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Fórmula para o caos: a derrubada de Salvador Allende 1970-1973 | Luiz Alberto Moniz Bandeira

“Fórmula para o caos”, expressão extraída de um telegrama da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), é o nome que o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira escolheu para seu livro sobre o golpe de Estado que depôs Allende, no Chile. O autor parte do pressuposto de que seria impossível se chegar à efetivação do modo de produção socialista pela via democrática como desejava Allende, e menos ainda pelo caminho das armas, como defendiam alguns movimentos revolucionários, já que a conjuntura local, regional e internacional era totalmente desfavorável. Recorre à história das guerras pela independência e da formação do Estado nacional na América Latina para explicar o surgimento do militarismo, que gerou o caudilhismo e que, por sua vez, criou a cultura do golpe de Estado contra projetos nacional-populares.

Não se pode esquecer, no entanto, que o triunfo da Unidade Popular em 1970, não se deu apenas por conta de uma divisão interna na classe dominante, mas culminou de um prolongado esforço de formação de consciências, de organização popular e de lutas comunitárias, cujas origens remontam ao início do século XX, no Chile. Por isso, a transição ao socialismo chegou a ser uma possibilidade nos anos 1970, pois não se tratava de um projeto de um grupo de intelectuais ou de uma ação limitada de alguma vanguarda desvinculada das massas, mas sim de algo surgido dessas mesmas massas e das organizações que não falavam em nome do proletariado, mas que efetivamente o representavam orgânica e ideologicamente. Os trabalhos desenvolvidos por Cueva e Vuskovic apontam para essas ideias2

Moniz Bandeira responsabiliza tanto os movimentos e partidos radicais de esquerda como os de direita pelo caos no Chile (1970-1973), isentando a figura de Allende e defendendo a tese da aliança nacional. Aponta contradições nas forças de esquerda entre as perspectivas dos “gradualistas” e dos “rupturistas”, já que os primeiros defendiam a instauração gradual do socialismo pela via pacífica, ao passo que os segundos buscavam a ruptura da legalidade e o desmantelamento do Estado existente. Essa atuação marcava a ambiguidade política da Unidade Popular e impedia a execução consequente de seu programa de governo. O autor afirma que “Allende e os comunistas, mais realistas, tinham consciência da ameaça do golpe de Estado, que cada vez mais se configurava, como consequência do apressamento e da radicalização do processo revolucionário. Pretendiam avançar gradualmente no que chamavam de construção do socialismo” (p.338).

Por outro lado, mostra, ao longo do livro, que o golpe de Estado acontecido em 11 de setembro de 1973 fora sucessivamente postergado por três razões: a) a defesa intransigente do legalismo do general Carlos Prats, na condição de comandante-em-chefe do Exército; b) a incerteza da unidade das Forças Armadas na derrubada de um Presidente constitucional; e, c) a resistência armada de grupos revolucionários pró-Allende e o consequente receio de uma guerra civil. Isso comprova que a sociedade chilena estava profundamente dividida em uma crescente luta de classes, podendo qualquer um dos lados sair vencedor. Era exatamente essa conjuntura que dava à esquerda da Unidade Popular as razões para avançar na radicalização do processo rumo ao socialismo. No dia 4 de setembro de 1973, data em que o governo de Allende completava três anos desde que fora eleito, uma multidão calculada em 800 mil pessoas marchava pelas ruas de Santiago em apoio ao Presidente. Isso, apenas sete dias antes do golpe.

Moniz Bandeira atribui a “fórmula para o caos” exatamente aos movimentos e partidos de esquerda, entre eles, o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), o Movimento de Ação Popular (MAPU), uma facção da esquerda do Partido Socialista (PS) e uma parte da esquerda cristã do Partido da Democracia Cristã (PDC), como já mencionado. Quanto ao MIR, diz que sua radicalização estava servindo, objetivamente, “para lançar as classes médias na oposição, reduzir mais e mais as bases sociais de sustentação do governo, desestabilizá-lo e justificar o golpe de Estado” (p.346). Enquanto isso “Allende, o PC e os setores moderados do PS compreendiam que a Unidade Popular não tinha condições de avançar mais rapidamente o processo revolucionário, dentro da moldura constitucional, inclusive porque a oposição era predominante no Congresso” (339). Na verdade, essa posição reformista é que vai permitir a organização e o avanço da contrarrevolução.

Moniz Bandeira dedica muito tempo à análise das ditaduras militares próximas do Chile, passando a ideia de um determinismo histórico, já que apresenta esses governos impostos pelas Forças Armadas – com o apoio explícito dos Estados Unidos – como inevitáveis. Chega a defender a tese de uma aliança nacional com a burguesia para restaurar a democracia representativa, não se dando conta de que, essa mesma burguesia, não teria permitido tocar na economia de mercado e tampouco realizar as pretendidas reformas. Na verdade, tal estratégia não teria deixado de ser uma capitulação, defendida não apenas pelo Partido Comunista chileno (PCch), mas de toda a região.

O autor deixa, ainda, de dar a devida atenção às profundas transformações econômicas que abriram caminho para um desenvolvimento nacional independente em favor da grande maioria da população chilena, tais como a nacionalização do cobre, do ferro, do salitre, do carvão e de outros recursos básicos do país; a estatização do sistema bancário; a redução drástica do latifúndio; ao fim do controle do monopólio privado da indústria siderúrgica, do cimento e de outros setores industriais, assim como ao término da grande distribuição atacadista; por fim, a abertura de canais de participação por meio dos quais os próprios trabalhadores vão tomando o controle dessas atividades, segundo descreve Pedro Vuskovic em seu texto “Dos años de política económica del gobierno popular”, no livro por ele organizado e citado anteriormente. (p.9-10).

As medidas do Programa do Governo Popular não só enfraqueceram a burguesia como lhe tiraram a sustentação de seu poder econômico, fazendo com que ela perdesse parte da dominação de classe. Por isso, ela trabalhou diuturnamente, assessorada pela CIA, contra a resolução dos problemas e, ao mesmo tempo, pelo seu aprofundamento, preparando o caminho para o golpe de Estado.

Moniz Bandeira apresenta um longo estudo (640 p.) sobre a derrubada de Salvador Allende depois que integrantes de movimentos revolucionários e partidos políticos, intelectuais de universidades chilenas e estrangeiras, economistas e sociólogos já tinham feito suas avaliações sobre a via chilena para o socialismo. O que levou o historiador brasileiro a escrever sua versão dos fatos e sua análise desse golpe de Estado parece ter sido o acesso privilegiado que teve às fontes primárias do Itamaraty, concessão inaceitável, visto que elas deveriam estar à disposição de todos os pesquisadores. Chega a fazer um agradecimento especial ao ministro Hélio Vitor Ramos Filho, diretor do Departamento de Comunicação e Documentação (DCD), por ter autorizado a desclassificação de documentos que proporcionaram todas as facilidades para a realização da pesquisa, além de ceder o prefácio ao embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral (p.40-41).

Sua análise dos acontecimentos chilenos é feita, pelo manuseio preponderante de documentos brasileiros, enviados de Santiago para Brasília pelo embaixador do Brasil da época, Antônio Cândido da Câmara Canto, que servia aos interesses das forças conservadoras. Nesses escritos está, portanto, a visão de um golpista que não esteve no centro do poder das forças chilenas que derrubaram Allende. Além dessa limitação, o autor se vale demasiadamente de fontes não primárias – como as memórias de Carlos Altamirano, Augusto Pinochet, Carlos Prats e Toríbio Merino – empobrecendo as informações e argumentações e, por outro lado, esquecendo-se de alguns livros muito significativos como Una sola lucha, de Pedro Vuskovic, e El golpe de Estado em Chile, de Agustín Cueva et alii.

Em outro momento da obra, o autor dedica um capítulo inteiro (cap. XV) na análise e descrição da ditadura uruguaia. Passa, com isso, a nítida impressão de ter encontrado uma caixa ou pasta com documentos inéditos sobre aquele regime e, querendo aproveitá-los para torná-los público, reservou um espaço enorme àquele país, sem mostrar as relações profundas com o golpe de Estado chileno. Mais proveitoso seria se tivesse apresentado a política internacional de Allende, que substituiu as fronteiras ideológicas das ditaduras de segurança nacional pelo pluralismo ideológico da Unidade Popular.

Fórmula para o caos foi lançado concomitantemente no Brasil e no Chile, precedido de ampla divulgação, no 35o aniversário da queda de Allende. A Editora Civilização Brasileira, possivelmente pressionada pela data, não teve o tempo necessário para rever os escritos que apresentam erros de grafia, de faltas de preposições e de conjunções, quando não de traduções equivocadas do espanhol e do latim (p.444) ou de datas alteradas (p.124). Embora tais equívocos não comprometam a leitura, mostram, no entanto, uma falta de rigor na impressão.

Por fim, não seria nada recomendável a citação do jornal Clarín, em destaque na capa do livro, elogiando o autor do trabalho, uma vez que esse mesmo periódico apoiou enfaticamente o golpe de Estado no Chile.

Nota

2 CUEVA, Agustín. Dialéctica del proceso chileno: 1970-1973. In: VUSKOVIC, Pedro (Org.) El golpe de Estado em Chile. México: Fundo de Cultura Econômica, 1975, p.132


Resenhista

Waldir José Rampinelli – Professor do Departamento de História e coordenador do Núcleo de Estudos de História da América Latina (NEHAL) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC.


Referências desta Resenha

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Fórmula para o caos: a derrubada de Salvador Allende 1970-1973. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Resenha de: RAMPINELLI, Waldir José. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 8, 2009. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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