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Formação ética: do tédio ao respeito de si – LA TAILLE (EPEC)

LA TAILLE, Y. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009. 315 p. (ISBN 978-85-363-1692-5). Resenha de: RAZERA, Júlio César Castilho. O ensino de Ciências entre a cultura do tédio e do sentido. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.13, n.01, p.157-164, jan./abr., 2011.

A BUSCA DA VERDADE: ESPERANÇA DE UM MUNDO MELHOR

A preocupação com os rumos tomados pela sociedade contemporânea é observada na literatura em diversas discussões. Dentre elas, incluem-se aquelas que inserem o relevante papel da educação como referencial de esperança para um mundo mais justo, digno e harmonioso. Dentro dessa perspectiva, na qual a Educação é inserida na construção de um futuro ética e moralmente modificado para melhor, encontramos nos argumentos e reflexões de Jares (2005) e La Taille (2009) subsídios de interesse para o ensino de Ciências, porque ambos colocam a verdade como valor a ser buscado na dimensão educativa escolar. Ao analisar o atual panorama sócio-político mundial, com seus sérios problemas e conflitos, Jares (2005, p. 126) coloca a Educação como sede principal da promoção de esperança, justiça e dignidade em virtude do potencial de seu trabalho sobre a busca da verdade. “Educar a partir da e para a verdade” é um de seus pressupostos. Para Jares (2005, p. 196), “precisamos de uma pedagogia de esperança que nos guie na direção do crítico caminho da verdade”. E complementa, afirmando que “a esperança se constrói por meio da busca da verdade”. A obra de La Taille, que é objeto desta resenha, também trilha por esse mesmo caminho, mas com o diferencial de conter consistentes argumentos, análises e reflexões fundados na Psicologia. Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. O conjunto de suas pesquisas e teorias constitui um referencial relevante, extrapolando a área da Psicologia Moral em que atua. “Formação ética: do tédio ao respeito de si” tem essa característica abrangente, pois encontramos nessa obra subsídios de interesse que também podemos trazer para o ensino de Ciências.

De modo especial, provoca nossa atenção quando as abordagens e reflexões do autor enfatizam a verdade como um importante valor a ser buscado na dimensão educacional, a fim de evitar a cultura do tédio. Nesse caso, o ensino de Ciências também tem o seu papel na construção daquilo que La Taille chama de cultura do sentido, cuja expectativa é de um futuro ética e moralmente modificado para melhor. Com o embasamento da Psicologia Moral, podemos encontrar neste livro argumentos proveitosos que dirigem nossa atenção para uma efetiva aproximação entre o ensino escolar de Ciências e a formação ético-moral. Uma aproximação teoricamente orientada pela autonomia que, por exemplo, pode atuar em prol do processo de compreensão crítica da Ciência e da atividade científica por parte do aluno em sala de aula. Vejamos.

O QUADRO DA FORMAÇÃO ÉTICO-MORAL EM LA TAILLE

“Formação ética: do tédio ao respeito de si” divide-se em duas partes que, respectivamente, são assim denominadas: “Plano ético” (pp. 13-156) e “Plano moral” (pp. 157-310). Cada parte é constituída por dois capítulos. No conjunto dessa obra, que tem como referência teórica e fonte inspiradora um outro trabalho seu anterior (LA TAILLE, 2006), o autor faz abordagens correlativas entre o plano ético e o plano moral, isto é, entre a “vida boa” e “os deveres” de ser justo, generoso, digno. No plano ético entram em discussão a dimensão contextual contemporânea, intitulada de “Cultura do tédio” (capítulo 1) por causa de sua característica de predominância pessimista, e a dimensão educacional, chamada de “Cultura do sentido” (capítulo 2). O plano moral segue com o mesmo formato, cujas abordagens passam pela “Cultura da vaidade” (capítulo 3) e, posteriormente, pela “Cultura do respeito de si” (capítulo 4). Nas discussões que faz de ambos os planos, La Taille segue a mesma lógica de contraposição: primeiro analisa as características da sociedade atual, nos capítulos ímpares, depois discute os aspectos educacionais para mudanças do status quo, nos capítulos pares. Em suma, o autor nos apresenta uma leitura do presente em que sobressai na nossa sociedade a cultura do tédio, da vaidade, do pessimismo. A persistir esse panorama, configurado pela cultura do tédio, não encontramos expectativa de um futuro modificado para melhor, pois essa expectativa somente é possível na cultura do sentido, por meio da Educação ético-moral. Pesquisas diversas mostram que a maioria das pessoas é heterônoma, isto é, tendem a apenas aderir às idéias e valores que circulam no meio social em que vivem. Nesse caso, uma mudança de perspectiva para um futuro melhor implica a formação moral para a autonomia: “somente uma cultura do sentido pode vencer uma cultura do tédio” (LA TAILLE, 2009, p. 79). Para tanto, a formação moral no contexto da escola e das disciplinas torna-se relevante e, até mesmo, imprescindível. Essas ideias passam pelo  potencial das escolas e das disciplinas escolares na perspectiva de mudanças, pois em qualquer cenário de futuro a Educação aparece como atividade inconteste para que a cultura do sentido seja manifestada. Concordamos com La Taille ao dizer que cabe à escola tomar parte na formação moral de seus alunos e não apenas ficar restrita a transmitir conhecimentos, sem aproveitar-se deles com vistas à melhoria do futuro. Afinal, “os próprios conhecimentos transmitidos na escola são portadores de sentido que transcendem a especificidade de cada matéria. A escola é uma verdadeira usina de sentidos, […] e não há outra instituição social de que se possa dizer o mesmo” (LA TAILLE, 2009, p. 81). Para a escola e, em especial, para a busca da verdade como valor, devemos nos voltar para a construção daquilo que La Taille chama de “cultura do sentido”, pois ela não existe sem Educação para o sentido. E para falar de uma Educação para o sentido, o autor enfatiza a relevância da busca de um valor em especial: a verdade. Ainda que haja limitações, erros e ilusões quando mencionamos o termo “verdade”, o empenho nessa busca é investimento para a cultura do sentido, ou seja, a formação moral também perpassa por esse valor (da verdade).

Em suma, eleger a verdade como valor não somente é um bem em si mesmo para a procura de sentido para a vida: a capacidade de a ela chegar é também ferramenta necessária para se situar com um mínimo de precisão em um universo político de tantas mensagens dúbias, de tantas afirmações imprecisas, de tantas análises confusas, de tantas promessas duvidosas, e também de claras tentativas de enganação. Para sobreviver em tal ambiente equívoco, se faz necessário a chamada capacidade de crítica, não entendida como disposição a julgar negativamente, mas sim como vontade de passar o que se ouve, se vê, se pensa e se diz pelo crivo da razão, para debelar possíveis erros, possíveis mentiras, possíveis ilusões. Não há crítica honesta sem amor à verdade (LA TAILLE, 2009, p. 91, grifo nosso).

PARA BUSCAR A VERDADE

Baseado em Williams (2006), La Taille aponta dois obstáculos que dificultam a busca da verdade: os interiores e os exteriores. Os obstáculos exteriores são inerentes aos objetos e os interiores são inerentes ao sujeito. Sobre a superação dos obstáculos exteriores, que se referem a objetos de pesquisa, a psicologia não tem o que auxiliar. Esse auxílio pode ser dado, no entanto, na superação dos obstáculos interiores, relacionados ao sujeito. Sobre esses obstáculos, La Taille diz que podem ser de três tipos, os quais a Educação pode ajudar a superá-los: lacunas no conhecimento, fragilidade ou insipiência das ferramentas intelectuais e ausência de determinadas virtudes.

a) Lacunas no conhecimento: Para que um sujeito busque a verdade (ou confirme o que é transmitido) sobre algum evento ou fenômeno, ele precisa lidar com informações e dados diversos, ou seja, há necessidade não apenas de apropriar-se de conhecimentos específicos, mas também correlacioná-los e observálos de maneira crítica para resolver o seu problema. Para La Taille (2009, p. 97), compete essencialmente às instituições educacionais a tarefa de trabalhar com essas lacunas e “fazer que as pessoas possuam conhecimentos variados”, especialmente no campo científico e filosófico.

b) Ferramentas intelectuais: Ter somente conhecimentos não é suficiente para desvendar verdades. De acordo com La Taille, além de conhecimentos (conteúdos) é necessário que os indivíduos também mobilizem formas precisas de raciocínio. “Para raciocinar, ou seja, para produzir conclusões fiáveis, o ser humano dispõe de duas ordens de ferramentas intelectuais: as operações e os procedimentos”. Sobre as operações, o autor baseia-se no sentido piagetiano de “ações interiorizadas reversíveis, […] porque todo pensar é uma ação”. As operações são ferramentas da mente que usamos para estruturar e promover ajustes na lógica de nosso raciocínio. “Não houvesse operações, não haveria critérios que nos permitissem afirmar que um raciocínio é válido ou não. A lógica […] garante consistência, objetividade e possibilidade de comunicação” (LA TAILLE, 2009, p. 101). Nesse caso, trabalhar operacionalmente com a verdade implica aprendizagem sobre as possibilidades de falhas nas nossas observações e conclusões para que não sejam precipitadas e falhas ou contaminadas, por exemplo, por ilusões de óptica ou por equívocos de construção de lógica. Em discussões que envolvem a natureza da Ciência temos diversos exemplos ilustrativos desses problemas. Sobre os procedimentos, são sequências de ações para se chegar a determinados resultados, que podem ou não ser interiorizadas. Podemos dizer que, enquanto a operação corresponde à lógica interna do pensamento, os procedimentos correspondem aos passos por ele percorridos. Para auxiliar o entendimento entre ambos, pode-se fazer uma analogia interessante ao dizer que “a operação está para a teoria como o procedimento está para o método”, pois, como sabemos, os métodos de pesquisa são criados e utilizados para verificar a validade de teorias. “Logo, se não há busca da verdade possível sem postura teórica, tampouco é possível chegar a ela sem procedimentos adequados” (LA TAILLE, 2009, p. 104). Isso posto, La Taille insere aspectos compreendidos por nós como úteis aos propósitos correlacionais que vislumbramos para o ensino de Ciências.

[…] embora variados procedimentos possam ser criados pelos alunos para dar vida prática a suas operações e chegar a verdades múltiplas, na maioria das vezes eles são ensinados pela escola. Melhor dizendo: aqueles atinentes à ciência são apresentados pela escola. Ou deveriam. […] para que os alunos não sejam coagidos a se limitarem a acreditar nas verdades produzidas pelos cientistas, é preciso que tenham acesso aos variados procedimentos por intermédio dos quais os pesquisadores colocam à prova suas teorias. Não se trata de desconfiança em relação a eles, mas sim da necessidade de se apoderar, na medida do possível, dos procedimentos que eles criam e empregam para chegar a suas respectivas verdades (LA TAILLE, 2009, p. 105).

Para La Taille (2009, p. 105), não existe procedimento geral possível de ser aplicado a todos os problemas. Cada um deles tem um correspondente. Contudo, quando é implementado um trabalho com o aluno que envolve busca da verdade, não há como excluir o ensino de procedimentos. “Trata-se de mostrar a ele [aluno] que a busca da verdade depende de uma ‘disciplina’ da reflexão, disciplina essa que se traduz pela criação e emprego de procedimentos”. Acaba-se demonstrando, então, que a busca da verdade não é tarefa fácil e que sua realização leva em conta a lógica e os procedimentos correspondentes dessa busca. Para reforçar esses argumentos, o autor fala sobre os resultados positivos obtidos da iniciação à pesquisa científica que dá a seus alunos, pois eles trabalham com teoria, métodos e procedimentos. E complementa dizendo que as escolas básicas, guardando as devidas proporções, poderiam fazer o mesmo.

c) Virtudes: A tese é de que sem determinadas virtudes, mesmo tendo mobilizado conhecimentos, operações e procedimentos, a pessoa não se dispõe a buscar a verdade, satisfazendo-se mais facilmente “com ideias prontas, com fatos não comprovados, com preconceitos de toda ordem, com reflexões brumosas e afirmações peremptórias”. (LA TAILLE, 2009, p. 106). Nesse caso, a verdade entendida como valor requer virtudes de boa-fé, exatidão, paciência, simplicidade e humildade para buscá-la. Apoiando-se em Comte-Sponville (1995), La Taille diz que uma pessoa dotada de boa-fé busca e respeita a verdade. As virtudes decorrem de desenvolvimento pela aprendizagem, porque não são inatas e nem correspondentes a traços de personalidade biológica. O que coloca a escola em evidência, porque é instituição em que o amor e o respeito pela verdade são (ou deveriam ser) fundamentais, desde o nível infantil até a universidade. “Um professor que não seja inspirado pelo mesmo amor [à verdade, que também os cientistas devem ter] é, além de pessoa inconsequente e alienada, um possível cúmplice de possíveis imposturas: como pode ele sem critérios de veracidade, ensinar o que quer que seja?” (LA TAILLE, 2009, p. 109). De acordo com os argumentos de La Taille (2009, p. 110), a verdade implica exatidão. Exatidão entendida “como apreço pela clareza, pela precisão, pelo rigor, pelo controle”. Portanto, quem se inspira na verdade sabe que ideias vagas, raciocínios lacunares, frases obscuras são obstáculos à sua busca. Pode-se ter uma opinião, mas que não se confunde com verdade. Nesse ponto, o autor chama nossa atenção para algumas estratégias de aula que tanto podem corresponder a ricos modelos de exatidão como permanecerem somente no nível de troca de opiniões e, nesse caso, ajudando a fortalecer o relativismo em detrimento da verdade. Vê-se, portanto, que a forma, a estratégia de aula tem papel de destaque nessa questão da busca da verdade e, ainda, que as aulas de Ciências encaixam-se igualmente nesse papel por causa das características de seu objeto, ou seja, a Ciência. Ao discutir as estratégias de aula, La Taille retoma as ideias de Piaget acerca das relações de coação e de cooperação, com a ressalva de que as relações de cooperação defendidas por Piaget não excluem aulas expositivas. Da mesma forma que o método ativo envolvendo as relações de cooperação não é garantido, por si só, no simples fato de promover discussões entre alunos. Relações de cooperação, na perspectiva piagetiana, devem apresentar as seguintes características que convergem para a participação simétrica dos membros: saber ouvir os outros; procurar expressar-se de forma clara; avisar sobre possíveis mudanças de ideia; usar os mesmos conceitos. Essa perspectiva, aliás, contém similaridades com as ideias apresentadas na teoria habermasiana da ética do discurso. Então, fica esclarecido que convencimento é diferente de imposição e, consequentemente, ambos implicam aspectos antagônicos em relação à moralidade. Ainda que tenhamos priorizado aspectos pontuais, deve ter ficado ao leitor – pelo menos essa foi nossa intenção – uma percepção de relevância dessa obra, que é completa e provocadora de muitas reflexões. Embora trabalhe com um conteúdo complexo e de certa especificidade na área da Psicologia, o conjunto de argumentos trazidos por La Taille acaba implicando importantes subsídios referenciais e de reflexão, tanto para investigadores da área de Educação em Ciência como para o trabalho do professor em sala de aula.

Referências

COMTE-SPONVILLE, A. Petit traité des grandes vertus. Paris: PUF, 1995.

JARES, X. R. Educar para a verdade e para a esperança: em tempos de globalização, guerra preventiva e terrorismos. Porto Alegre: Artmed, 2005.

LA TAILLE, Y. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006.

LA TAILLE, Y. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.

WILLIAMS, B. Vérité e véracité. Paris: Gallimard, 2006.

Júlio César Castilho Razera – Doutorando em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, Bauru, SP). Professor do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, Jequié, BA). E-mail: juliorazera@yahoo.com.br

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Itamar Freitas

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