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Foucault e a teoria queer: seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares | Tamsin Spargo

[…] tanto investimento na crença de que a sexualidade é natural não significa que ela seja.

Spargo, 2017, p. 15.

Nos últimos anos, os estudos queer no Brasil ganharam destaque para além do que se costumava ver diante dos estudos da área de Educação, Psicologia e das Ciências Sociais. Ganhou força na História, desenvolvendo-se em seus processos autocríticos, de forma a jogar luz em recortes que atravessam gênero, raça, sexualidade e classe social. A construção do campo dos estudos das relações de gênero tomou novas cores e sabores com as percepções das teorias de gênero, as quais se convencionaram chamar de queer, adentrando áreas do conhecimento ainda conservadoras.

A década de 2010 teve amplitude nos espaços de debates sobre os estudos acerca dos corpos desviantes da cisheteronormatividade. A palavra “queer” rompeu a bolha (no caso do Brasil) para uma sociedade que se viu tomada pela preocupação com a “ideologia de gênero”, um monstro que destruiria a família, as crianças e, por que não, o país. O que se constituiu no fim dessa década foi desastroso: o uso de um discurso que denomina as teorias de gênero como “ideologia de gênero” transformou-se em plataforma de campanha política e, surpreendentemente, uma plataforma vencedora.

Queer parece ter ganhado visibilidade. É provável que continue provocando curiosidade e desconfiança, mas agora circula na mídia, assumido por uns, repudiado por outros. Aparece eventualmente numa novela, numa exposição de arte, causa escândalo aqui ou ali. Talvez ainda se encontre restrito a certos espaços e grupos. Talvez transite com desenvoltura apenas entre alguns ativistas, intelectuais artistas. Ainda deve parecer, para muitos, uma coisa estranha. E é mesmo! Queer costuma ser rebelde, o mal-comportado. Não importa se estamos falando de um indivíduo ou de um grupo, de um movimento ou de um pensamento, tudo ou todos que se revelam ou se reconhecem como queer se mostram, de algum modo, “estranhos”, afinal é parte da sua “natureza” desacatar normas e perturbar cânones. (LOURO, 2018, p. 7-8)

Em 2017, Michel Temer estava conduzindo um governo e as garras do malfeito feito já tomava sua perversa forma diante das conquistas sociais adquiridas nos últimos anos. Foi naquele ano que uma exposição de arte no Rio Grande do Sul foi perseguida em âmbito nacional, e a imagem de seu curador, Gaudêncio Fidelis, depredada nas redes sociais. A Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira não permaneceu nem um mês no espaço Santander Cultural em Porto Alegre. A palavra “queer” rodou com a cadela do fascismo que está sempre no cio colocando em risco a vida do curador e se tornando, talvez, o primeiro grande evento dos últimos tempos da “nova” face da censura levada pelas milícias digitais. Porém, este espelho tem duas faces.

A primeira refere-se a todos aqueles acontecimentos e debates online sobre o que seria ou não arte, com muita intolerância, preconceito, ódio e rancor por uma arte simplesmente livre. A outra face era a resposta a tudo aquilo, com a resistência diante de um mesmo espectro imbuído de uma terrível transição político-social marcada por golpes e exceções. Diante dessa turbulência toda estava o livro de Tamsin Spargo, somado à visita de Judith Butler em um seminário em São Paulo sobre democracia – quando fora severamente hostilizada em espaços públicos sob os xingamentos de “bruxa” (GOBBI, 2017). Enfim, parecia que a descoberta para além da academia sobre os estudos queer estava colocando todas/os aquelas/es que dela não dizem respeito diante de si próprios. Ou será que não?

A Autêntica Editora lançou uma nova edição para o célebre ensaio de Tamsin Spargo Foucault e a teoria queer, em 2017. Outro ensaio da autora, Ágape e êxtase: orientações pós-seculares, também foi adicionado nesta edição. O livro contou com posfácio do pesquisador Richard Miskolci e a generosa tradução de Heci Regina Candiani. Já havia sido publicada no Brasil uma primeira tradução do primeiro ensaio supracitado, em 2006, pela editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, em parceria com a Pazulin.

Tamsin Spargo é doutora em Teoria Cultural pela Universidade de Cardiff, Reino Unido. É professora aposentada da Universidade John Moores, de Liverpool, Reino Unido. Atuou como historiadora de cultura e diretora da Escola de Artes, Crítica e Mídia, da mesma instituição. É também membro da companhia teatral Perthi Kov, sediada na Cornualha, região da Inglaterra. Atualmente, se dedica a arte e ao trabalho comunitário em Redruth. Publicou alguns trabalhos acadêmicos que tiverem impacto em sua comunidade, mas foi com Foucault and the Queer Theory (1999) que atingiu um público internacional. Ela se considera uma “historiadora inadequada”: “[…] acho difícil me identificar completamente com a disciplina e estou interessada no desafio de tentar capturar os elementos do presente que carregam os traços conflitantes do passado” (SPARGO, 2020, p. 27).

O livro faz parte da coleção Argos, que conta – até o momento – com seis títulos publicados: duas traduções; duas reedições e dois lançamentos originais. Desses, três são da pesquisadora Guacira Lopes Louro. O nome da coleção faz referência ao mito grego dos argonautas, referente também ao primeiro título publicado pela coleção: Argonautas, de Maggie Nelson. “Argos celebra a pluralidade, a fluidez, a norma e o que está fora dela, a ética dos corpos […]” (GRUPO AUTÊNTICA, 2017a, n. paginado).

Todos os livros da coleção seguem o mesmo padrão editorial: formato, projeto gráfico e capista. Para além da forma, o conteúdo é o que os torna um pequeno tesouro naquele período: o eixo principal são os estudos de gênero em uma perspectiva teórica e reflexiva que não seja tão densa, mas que também não seja simplista. Nas palavras da editora:

[…] a coleção Argos reúne obras clássicas e contemporâneas que fomentam o debate sobre estudos de gênero e teoria queer. Alinhada à evolução dessas discussões nos últimos anos, a coleção se propõe a contribuir com um referencial que convide ao diálogo. (GRUPO AUTÊNTICA, 2017b, n. paginado)

A coleção Argos foi organizada por Rogério Andrade Bettoni, graduado em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e pós-graduado em Tradução (Língua Inglesa) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Traduziu inúmeras obras literárias e acadêmicas para editoras brasileiras. Em seu escopo acadêmico, o interesse maior é por questões da área filosófica, acompanhando sua formação.1

Para a coleção ele escolheu, entre as obras internacionais para serem traduzidas e a integrarem, dois livros originários de língua inglesa, sendo o primeiro Argonautas (2017) de Maggie Nelson – traduzido por ele mesmo –, e o segundo o conjunto de dois ensaios de Tamsin Spargo. A tradução de Nelson foi publicada em julho de 2017, mesma data da obra aqui resenhada.

A tradutora Heci Regina Candiani é graduada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP); mestra em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e recentemente concluiu seu doutoramento em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), tendo estudado a obra de Simone de Beauvoir.

Assim como Rogério Bettoni, Heci Candiani traduziu inúmeros títulos provindos da língua inglesa, com temática voltada aos estudos de gênero. Destaques são, em seu catálogo, as traduções de algumas obras de Angela Davis para a editora Boitempo.

A VERDADE DO SEXO

O principal ensaio de Tamsin Spargo é Foucault e a teoria queer, publicado pela primeira vez em 1999 pela Icon Books no Reino Unido e Estados Unidos, simultaneamente. Publicada pela Autêntica Editora nessa nova edição com outro ensaio, Ágape e êxtase: orientações pós-seculares, a obra reúne também o posfácio Estranhando Foucault: uma releitura queer de História da sexualidade I, por Richard Miskolci.

O primeiro ensaio está dividido em dezenove subtítulos. A autora inicia seu texto sobre Foucault questionando os limites do que é natural no sexo e quem ou o que o naturaliza. Os questionamentos passam pelas noções de saber/poder foucaultianas, bem como exemplificadas por questões sociais debatidas naquele presente, qual seja o fim dos anos 1990 na Inglaterra, sendo que falar de sexo mais abertamente era já uma barreira rompida na conservadora sociedade britânica. Spargo (2017, p. 14) almeja que o ensaio seja “[…] uma ‘genealogia’ [no conceito de Foucault] breve e parcial de um conjunto particular de discursos sobre a sexualidade, culminando (de modo temporário e não exclusivo) no momento queer atual”.

Entretanto, passados vinte anos, os mesmos questionamentos da autora sobre abuso sexual, pedofilia e o que torna uma prática ruim e outra boa no sexo ainda é um substancial assunto na sociedade brasileira, vide o caso da garota de dez anos que abortou sua gravidez, fruto de um estupro cometido pelo próprio tio, tomando proporções gigantescas nas redes sociais e na mídia tradicional o debate conservador – e preconceituoso – dos ditos “cidadãos de bem” (religiosos, sobretudo) e “pró-vida” contra a realização do aborto.

A vida e obra de Michel Foucault, de acordo com Spargo, serviram de modelo para gays, lésbicas e também intelectuais e “[…] sua análise das inter-relações entre saber, poder e sexualidade foi o catalisador intelectual mais importante da teoria queer” (SPARGO, 2017, p. 12). De forma objetiva, Spargo (2017, p. 13) define o que é queer e o que faz da teoria queer um campo do saber, aqui transcrito na íntegra para fazer compreender:

Em inglês, o termo “queer” pode ter função de substantivo, adjetivo ou verbo, mas em todos os casos se define em oposição ao “normal”, ou à normalização. A teoria queer não é um arcabouço conceitual ou metodológico único ou sistemático, e sim um acervo de engajamentos intelectuais com as relações entre sexo, gênero e desejo sexual. Se a teoria queer é uma escola de pensamento, ela tem uma visão profundamente não ortodoxa de disciplina. O termo descreve uma gama diversificada de práticas e prioridades críticas: interpretações da representação do desejo entre pessoas do mesmo sexo em textos literários, filmes, músicas e imagens; análises das relações de poder sociais e políticas da sexualidade; críticas do sistema sexo-gênero; estudos sobre identificação transexual e transgênero, sobre sadomasoquismo e sobre desejos transgressivos.

A definição “temporária” do queer por Spargo vai de encontro com a forma como lê Foucault para o trabalho de pensar sua contribuição e inspiração dos movimentos que levam para a teoria queer. Ela enfatiza que abordará de forma linear a trajetória e a obra do pensador, de maneira a conseguir explicar a influência, mas também os entraves, entre Foucault e o pensamento queer – já que a obra dele não é queer, ele não almejou criar uma teoria que se quisesse queer, e tampouco o primeiro volume de História da sexualidade é queer ou funda uma teoria.

O texto pode ser lido a partir de ideias-chaves que fazem com que a tessitura se torne mais evidente. O didatismo do ensaio vai além da subdivisão em várias seções, como também dos pontos que convergem ideias principais e a linearidade com a qual a historiadora debate o tema: pela trajetória intelectual de Foucault ao longo dos anos 1970 e 1980; a incorporação dos movimentos identitários das ideias dele, como também do enlace com a produção intelectual. Diante disso, retoma-se a afirmação da epígrafe adicionando: “isso não quer dizer que Foucault descartasse qualquer dimensão biológica, mas sim que priorizava o papel das instituições e dos discursos na construção da sexualidade” (SPARGO, 2017, p. 15). Ou seja, a chave aqui é saber que Foucault queria lançar luz na produção da sexualidade pela sociedade e não como ela funciona.

Entender como o poder criava os discursos da sexualidade humana e fazia circular é uma das ideias-chave para compreender o primeiro volume da História da sexualidade, bem como o título dele: “a vontade de saber”. O saber sobre as questões postas na circulação dos discursos produzidos sobre as corporalidades feitas inteligíveis pela sexualidade fazia perceber – dentro do binômio masculino/feminino – as posições nas relações de gênero no escopo da teia social – essa na qual o homem branco cisgênero e heterossexual é tido como sujeito padrão, universal.

Ideias como genealogia; verdade e discurso; psicanálise; a origem da homossexualidade moderna como construção do saber científico; poder e resistência; identidades; subjetividade e performatividade formam as ideias-chaves da autora para construir o ensaio. Os conceitos guiam a discussão, mas também são debatidos por ela como pontos essenciais no processo de desenvolvimento do pensamento queer a partir da tríade francesa Derrida-Foucault-Lacan. Além deles, John Langshaw Austin, filósofo britânico da linguagem, é apontado como o criador do importante conceito de performatividade, adaptado por Butler em sua tese (2015).

A linguagem como um importante marcador de construção das sexualidades é umas das principais bases de Foucault para a teoria queer. O ambiente sociocultural em que o autor escreve o primeiro volume de História da sexualidade, já no fim da chamada “revolução sexual” e no pós-maio de 1968, é um dado importante para se pensar na produção da obra e na elucidação feita por Spargo, que aponta as variáveis em torno do produzido pelo autor e a influência da nova teoria em seus escritos e forma de pensar, sobretudo levando-se em conta as transformações daquele mundo em que vivia. Spargo pontua as movimentações dos grupos gays, lésbicos e suas ligações políticas, que, no início da segunda metade do século XX, apresentavam mudanças consideráveis na luta por direitos sociais e jurídicos em atos organizados. Os movimentos gays e lésbicos dos quais a autora trata, nos anos 1970, tinham relações estreitas com ideologias de esquerda e se alinhavam academicamente ao marxismo, ao socialismo e aos feminismos.

Não obstante, após o surgimento da AIDS novos grupos emergem, como o ACT UP e o Queer Nation, nos Estados Unidos. O segundo, em seu próprio nome, utiliza a palavra queer no sentido posto nos dias atuais, apropriado e colocado no sentido identitário, em que o impacto daquela epidemia para os grupos gays e lésbicos (mas principalmente gays) construiu a compreensão de que a identidade e o saber eram inseparáveis do poder – o que abalou os sentidos sobre o que era subjetividade e sexualidade, tornando o ato queer uma ação de resistência (SPARGO, 2017, p. 30).

Diante disso, queer passou a aparecer mais do que um linear progresso na identidade de homossexual, gay e lésbica, até ser propriamente a subjetividade queer. No final dos anos 1980, o termo já aparecia em debates acadêmicos sobre as identidades, as sexualidades e o sexo. O mote principal é justamente não ser e não ter uma reta, uma estagnação, ora o conceito é agregador de outros conceitos que, mesmo dispares, agem em conjunto para se pensar a teoria: “[…] os modelos psicanalíticos de identidades descentrada e instável de Jacques Lacan, a desconstrução de estruturas conceituais e linguísticas binárias de Jacques Derrida e, claro, o modelo de discurso, saber e poder de Foucault” (SPARGO, 2017, p. 33).

A influência desses conceitos e, mais forte o de Foucault, no pensamento de Judith Butler, especialmente em seu livro de grande fôlego Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (2015), originalmente publicado em inglês nos Estados Unidos, em 1990, instaurou uma forma de pensar o sexo, mas também o gênero, sendo algo criado pela/na linguagem. A ideia de performatividade de Butler confundiu muitas pessoas leitoras de sua obra, a qual teve que trabalhar em sua defesa no livro Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo” (2019), publicado originalmente nos Estado Unidos, em 1993. A confusão, explica Spargo (2017, p. 44), deveu-se a associação do termo performance (no sentido artístico, ou cultural) ao de performatividade, somando aí o exemplo escolhido por Butler da drag queen e – aponta Spargo – do estilo de escrita difícil e “opaco” da filósofa estadunidense.

O ensaio termina com os desdobramentos das discussões do queer provindas de Butler e as retomadas dos conceitos iniciais de Foucault. Uma questão importante colocada por Spargo é se o queer, no futuro, seria somente mais uma identidade, conformada e engolida pelo capitalismo neoliberal. A inquietação, a instabilidade e a recusa à norma são a essência da subjetividade queer, posta para questionar os padrões impostos aos corpos no sistema sexo/gênero. Como seção final, após as referências, encontra-se um pequeno glossário de conceitos-chave usados no texto. Esses conceitos são fundamentais para a autora debater as ideias geradoras da teoria queer, como também para criticar a ressignificação de alguns usos reconceituados pelo pensamento queer desde os anos 1980, fosse a partir de Foucault, ou Lacan e Derrida.

EM ÊXTASE

E quem caiu vai levantar e a gente vai vencer

Sofrimento acabar e o amor vai crescer Inimigos vão cair ao som desse trovão Levanta a mão pro alto e sente o rajadão

Rajadão. Compositores: A. M. S. Marques/ A. P. Gomes/ G. S. Pereira/ P. L. Bispo/ R. P. V. Antunes. Intérprete: Pabllo Vittar.

No segundo ensaio presente no livro, Ágape e êxtase: orientações pós-seculares (originalmente publicado na revista Argument & Critique, em 2013), Tamsin Spargo se coloca frente ao início do século XXI, questionando-se sobre mudanças: aquelas de si mesma, as de espaços físicos (tais como mudar de casa, peregrinar) e também as mudanças sociais na pós-modernidade dos anos 1980 e 1990. Se no primeiro ensaio ela tratava de uma leitura crítica da obra de Foucault, em conjunto com expoentes dos estudos queer, aqui ela se questiona sobre a interação entre religião e sexualidade, indicando produções da cultura pop nesta miscelânea entre sagrado e profano; “[…] o jogo pós-moderno com o religioso e o sexual era uma marca da contínua influência da cultura religiosa em nossos desejos, prazeres e em nossas identidades” (SPARGO, 2017, p. 60).

O caráter perturbador, de como ela lida com a religião e os símbolos religiosos, expõe certa vulnerabilidade da autora, perguntando-se sobre os aspectos da mudança. Mudar, como o trânsito da vida, diz respeito também sobre os sentidos criados entre o eu e o ambiente. Neste sentido, a sua reflexão está mais para a “dessacralização de símbolos religiosos”, pensar sobre os limites desses atos para o público e o jurídico “desde as inevitáveis brincadeiras de Madonna com o catolicismo até as atividades igualmente jocosas, mas com motivação política, do Sisters of Perpetual Indulgence” (SPARGO, 2017, p. 59). Este último grupo, alerta a tradutora, em nota de rodapé, foi formado nos Estados Unidos na cidade de San Francisco (conhecida por ser gay friendly e ter uma grande comunidade LGBTQI+), na década de 1970, fazendo atos públicos vestidos de freiras in drag para protestar contra a AIDS e a intolerância sexual.

O ensaio é pensado sobre o pós-secularismo (termo cunhado por Harbermas, em 2001) e a teoria queer para a reflexão entre a ética e aquela condição atual (início de século), no que se refere ao estado pós-moderno das relações sociais em retrospecto ao século XX. Para Spargo (2017, p. 61), essas duas teorias “caracterizam o pensamento crítico do final do século XX”. Está dividido em seis seções, alinhavado com discussões teóricas de Slavoj Žižek, Judith Butler, Lyotard, Derrida, entre outros.

O grande questionamento posto pela autora no estudo é sobre o aparente fundamentalismo das grandes (meta)narrativas religiosas do mundo (cristã, judaica e islâmica), a questão da diferença para se pensar a marginalização de sujeitas/os e como a reinterpretação de valores religiosos e novas preocupações em torno dos estudos das religiões marcavam a tendência a misturar crenças e valores que, para Tamsin Spargo, parece ser a fissura existente na pós-modernidade.

O queer sempre teve um posicionamento queer sobre religião, que se dava, em parte, não rejeitando a religião ou a fé em si, mas criticando os lugares reservados aos fiéis dentro de (ou por) uma versão discursiva ou institucional específica de determinada religião, tendo como base a sexualidade desses fiéis. (SPARGO, 2017, p. 63)

A partir de 2001, com o ataque ao World Trade Center, em Nova York, estudos passaram a se preocupar com o fundamentalismo religioso e as maneiras de entre fé, mercado e identidade. 2 Essas questões, por ora, eram debandadas para a teologia e estudos das religiões, para acadêmicos. Se as (meta)narrativas já não eram os guias balizadores da vida coletiva, como então o pensamento fundamentalista pôde causar aquela tragédia? Acerca disso, pode-se pensar as trevas impingidas ao Brasil, desde o início da década de 2010, pelo pensamento irracional fundamentalista religioso, provindo principalmente das fés neopentecostais.

As teorias que guiam o estudo da autora respaldam na crítica ao cristianismo e ao marxismo como formas de guiar o ser humano pela vida cotidiana. Se em ambos poderia haver uma teleologia, o segundo passou a ser considerado, pelos críticos liberais, enquanto uma narrativa “fracassada” de compreensão e guia da vida social, política, cultural e, também, espiritual. Se nos anos 1990 a influência da teoria marxista no socialismo “real” era controversa e desacreditada (pelo fim da URSS), no início indelével do século XXI e do terceiro milênio era a necessidade de explicação de novos contornos religiosos e seculares, limitados, sobretudo pelas inúmeras vertentes discursivas do conceito de pós-modernidade. Spargo (2017, p.71), alertando para a sua percepção mais intuitiva, diz que:

[…] seria um erro, em termos tanto filosóficos quanto psicológicos, permitir que a decepção com as dimensões socioeconômicas da condição pós-moderna nos encorajasse a adotar uma versão do ateísmo, em contraposição ao agnosticismo, que rejeite o religioso como modo de orientação.

O ponto de vista da autora está ancorado nas discussões teóricas ligadas à crítica cristã e judaica como promessas de retornos renovados para a guia da vida coletiva social e jurídica. A existência pensada após todos os conflitos do final do século passado está impregnada nas maneiras de pensar desses teóricos, usados para o debate proposto pela autora. As instabilidades políticas, mas também ética e moral, são relativamente pensadas pelo âmbito ontológico como promessa de um novo tempo em que as ressignificações das velhas crenças Iluministas, chegadas ao limite pelas experiências seculares durante a centúria dos novecentos, são prostradas em frente ao dilema pós-moderno da identidade, da crítica à razão e as existências destoantes dos códigos instaurados pelos idos tempos de muita influência sacra das religiões.

Diante dos dilemas e debates executados em seu texto, Spargo coloca as noções de ágape e êxtase. Recuperando os sentidos mais ou menos originais da primeira palavra, provinda do grego antigo, a autora ronda a configuração semântica moderna em torno de “caridade”, já que na origem do termo significava “amor ao próximo”, uma das muitas palavras para expressar os sentimentos do moderno “amor”. Essa discussão advém de Žižek (2015). “Teoricamente, a noção de ágape apresenta uma maneira de formular uma atitude em relação aos outros, e ao Outro […]” (SPARGO, 2017, p. 73).

O êxtase, certamente apreendido também do sentido do grego antigo, revela a preocupação da elevação espiritual pelo ágape, ou seja, pelo respeito, compromisso ético e empatia pelo Outro. Neste caso, o pensamento da autora em assumir preceitos críticos da teoria queer para o aprendizado religioso pode parecer um tanto estranho à primeira vista, entretanto, a preocupação de Spargo reside justamente no pensamento mais radical queerizante, qual seja o de orientações éticas que lutam contra a exclusão e a marginalização.

Exemplificando seu ponto de vista entre o religioso e o queer, a autora cita performances drag dos EUA com canções gospel tradicionais daquele país. Neste sentido, vale frisar que no Brasil a questão de sujeitas/os queer no seu relacionamento religioso tem ganhado muita força, não porque os fundamentalistas cristãos despendem preconceitos contra essa população, mas sim pelo direito dessas pessoas queer à sua prática religiosa, notoriamente cristã. A arte queer e o religioso tomaram um contorno bem brasileiro no início de 2020 com o lançamento da música Rajadão, da popstar drag queen, Pabllo Vittar. O single reúne em seu conteúdo lírico um hino gospel evangélico, somado a uma produção musicalmente marcada por uma miscelânea sonora entre batidas sintéticas eletrônicas EDM e melodias brega-funk. Foi rapidamente parar no topo dos assuntos mais comentados entre a comunidade LGBTQI+ brasileira (ganhando um videoclipe durante a quarentena). Isso seria talvez Deus saindo do armário “[…] por um processo de queerização teológica” (ALTHAUS-REID, 2003, p. 3 apud SPARGO, 2017, p. 78).

CONSIDERANDO A QUEERIZAÇÃO

Ambos os ensaios de Tamsin Spargo, selecionados nesse volume preparado pela editora Autêntica, foram cuidadosamente pensados para o diálogo contemporâneo após entrarmos, definitivamente, nos anseios da deeper and deeper década de 2010. O Brasil já não se pareceria com o que fora, sociopoliticamente até 2015, apesar de a cultura queer ter ganhado um novo maravilhoso contorno a partir da produção divulgada pela internet de artistas drag queens, transgêneros/as, gays e lésbicas.

A posição dos textos também chama a atenção: primeiramente um ensaio crítico acerca da influência da obra de Michel Foucault na formulação dos estudos e teorias queer, sendo protagonista o seu pensamento em História da Sexualidade, no primeiro volume “A vontade de saber”. E, na esteira dessas questões, um texto inédito em português de Spargo, sobre religiosidade, ética e os limites entre o sagrado e o secular para o mundo do terceiro milênio. O sentido reside, principalmente, na abordagem ética do pensamento queer para a relação de religiosidade de sujeitas/os em nosso contemporâneo. Assim, primeiro compreender a teoria, o pensamento queer, depois entender a abordagem de Spargo para unir religião e uma ética queer num mesmo ensaio, ideias aparentemente tão díspares e brilhantemente executadas nesse texto que pode deixar o/a leitor/a em êxtase!

O principal limite de seu principal ensaio, sem dúvida, é a discussão da transexualidade relegada ao fundo do pensar, naquele texto. Visivelmente não é levada um debate à altura a questão da linguagem performativa elaborada por Butler (2015), e rediscutida por ela (2019), de forma a refletir acerca das agências queers e a identidade formulada em regulações generificadas a partir da linguagem. Em certa dose, Spargo traz isso para seu texto, é preciso admitir que a autora tenta compreender várias ideiaschaves e pressupostos que formulariam as centralidades do pensamento de pesquisadoras/es queers entre os anos 1980 e 1990. Em 2018, no VI Congresso Internacional de História – “História e os desafios do século XXI: política, feminismos e performances de gênero”, Spargo (2020, p. 38) profere em sua conferência uma atualização e “retificação” do que fora o seu célebre artigo, vinte anos antes:

Uma das mudanças mais notáveis desde que escrevi Foucault e a teoria queer tem sido a atenção significante dada aos assuntos transgêneros, intersexuais e não binários nos âmbitos acadêmico e ativista em vários contextos, inclusive nas estruturas jurídicas e discursivas associadas ao Reino Unido.

Mesmo que a autora privilegie a sua terra natal (Reino Unido) e os Estados Unidos como lugares geopolíticos para se pensar todas essas questões, as proposições para países como o Brasil já chegariam pelas influências estadunidenses nas discussões de Guacira Lopes Louro e Denilson Lopes (SOUZA; BENETTI, 2013). Não obstante, a influência queer à moda brasileira das leituras de Spargo são riquíssimas e perpassam uma longa trajetória, desde atriz e teatróloga até sua produção acadêmica. Certamente, tendo passado duas décadas desde a escrita de um ensaio, e quase duas para a publicação do outro (em inglês), os trabalhos ainda são de suma importância para apresentar e guiar a leitura introdutória e a compressão sobre o mundo contemporâneo frente às identidades pelos estudos queer.

Notas

1 Cf. Site oficial de Rogério Bettoni. Disponível em: https://rogeriobettoni.com/?fbclid=IwAR15iDsakZT-mUVey75XVevrvAHpbgVD344rfh4orkvjmw6bJjzso63r_k. Acesso em: 13 maio 2020.

2 Do ponto de vista de cronônimos, os atentados de 11 de setembro de 2001 passaram a sugerir um ponto de término do século XX (para Hobsbawm um breve século), mas também o início de uma nova era que marcava também no tempo calendário a passagem de século e a passagem de milênio. Contudo, a pandemia de COVID-19 já começa a ser entendida enquanto cronônimo de início do século XXI, discutido por Lilia Schwarcz (2020).

Referências

BUTLER, Judith. Corpos Que Importam: os limites discursivos do “sexo”. Trad. Veronica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições: Crocodilo, 2019.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

GOBBI, Nelson. Escritora Judith Butler sofre agressão no aeroporto de Congonhas. O Globo, Rio de Janeiro, 10 nov. 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/escritora-judith-butler-sofre-agressao-noaeroporto-de-congonhas-22054565. Acesso em: 13 maio 2020.

GRUPO AUTÊNTICA. Argos. 2017a. (Coleções). Disponível em: https://grupoautentica.com.br/autentica/colecoes/96 . Acesso em: 14 maio 2020.

GRUPO AUTÊNTICA. Press kit: “Foucault e a teoria queer”. 2017b. (Releases). Disponível em: https://grupoautentica.com.br/fique_por_dentro/releases/ensaios-detamsin-spargo-chegam-ao-brasil-pela-autentica-editora/440. Acesso em: 14 maio 2020.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. 3. ed. rev. amp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. (Coleção Argos).

NELSON, Maggie. Argonautas. Tradução: Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. (Coleção Argos, 1).

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quando acaba o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. (e-book). Disponível em: https://www.amazon.com.br/dp/B08D9T62H6/?&tag=sitecompanhia-20. Acesso em: 01 set. 2020.

SOUZA, Fábio Feltrin de.; BENETTI, Fernando José. Abjeções ao Sul: uma reflexão sobre os estudos queer no Brasil (1990-2000). In: SEMINÁRIO FAZENDO GÊNERO, 10., 2013, Florianópolis. Anais […]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2013. Disponível em: http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1373323790_AR QUIVO_abjecoesaosul.pdf. Acesso em: 31 ago. 2020.

SPARGO, Tamsin. Agape and Ecstasy: considering post-secular orientations. Argument & Critique, Liverpool, mar. 2013. Disponível em: https://www.argumentcritique.com/publications.html. Acesso em: 25 ago. 2020.

SPARGO, Tamsin. Foucault e a teoria queer: seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares. Posfácio de Richard Miskolci. Tradução: Heci Regina Candiani. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 96 p. (Coleção Argos, 2).

SPARGO, Tamsin. Política sexual na contemporaneidade. In: SANTOS, Martha S.; MENEZES, Marcos Antonio de; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2019.


Resenhista

Antonio Ricardo Calori de Lion – Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus de Assis. O Presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)Código de Financiamento 001. As discussões destas notas críticas fazem parte do projeto de doutorado “Um corpo queer: gênero e transformismo no teatro de revista dos anos 1950” orientado pela Prof.ª Dr.ª Zélia Lopes da Silva. E-mail: antonio.lion@unesp.br


Referências desta Resenha

SPARGO, Tamsin. Foucault e a teoria queer: seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares. Posfácio de Richard Miskolci. Trad. Heci Regina Candiani. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. Coleção Argos, 2. Resenha de: LION, Antonio Ricardo Calori de. Tamsin Spargo e a Teoria Queer. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 17, n. 2, p.730- 743, Jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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