Formação das fronteiras latino-americanas | Fábio Aristimunho Vargas
As fronteiras são um tema conceitualmente polissêmico e um objeto multidisciplinar, cujos estudos são de interesse acadêmico diverso, abarcando os campos da Geografia, Relações Internacionais, Direito, História, entre outros. Estudos que procuram contribuir para o entendimento dos processos que levaram à definição dos limites territoriais entre os Estados são de grande valia nessa temática. É nessa perspectiva que o livro Formação das Fronteiras Latino-Americanas, publicado pela Fundação Alexandre de Gusmão em 2017 (640 páginas), insere-se como uma importante contribuição.
O autor é mestre em Direito Internacional, possui doutorado em Integração da América Latina e atua como professor em cursos de Direito e de Relações Internacionais em universidades da região da Tríplice Fronteira (Argentina-Brasil-Paraguai) onde vive. Sua produção intelectual segue a mesma lógica da temática de seu livro, de sua formação e de sua vivência, com viés inclinado ao Direito Internacional, tratando questões de fronteira.
O livro é resultado da tese de doutorado do autor e está organizado em quatro capítulos, sendo que o terceiro é o mais extenso de todos, com mais de trezentas páginas, enquanto que os demais possuem entre sessenta a oitenta páginas. O livro está ilustrado com figuras/mapas em toda a sua extensão, não havendo menção de que tais elementos tenham sido produzidos exclusivamente para a obra, conforme verifica-se nos créditos à autoria.
A obra analisa “os processos históricos de formação das fronteiras entre os países da América Latina, assim como sua oportuna formalização pelos agentes políticos e diplomáticos, materializada em instrumentos formais juridicamente vinculantes no plano internacional” (VARGAS, 2017, p. 34). Com isso, objetiva apontar contribuições dos casos latino-americanos de delimitação de fronteiras para a disciplina de Direito Internacional da Delimitação de Fronteiras, que é parte do Direito Internacional Público. Para tanto, do ponto de vista metodológico, vale-se da História e do Direito Internacional Público.
Entende o processo de consolidação dos Estados nacionais como o momento de formação das fronteiras e definição de limites. O momento de formalização das fronteiras é entendido pelo autor como o conjunto de atos que estabelecem as linhas que demarcam os limites territoriais entre os Estados.
A temática e o objetivo do livro geram implicações conceituais, tais como definir o que é América Latina e o que é fronteira, duas questões sobre as quais não há uma intersubjetividade consensual na comunidade acadêmica. Nesse livro, o autor delimita América Latina como o conjunto de Estados soberanos das Américas que têm como língua oficial, ou uma de suas línguas oficiais, um idioma de origem latina e que guardam profundas afinidades históricas, sociais, políticas e econômicas entre si (VARGAS, 2017, p. 31). Com isso, chega a um universo de vinte países e delimita o estudo a quarenta linhas de fronteira. Para o conceito de fronteira, é dedicado o capítulo inicial do livro.
No primeiro capítulo (Das fronteiras), é discutido o conceito de fronteira, são apresentados os tipos de fronteira existentes, bem como as maneiras de formalização dos limites territoriais. Considerando os referenciais do autor, percebe-se que o capítulo é construído com base no Direito e na Geografia, que permeiam a discussão dessa parte do livro, além de referências a documentos, mais presentes na parte final do capítulo. Sobre os autores clássicos da Geografia, o mais presente é Michel Foucher, havendo ainda menções a Friedrich Ratzel. Todavia, não são utilizadas as discussões de Jacques Ancel e de Claude Raffestin, que poderiam ter enriquecido o texto, haja vista ao período que o autor analisa complementarmente, a discussão com referenciais da História e com obras que tratam a fronteira como espaço de socialização, composto por uma comunidade imaginada dotada de identidade própria (VARGAS, 2017, p. 36) fazem a costura da ideia de fronteira apresentada na obra.
Essa ideia é bem discutida nos primeiros dois terços do capítulo e finalizada com a utilização de tratados e convenções na parte final, relativa aos tipos e à formalização das fronteiras. Ao discutir a fronteira como fator de insegurança, concentra-se em poucas abordagens do ponto de vista bibliográfico. O autor destaca principalmente o crime organizado, as migrações e o terrorismo como fatores geradores da insegurança e utiliza as obras de Bernardo Sorj para tal discussão. A opção do autor parece suficiente para os objetivos do livro, mas não se pode deixar de citar que outros estudos têm contribuído com aportes para a atualização dessas questões, notadamente na Europa e nos Estados Unidos, visto que o terrorismo e as migrações também são tema de debate ao norte da linha do equador. Um exemplo de centro de estudos dessa temática é o projeto Lines in the Sand, liderado pelo pesquisador dinamarquês Noel Parker e apoiado pela British Academy, que reúne pesquisadores de diversos países e tem o olhar voltado para a Europa e as implicações do processo de integração para as fronteiras. Outro exemplo é a Association for Borderlands Studies, existente desde os anos 1980, que tinha ênfase em estudos sobre a fronteira entre Estados Unidos e México e com o tempo deixou de ter exclusividade nesse tema, estudando as fronteiras de maneira mais ampla.
O segundo capítulo do livro (Fronteiras na América Latina dos descobrimentos à descolonização) tem um cunho histórico e trata dos limites territoriais daquilo que mais tarde viria a ser América Latina, pois aborda o período dos descobrimentos ao que o autor chama de descolonização. Apesar de não definir um conceito de descolonização – o que pode ser um problema para o leitor mais crítico do tema da colonização e da reprodução posterior das práticas coloniais – é possível entender no decorrer do texto que se trata do período após as independências e que marca o início da formação dos Estados nacionais, o que é, de certa forma, apontado anteriormente pelo autor (VARGAS, 2017, p. 31). O capítulo aborda os tratados celebrados entre as metrópoles europeias, não somente Portugal e Espanha, mas também Inglaterra, França, Holanda, entre outros. Organizado de forma cronológica, para realizar a abordagem do período, o capítulo utiliza principalmente obras de autores brasileiros e, em menor número, de autores de língua espanhola, além dos textos originais dos documentos referentes aos tratados.
O terceiro capítulo (Formalização das fronteiras na América Latina), indubitavelmente, é o mais rico em informação, organizada e discutida, sobre o tema. No Brasil, as obras do Barão do Rio Branco são a referência sobre a questão fronteiriça e de formalização de limites e em cada país do mundo há referências históricas ou documentais que abordam suas delimitações territoriais. A inovação dessa obra é unificar um estudo sobre as fronteiras de vinte países latino-americanos, abordando as fontes primárias dos quarenta casos estudados, entre os vinte países. Nesse ponto, trata-se de um trabalho de fôlego e inovador sobre a América Latina. Apesar de tratar individualmente cada caso, no todo o capítulo constrói uma abordagem global e inovadora.
Além disso, tanto o capítulo dois como o capítulo três utilizam vasta documentação que necessita ser descrita para que a análise tenha sentido, o que com frequência leva textos semelhantes a apresentarem um caráter quase catalográfico. Esse é um diferencial do livro, que nos dois capítulos documentalmente mais densos apresenta uma constante amarração com a história, que impede o leitor de esquecer o propósito da obra. Em ambos os capítulos, a amarração realizada entre documentos e história forma um fio condutor bastante útil ao leitor e todos os documentos utilizados estão listados ao final do livro nas referências, em uma seção denominada. Documentos oficiais.
O capítulo final (Contribuições da América Latina para o Direito Internacional da Delimitação de Fronteiras) retoma uma abordagem de análise mais voltada ao direito, utilizando-se de todo o exposto nos capítulos anteriores, para cumprir o objetivo de apontar as contribuições dos casos latino-americanos Para isso, apresenta inicialmente os fundamentos da disciplina, que se ocupa de “estudar o conjunto de regras e princípios que regem o estabelecimento de limites, tanto terrestres quanto marítimos, entre os territórios de dois ou mais Estados” (VARGAS, 2017, p. 498).
A seguir, trata das contribuições latino-americanas a partir da análise de tratados e de diversos textos constitucionais, do século XIX (Brasil e Venezuela), do século XX (Argentina, Brasil, Colômbia, Cuba, Peru e Venezuela) e do século XXI (Bolívia e Equador), utilizando o método comparativo. Indica que a definição das fronteiras latino-americanas, apesar de ter passado por conflitos políticos e militares, na maioria dos casos teve um caráter de resolução de tais controvérsias por meios pacíficos. Credita essa característica a uma tradição surgida a partir da diplomacia territorial criada pelas potências ibéricas logo após a conquista dos territórios americanos.
A obra de Vargas é um importante material a ser indicado para todas as áreas da Ciência ocupadas com o tema das fronteiras, mas notadamente, é uma obra destacada nas Relações Internacionais, no Direito e na História. Principalmente por tratar-se de uma compilação inédita em relação ao tema tratado, passa a ser referência primária para estudiosos das fronteiras da América Latina.
Referências
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Obras do Barão do Rio Branco V: questões de limites exposições de motivos. Brasília: FUNAG, 2012.
PARKER, N.; VAUGHAN -WILLIAMS, N. Critical Border Studies: Broadening and Deepening the ‘Lines in the Sand’ Agenda. Geopolitics, n. 17, 2012. 727 –733.
VARGAS, F. A. Formação das fronteiras latino-americanas. Brasília: FUNAG, 2017.
Resenhista
Marcelino Teixeira Lisboa – Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA, Brasil. E-mail: loboarruda@hotmail.com
Referências desta Resenha
VARGAS, Fábio Aristimunho. Formação das fronteiras latino-americanas. Brasília: FUNAG, 2017. Resenha de: LISBOA, Marcelino Teixeira. Contribuições da América Latina para os estudos sobre delimitação de fronteiras. Diálogos. Maringá, v. 23, n. 1, p. 287-291, jan./abr. 2019. Acessar publicação original [DR]