiago Fortes Ribas apresenta em seu livro uma reflexão derivada de sua tese doutoral, intitulada Saber, verdade e política no pensamento de Michel Foucault, concluída no ano de 2016 junto à Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. André de Macedo Duarte. O problema abordado por Thiago Ribas em seu trabalho toca no cerne de um lugar comum que se constituiu a respeito dos textos de Foucault: trata-se da perspectiva que somente reconhece a emergência de uma concepção política específica em seus trabalhos desenvolvidos a partir de 1970, quando a ênfase à questão das relações de poder, e o exercício microfísico deste em determinadas instituições, vêm à tona em investigações elaboradas a partir do método genealógico – de alegada inspiração nietzscheana. Desse modo, nos trabalhos desenvolvidos por Foucault na década de 1960 – cuja tônica perfaz uma investigação dedicada à dimensão histórica que envolve a constituição dos saberes –, a política seria um tema pouco ou nada desenvolvido, relegada a ângulo obtuso no conjunto de suas preocupações ou, ainda, subjugada pela preferência a uma reflexão supostamente restrita a um âmbito epistemológico.

Para se afastar dessa arraigada chave de leitura, é necessário compreender de que maneira o período da chamada arqueologia do saber também perfaz um modo de ação. Ao sustentar essa perspectiva, o livro Foucault: saber, verdade e política não somente conduz uma maneira de compreender a singularidade da concepção política de Foucault, articulada desde seus primeiros textos, como também levanta importantes elementos para serem debatidos junto ao pensamento político contemporâneo. Afinal, como o próprio Foucault sublinha, levar um pensamento adiante implica em torcê-lo em função dos problemas e inquietações que se agitam em uma atualidade. Tomando essa premissa como válida, talvez, seja possível arriscar a pensar que essa (re)atualização do pensamento de outrem se opere na complexa interação entre a mobilidade de um arquivo – que comporta, pois, o conjunto, sempre móvel, dos escritos de um autor – e a diferença entre os múltiplos problemas que a ele são endereçados em qual ou tal momento presente. É nesse interstício que Foucault, saber, verdade e política pode ser situado, alinhando-se, pois, a outros trabalhos que, cada qual à sua maneira, têm se ocupado em recuperar a espessura política presente nos trabalhos desenvolvidos por Foucault na década de 1960. 1

Ao ressaltar o caráter político que envolve as reflexões que delineiam a chamada fase da arqueologia do saber, Thiago Ribas escande a possibilidade de explorar o desenvolvimento da política como uma linha de força presente de ponta a ponta na trajetória intelectual de Foucault. Assumir essa perspectiva implica em um importante deslocamento. Afinal, com ela, é possível compreender de que maneira as formulações desenvolvidas nos trabalhos arqueológicos têm importante papel no desenvolvimento das discussões políticas que as prosseguem, na década de 1970, como também perceber de maneira mais refinada as constantes ressignificações e deslocamentos efetuados por Foucault em sua trajetória – não os limitando, assim, ao que seriam três grandes períodos. O nomadismo, marca indelével do pensamento de Foucault, é, assim, estendido ao aspecto político de suas reflexões e as especificidades de seus diferentes momentos de fabricação.

Se Foucault: saber, verdade e política se aprofunda em um tema específico, o faz ciente de que se trata de um mergulho em águas correntes. A cada vez que emerge, sua tese central se dá com a marca de uma diferença; de uma tangente que dialoga, mas também se desloca em relação a seu ponto de submersão. Borram-se, assim, as supostas barreiras entre forma e conteúdo, teoria e método: afinal, acompanhar um pensamento que se transforma exige de quem investiga o esforço de se colocar em movimento, tanto para acompanhar os deslocamentos de Foucault quanto para prolongar, à sua maneira e em seu presente, as reflexões e ações que podem ser hauridas desse diálogo. Se é possível chamar os textos de Foucault de caixa de ferramentas, como ele próprio preconiza, é importante também reconhecer a especificidade de cada uma dessas ferramentas, seus lugares de produção, quais operações podem por elas ser realizadas e, principalmente, de que maneira elas podem ser utilizadas para que criemos as nossas próprias.

Desse modo, o primeiro capítulo, Politização do arquivo, pode ser considerado como axial. Pois ele se desenvolve a partir de um retorno a duas importantes fontes que, por sua vez, desenvolvem aspectos fundamentais para a apreensão da espessura política que recobre os trabalhos arqueológicos de Foucault e também elucidam quanto ao contexto intelectual que tais trabalhos ajudam a compor: tratam-se dos textos Resposta a uma questão e Sobre a arqueologia das ciências – Resposta ao Círculo de Epistemologia, ambos de 1968.

O conteúdo de cada uma desses artigos, construídos por Foucault enquanto réplicas, procura, com olhar retrospectivo, organizar diferentes elementos mobilizados nos três principais trabalhos publicados até o referido ano – História da loucura na idade clássica, de 1961, O nascimento da clínica, de 1963, e As palavras e as coisas, de 1966. São reflexões que oferecem, portanto, uma sistematização provisória entre as formulações desenvolvidas nesses trabalhos. No campo de relações de que participa as duas fontes supracitadas, ao menos três importantes linhas de força podem ser destacadas, já que tangenciando sobre elas, seja para reiterar alguns de seus aspectos ou para recusá-los por completo, é que Foucault especifica a singularidade da pesquisa arqueológica, quais sejam: as perspectivas políticas desenvolvidas pela filosofia humanista – notadamente na figura de Jean Paul Sartre; a voga do chamado estruturalismo, marcante no cenário intelectual francês desde a década de 1950; a epistemologia e história da ciência, representadas nos trabalhos de Georges Canguilhem e Gaston Bachelard.

Diante dessa trama, Thiago Ribas chama atenção para importância de compreender de que maneira Foucault constitui sua singularidade em relação às concepções de verdade e de discurso formuladas em cada uma dessas linhas de força. Nesse caso, trata-se de rejeitar a condescendência com uma postura que trata a verdade como localizada além, ou, senão, aquém, das relações que envolvem saberes e corpos no movimento da história; trata-se, em suma, de abdicar da perspectiva que trata a verdade como um transcendental para abordá-la em um plano histórico e imanente. Para tanto, é preciso evitar, também, abordar o discurso enquanto veículo neutro, película transparente entre objeto e sujeito de conhecimento ou, então, como mera representação de algo que o possibilita e legitima de antemão, para destacar seu papel ativo na produção daquilo que em qual ou tal momento é construído e aceito como o lugar da verdade. Mais do que um intermediário, para Foucault o discurso deve ser abordado em sua própria espessura: como algo que se dispõem como uma coisa; que ocupa, pois, um lugar específico e se modifica historicamente. Eis um dos pontos fundamentais de Foucault: saber, verdade e política: para restituir a dimensão política que envolve a verdade e o discurso, é preciso remeter este último, pois, às regras de sua existência material, histórica; às relações dinâmicas que o tornam sua existência possível e passível de transformações.

Daí, então, a possibilidade de pensar essa transformação em termos de transgressão. Isto é, não é o caso de remeter a possibilidade de mudança a um futuro utópico, chancelado pela suposta caminhada evolutiva e linear do sujeito, mas de revolver o solo que torna nosso pensamento e ação possíveis, enquanto um acontecimento histórico que se impôs sobre outras possibilidades. Todo discurso, pelo simples fato de existir, já é político, na medida em que disputa espaço com outros – e os exclui – para impor alguma ordem e determinada lógica. Sendo assim, a arqueologia não se faz enquanto análise neutra, mas se coloca em meio aos discursos e neles opera uma (in)cisão que separa e põe margens nas regras de seu funcionamento, evidenciando, com isso, a distância entre os discursos mortos e os vivos. Como destaca Thiago Ribas “é somente quando vivemos, pensamos e agimos sobre outro regime impensado que podemos analisar calmamente o inconsciente de um discurso do passado”. (RIBAS, 2017, p. 61)

Mais do que construir uma concepção definitiva acerca do que é a política, ou uma prescrição de quais são os princípios corretos que devemos seguir para exercitá-la para garantir uma outra vida – esta, quase sempre, localizadas alhures –, Foucault busca multiplicar o número de fraturas em discursos que se apresentam como homogêneos para que, com isso, seja possível “politizar dimensões impensadas da existência” (RIBAS, 2017, p.87). Desse modo, em termos de deslocamento, a arqueologia talvez não seja mais do que apenas um passo; todavia, bem sabemos: um passo à frente e já não estamos mais no mesmo lugar.

Essa liberação do campo discursivo, ou, ainda, essa conversão às suas próprias regularidades, tem como corolário a escrita de uma história que não se funda sobre a conformação de continuidades, mas, antes, visa conduzir o olhar em direção à sublevação das diferenças. A arqueologia não busca a impessoalidade e o poder de síntese de um olhar totalizante e assume, de saída, a posição estratégica de um método que se desdobra a partir da descontinuidade: efetua, pois, um recorte deliberado em um tecido cuja escolha evidencia seu posicionamento diante de um conjunto, dado como homogêneo, e que se pretende fraturar; opera, com isso, uma cisão que especifica passado e presente, evidenciando que este não decorre evidente e necessariamente daquele e que, assim, o futuro não há de ser pré-determinado. Entretanto, vale ressaltar que esse recorte nunca é definitivo, mas sempre provisório, recomeçado, de modo que a prática de escrita afirma uma experimentação que (re)arranja outra materialidade discursiva possível que, por sua vez, irá se chocar – e, por conseguinte, fragmentar – com um conjunto que pretende se impor enquanto absoluto e definitivo.

A partir da recuperação das reflexões elaboradas por Foucault nos dois artigos de 1968, A arqueologia do saber, publicada no ano seguinte, em 1969, pode, então, ser alçada ao status de uma resposta política. Essa é a premissa que Thiago Ribas desenvolve no segundo capítulo, História dos saberes: uma resposta política. O olhar atento ao caráter experimental que envolve o trabalho arqueológico permite compreender não somente como que a sistematização que Foucault elabora nesse livro só é possível a partir de um elo, incontornável, entre teoria-metodologia e política como também evidencia que esse trabalho não se circunscreve a desenvolver conceitualmente as balizas de seus primeiros trabalhos – ainda que deles seja tributário –, mas, antes, perfaz um novo posicionamento.

O discurso enquanto materialidade, acontecimento, ou, ainda, enquanto prática, enquanto ato. A multiplicação de substantivos que reiteram a importância de se atentar para a espessura particular das práticas discursivas, uma das noções-chave de A arqueologia do saber, não têm como contrapartida, necessária e imediata, a negação da existência de práticas não discursivas. A autonomia de ambas é relativa: estão, pois, imbricadas, se articulam, sem que, entretanto, uma seja subsumida à outra. 2

O trabalho arqueológico, portanto, faz com que o pensamento surja no campo de batalha político. Ao diagnosticar o que compete às práticas discursivas que constituem esse campo, ele também se envolve nesse embate, por meio da afirmação de uma prática imanente que visa as diversas possibilidades de transgressão do espaço regrado que torna possível – e limita – o discurso presente. Se o sujeito transcendental perde sua posição central, é o caso de converter o lamento pela perda dessa suposta origem benfazeja, constituinte e, na maioria das vezes, consoladora diante da angústia da morte, em afirmações: do pensamento enquanto ato em um campo de batalha política; do ato enquanto movimento que atualiza e transforma a relação com o presente; da transformação que, talvez, seja a própria efetuação da vida.

Respeitados em suas especificidades, os três diferentes campos de trabalhos desenvolvidos por Foucault – a saber: arqueologia do saber, genealogia do poder e a estética da existência – são entendidos a partir das possíveis articulações provenientes entre eles. A diferença de enfoque que Foucault desenvolve em seus trabalhos genealógicos, então, só se torna exequível devido aos problemas iniciais e ao desenvolvimento teórico-metodológico da arqueologia do saber. No terceiro capítulo, Delimitação estratégica da análise de um sistema de verdade, a diferença e a complementaridade desses dois projetos são exploradas, de modo que a questão do poder, notadamente o ponto central das discussões genealógicas, não é tratada como se sua função fosse a de preencher alguma lacuna ou corrigir algum suposto erro. 3 Trata- se, mais uma vez, de um novo campo de trabalhos, que se movimenta, por sua vez, sobre outros problemas e relações.

Três textos são fundamentais para a constituição da trama inicial desse terceiro capítulo: duas reflexões em que Foucault dialoga com pensamento de Gilles Deleuze – Ariadne enforcou-se, de 1969, e Theatrum philosophicum, de 1970 – e a aula inaugural proferida no Collège de France em 1970 – publicada com o título A ordem do discurso. Notadamente neste último texto, Foucault estende suas considerações acerca da materialidade discursiva ao interesse acerca da construção histórica do campo estratégico responsável por separar o verdadeiro do falso.

Quanto a isso, o diálogo com o pensamento de Nietzsche se mostra como um aporte fundamental. 4 Com ele, é possível compreender de que maneira Foucault se contrapõe a certa tradição filosófica que, desde Platão e Aristóteles, alçam o conhecimento à posição de causa final, isto é, como algo despregado do corpo e de suas sensações e, por isso, tratado como móbil de um desejo exterior ao mundo. Alijada do corpo, a verdade se aloja em uma suposta interioridade: espaço ficcional criado a partir da exclusão da materialidade dos discursos, dos apetites e das pulsões para acomodar e isolar o puro e sacro conhecimento. Em sua efetividade, como coisa dita, o discurso não nos conduz para esse núcleo, mas, antes, o elucubra. Daí, portanto, a necessidade de clarificá-lo, fazendo vir à tona a homogeneidade do sentido que o antecede, mas que, porém, permanece oculto; e o gesto mesmo que secciona esse espaço obnubilado que compete à verdade também afasta toda a diferença que sobre ela se insinua. Preso à dinâmica de sua própria purificação, o pensamento apreende a diferença como um elemento secundário e reconhecido somente em uma relação de subordinação em relação a identidade, cuja universalidade é assegurada por sua lógica e coerência interna.

É preciso, pois, contornar o sistema que estabelece esse lugar privilegiado para o discurso de verdade. A insistência em separar o discurso do corpo, a teoria da prática, o espírito da carne, acaba por reivindicar a figura de um sujeito que, devido a sua consciência, seria capaz de efetuar a ligação entre ambos por meio de uma posição neutra e desinteressada. Isso permite a Foucault repensar, justamente, a posição possível de ser ocupada pelo intelectual e a escrita da história: em oposição à figura do intelectual universal presente no pensamento ocidental desde o século XIX e início do século XX, e cuja visão se atém à essa pretensa universalização, Foucault propõe a emergência histórica do intelectual específico. Diferentemente da figura de um ser que fala pela verdade, ou, até mesmo, a encarna, o intelectual específico luta pela verdade estabelecendo insurreições locais, deslocando, por meio de ligações transversais – e não verticais – os saberes e poderes instituídos. Talvez seja esse o motivo pelo qual não encontramos em seus escritos fórmulas, receitas ou propostas para guiar nosso pensamento e ação, mas tão somente diagnósticos.

Seria tal postura uma forma de não se responsabilizar? Somente se houvesse entre quais ou tais discursos uma hierarquia pré-estabelecida e o intelectual, dotado de uma visão superior, omitisse em revelar aos demais o seu tesouro escondido. Entretanto, bem sabemos o quanto essa divisão, que desconsidera a materialidade do pensamento para alçá-lo a uma posição a que poucos privilegiados têm acesso ao seu fundamento, nada mais é do que a (re)atualização de práticas excludentes. 5 O intelectual específico, por outro lado, leva todos os discursos a sério já que entende que o simples fato deles serem enunciados aponta para a existência de um ordem que não pode ser ignorada: o fato deles estarem aí evidencia uma regularidade de que fazem parte e os tornaram possíveis– se há diferença entre os discursos ela não se dá a partir de níveis mas de graus; 6 sabe, pois, que seu discurso não observa a história e o devir de longe mas faz parte desse movimento, localiza-se em meio a ele, e, por isso, está em transformação: o olhar altivo, portanto, não lhe compete já que, com ele, é possível que as fronteiras entre os palcos, palanques e altares fiquem demasiadamente borradas.

Se o intelectual específico desenvolve seu discurso como uma luta local isso não significa que sua prática, ao fornecer ferramentas para a formulação de novos problemas, não frature saberes e poderes hegemônicos em seus diferentes pontos de manifestação. Mais do que optar pela micropolítica ou pela macropolítica, a insistência nessa separação pode, então, ser entendida enquanto um problema desarmado. Isso porque, seu trabalho, mesmo deslocando relações que podem ser considerados por alguns como de grandezas infinitesimais, perfaz uma forma de resistência que se choca com determinadas forças, questiona a suposta solidez em que elas se assentam e, com isso, afirma e viabiliza outras formas possíveis de insubordinação – experiência esta que, certamente, o expõe a riscos.

Com isso, o caminho desenvolvido à jusante por Foucault: saber, verdade e política encontra-se, em suas considerações finais, com as discussões desenvolvidas nos trabalhos da década de 1980, onde as práticas históricas de subjetivação são estudadas em mais uma significativa inflexão no curso do pensamento de Foucault. A afirmação de um ethos filosófico calcado em uma atitude-crítica que se expõe à prova dos limites que constituem o presente e, assim, lança o desafio de transformar a vida em uma experimentação sem referências a determinados padrões de verdade e formas de governo.

A partir das considerações desenvolvidas no curso de 1984, A coragem da verdade, se sobressaem dois exemplos cuja efetividade de uma crítica permanente do mundo e de seus valores se dá a partir da efetivação de uma maneira específica de viver: Sócrates e os filósofos cínicos. Ambos modelos para a compreensão de que maneira a dimensão ética da existência pode também se constituir como aliada a uma outra forma de fazer política.

A partir de Sócrates, Foucault afirma a abertura de uma via filosófica ocupada com a bios. Esta, por sua vez, não remete a uma contemplação da alma como modo de ter acesso à verdade, mas volta-se à contiguidade entre vida e forma de vida. Trabalho de si sobre si, contínuo, sempre recomeçado; transformação imanente, desdobrada nos encontros cinzas da vida cotidiana, a bios compreende, pois, uma prática, refere-se a uma forma de existência cuja maneira de ser torna-se a manifestação de uma verdade.

Desse modo, a noção de parresía, entendida enquanto um franco falar, praticado pelos políticos ao se dirigirem à cidade, é deslocada por Sócrates em direção a uma prática que busca menos dizer a cada cidadão o que ele deveria, ou não, fazer, do que estimulá-lo a desenvolver um cuidado de si, no sentido de evocar a importância de se exercitar uma relação com a verdade que afete diretamente o estilo de sua existência. Antes que essa preocupação ética e estética possa ser, anacronicamente, acusada de ceder a alguma forma de individualismo, vale ressaltar que é somente na relação com o outro que o cuidado de si pode ser exercido, isto é, enquanto uma forma de afetação recíproca. Com isso, a parresía “deixa a tribuna política, porém, sem deixar, com isso de cuidar de algo caro à polis, a saber, o desenvolvimento ético imanente à vida de todos”. (RIBAS, 2017, p.193)

Segundo Foucault, a lição socrática é levada adiante na atitude pública dos filósofos cínicos. Fazendo a história dessa maneira de ser, perseguindo os ditames de suas formas de conduta, é possível destacar, de modo quase caricatural, essa implicação fundamental em conduzir a vida de acordo com uma verdade que desafia os valores estabelecidos, visando, pois, subvertê-los. Orientados pelo lema parakharáxon to nómismaaltera a moeda – os cínicos compreendem que a vida verdadeira é aquela que nada dissimula, que não recebe adições em seus princípios, que se apresenta de maneira contundente sem submeter ao crivo de outrem e que não se corrompe; arriscando-se a levar tais princípios a limites extremos, o cínico acaba por evidenciar a fragilidade dos valores sociais tratados como absolutos. Como explica Thiago Ribas: “alterar os costumes, as regras, as convenções seria desafiar o consenso e rejeitar os princípios da vida social para mostrar do que é feita uma vida verdadeira”. (RIBAS, 2017, p. 196)

O objetivo de estimular uma alteração de valores, por meio de um exercício de si e uma provocação do outro, é destacado por Thiago Ribas como uma tarefa presente em todos os diferentes momentos das reflexões de Foucault – como uma estilística que arrisca, experimenta e, por isso, cria. Em outros termos, a alteração de valores pode ser reconhecida como a articulação entre os trabalhos acerca da materialidade discursiva, dos campos estratégicos de exercício de poder e da transformação do sujeito. Cada uma dessas dimensões, por sua vez, no momento particular de seu desdobramento, articula um conjunto de questões que, por sua vez, podem ser endereçados ao nosso pensamento político, menos como retificações de seu trajeto ou prescrições do caminho fundamental a ser trilhado do que como um convite, ou provocação, para a formulação de novas interrogações acerca de algumas proposições que se pretendem com absolutas.

Com redação clara, Foucault: saber, verdade e política apresenta uma nova porta de entrada para aqueles que iniciam os estudos dos textos de Foucault, uma vez que sem descartar a tripartição de seu pensamento, principal recurso heurístico para estudá-lo, busca evidenciar as articulações que especificam e relacionam a arqueologia do saber, a genealogia do poder e a estética da existência. Ademais, para aqueles que já se debruçam aos textos de Foucault, o rigor teórico-metodológico com o qual o texto é conduzido serve como inspiração para novas pesquisas articularem outras linhas de força que tangenciam, cada qual à sua maneira, no desenvolvimento dos escritos de Foucault, tal como Thiago Ribas o faz com a política.

Diante de uma atualidade onde os discursos se desenrolam a partir de novos suportes, que modificam sua materialidade e os conduzem a novas ordens, antes inimagináveis; de uma materialidade discursiva cuja regularidade se pretende sem corpos (BRUM, 2019) e, por esse mesmo motivo, visa a destruição de importantes relações possíveis de serem engendradas por entre eles; ante a proliferação daquilo que parece ser uma constante tergiversação de sentidos, que institucionaliza o delírio e faz da confusão instrumento de exercício de uma forma de poder que se assanha com práticas autoritárias e fascistas, Foucault: saber, verdade e política (2017) escande a possibilidade de deslocarmos nosso olhar, também, em direção à espessura política que perfaz a dinâmica de (re)produção dos discursos em nossa atualidade. A compreensão do aspecto histórico que perfaz essa dinâmica se alia, pois, às tarefas de apontar para a efemeridade – senão, absurdo – de um presente que pode (e deve) ser transgredido e, assim, afirmar novas formas de viver – consequentemente, de resistir.

Notas

1Sem a pretensão de ser exaustivo, é possível citar aqui os artigos de RIBEIRO, C. E. Arqueologia política da loucura: um corpo desarrazoado. In: Dissertatio, vol. 45, 2017, p. 46-72 e GUTTING, G. The Politics of The Order of Things: Foucault, Sartre and Deleuze. In: History and Theory, vol.55, n. 4, 2016, p. 54-65.

2 A liberação do campo do saber de suas amarras transcendentais não tem como correlato direto a afirmação de que somente o campo discursivo é produtor da realidade, como insiste as críticas tomadas pela desatenção, pela ânsia de adjetivação ou, simplesmente, pela má-fé. Com isso, o problema que envolve a suposta dissociação entre práticas discursivas e não discursivas se torna estéril, a questão, antes, é compreender quais são as especificidades de cada uma delas e, ademais, como, a partir daí, elas se relacionam.

3 Como sugere, por exemplo, leituras como as de DOSSE, 1967; DREYFUS, H. L.; RABINOW, P., 2010.

4 Outro ponto fundamental, digno de nota, é o cuidado de delimitar que o diálogo com o pensamento de Nietzsche não é uma novidade circunscrita aos textos de Foucault da década de 1970, cuja referência seria o célebre artigo Nietzsche, a genealogia, a história, de 1971. Trata-se, antes, de uma relação mobilizada ao longo de toda sua trajetória intelectual, ainda que com objetivos distintos.

5 “A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual”. MARX, 2007, p. 35.

6 Sejam eles, portanto, de ordem filosófica, científica ou não.

Referências

BRUM, E. Eu + um + um + um +. El país Brasil. 16 mai. 2019. Disponível em < https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/15/politica/1557921007_146962.html>. Acesso em: 17 mai. 2019.

DOSSE, F. História do estruturalismo: O canto do cisne, de 1967 a nossos dias. Tradução: Álvaro Cabral. Vl. 2. São Paulo: Ensaio; Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

GUTTING, G. The Politics of The Order of Things: Foucault, Sartre and Deleuze. In: History and Theory, vol.55, n. 4, 2016.

MARX, K. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007.

RIBAS, T.F. Foucault: saber, verdade e política. São Paulo: Intermeios, 2017.

RIBEIRO, C. E. Arqueologia política da loucura: um corpo desarrazoado. In: Dissertatio, vol. 45, 2017.


Resenhista

Tiago Viotto da Silva – Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) – FCL Assis. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo nº 2017/15656-0. E-mail: viotto.ts@gmail.com


Referências desta Resenha

RIBAS, Thiago Fortes. Foucault: saber, verdade e política. São Paulo: Intermeios, 2017. Resenha de: SILVA, Tiago Viotto da. Política e história na arqueologia de Michel Foucault. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 16, n. 2, p.267-277, Jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

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