Forças Armadas e Política no Brasil | José Murilo de Carvalho
Em 2015, o historiador José Murilo de Carvalho chamou a atenção para um episódio cuja gravidade havia passado despercebida no âmbito da opinião pública. O General Hamilton Mourão celebrou o golpe de 1964 sem despertar reação dos seus superiores ou da presidência da República. Uma luz amarela acendeu-se. Um sinal de alerta a desfazer a crença na reclusão dos militares às suas atividades profissionais. Significava a retomada do envolvimento das Forças Armadas na política brasileira?
Com a redemocratização do Brasil e a aprovação da Constituição de 1988, a agenda política foi tomada por outros assuntos mais urgentes, passando os militares a um papel secundário no quadro das preocupações dos analistas, da imprensa e das forças partidárias. Entretanto, a atuação dos militares nos recentes acontecimentos do País modificou tal percepção, restaurando a questão do protagonismo político dos militares. O livro de José Murilo é mais do que oportuno. Recoloca uma vez mais não só a necessidade, mas a urgência do estudo dos militares no passado e no presente da vida nacional. Trata-se de uma reedição ampliada, disponível em versão impressa e em formato digital, que oferece aos leitores, novos capítulos tanto sobre a história dos militares quanto da sua atuação recente.
De onde vem o interesse pelos militares? Estudante de sociologia na UFMG e militante da Ação Popular, viveu com perplexidade o golpe de 64, vendo-se na contingência de explicar a fácil vitória dos conspiradores e o papel das Forças Armadas. As interpretações diante do evento se dividiam. Para uns, os militares seguiam as diretrizes do imperialismo norte-americano e a intervenção teria sido iniciada em Washington como parte da Guerra Fria; outros enfatizavam o papel dos empresários e latifundiários sob a cobertura ideológica do IBAD e do IPES; uma terceira corrente assinalava os fatores econômicos ligados ao capitalismo dependente. De acordo com o autor, o golpe não era o resultado inevitável das circunstâncias e nenhuma das explicações era convincente. O desfecho dramático da crise do governo João Goulart somente podia ser compreendido como resultado das ações dos atores, essencialmente as forças políticas e as Forças Armadas, num contexto de radicalização, de voluntarismo e de desconfiança mútua em relação às regras constitucionais.
Como se vê na interpretação da crise de 1964, a primazia da variável política constitui o eixo da perspectiva que José Murilo nos oferece para entender os militares como atores fundamentais da história brasileira. Usualmente, a Guerra do Paraguai é apontada como um divisor de águas ao ter fortalecido entre os militares o espirito de corpo em um ambiente hostil às suas demandas, o que acabou por desaguar na questão militar e na derrubada da Monarquia. Convergindo com John Schulz (1994), considera que a divisão entre militares e civis iniciou-se na década de 1850, quando foi introduzido no Exército um novo sistema de promoções que privilegiava o mérito em vez da antiguidade. Foi estimulada a formação de uma contraelite insatisfeita com a situação do País e com sua posição de inferioridade social em relação às oligarquias rurais. Apartados do restante da sociedade, reclusos aos quartéis e academias, progressivamente os militares transformaram-se em uma elite dotada de formação técnica disposta a ombrear com a elite civil dos bacharéis. Em que pese sua visão autoritária, os militares inclinavam-se por causas progressistas tais como a abolição, a imigração, o desenvolvimento econômico e a correta administração pública.
A comparação entre o passado e o presente é rica em exemplos ao longo do livro e ajuda a entender tanto as mudanças quanto as continuidades. O historiador lembra o contraste da posição do Exército em relação aos direitos civis da população negra. Em maio de 1988, seiscentos soldados do Comando Militar do Leste bloquearam a passagem de um protesto no Rio de Janeiro, a ”Marcha dos Negros Contra a Farsa da Abolição”, diante do Panteão de Caxias, na Avenida Getúlio Vargas. Uma atitude que não fazia jus ao passado da instituição militar. Em 1884, o tenente-coronel Sena Madureira foi punido por receber na Escola de Tiro de Campo Grande o jangadeiro Francisco do Nascimento, líder dos abolicionistas do Ceará. Pouco depois, o general Deodoro da Fonseca, então presidente do Clube Militar, escreveu à Princesa Isabel a propósito da captura de escravos foragidos, afirmando que não era papel do Exército desempenhar o papel de capitão do mato contra os homens que buscavam o bem maior da liberdade.
A queda da monarquia abriu um longo período de intervenção militar na vida pública brasileira. De categoria subordinada ao poder civil, os militares passaram a protagonistas políticos, tolerados ou aceitos, quando não vivamente estimulados pelos civis a participarem por meio de palavras e ações. As principais conjunturas do Brasil republicano foram presididas pela participação militar. A começar, pela fundação e o encerramento da Primeira República; a Revolução de 1930 e a entronização de Vargas no poder; a criação e o fim do Estado Novo; a deposição de Vargas; a eleição do General Dutra em 1945 contra o General Eduardo Gomes; a crise que levou ao suicídio de Vargas; o golpe preventivo do Marechal Lott; a instauração do parlamentarismo após a renúncia de Jânio Quadros; o golpe de 1964 e os governos militares até 1985.
A teoria das “instituições totais” fornece o quadro de referência para a compreensão do comportamento dos militares como grupo social específico. Desenvolvida pelo sociólogo Erving Goffman (The characteristics of total institutions, In ETZIONI, 1961, p. 312-340), essa formulação busca explicar as interações sociais que ocorrem dentro de determinadas comunidades. As Forças Armadas funcionam como “instituições totais” ao envolverem as diversas dimensões da vida dos seus membros: produzem uma mudança radical da sua personalidade ao mesmo tempo em que uma forte identidade de grupo, contribuindo assim para aumentar a autonomia da corporação em relação ao restante da sociedade. Para José Murilo, o recurso à dimensão organizacional possibilita a melhor compreensão das atitudes políticas das Forças Armadas. Confere atenção às seguintes caraterísticas da organização militar: ideologia, sistema de recrutamento, treinamento do corpo de oficiais, tamanho e localização geográfica dos efetivos.
A cultura do “soldado-cidadão” forjada no final da monarquia estendeu-se ao período republicano e serviu de inspiração para a intervenção militar na política, transformando as Forças Armadas em um “poder desestabilizador”. O autor sustenta que existiram dois tenentismos, o primeiro de 1889 até 1904, e o segundo entre 1922 e 1930, a demonstrar tanto divergências dentro das Forças Armadas quanto destas em relação ao restante da sociedade. As revoltas, a indisciplina dos praças e a necessidade de formar um quadro de oficiais capacitados foram enfrentadas com o auxílio das missões alemã e francesa, reforçando a ideia da função das Forças Armadas como agente reformador da nação.
A Revolução de 1930 e o primeiro governo Vargas tem especial atenção em vista da centralidade das Forças Armadas no processo político. Durante o período, convergiram os militares e os setores sociais emergentes – classes médias, industriais – contra as velhas oligarquias estaduais. O líder gaúcho e os militares beneficiaram-se reciprocamente. Num jogo complexo, Vargas transformou as Forças Armadas em um dos pilares de sustentação do seu governo em contrapeso às forças oligárquicas e às novas lideranças civis – estimulou seu fortalecimento, mas sem torná-las uma ameaça ao seu poder pessoal. Com o golpe do Estado Novo, teria se configurado a vitória do projeto de intervencionismo tutelar do general Góis Monteiro, que acabou por alçar os militares à condição de grupo mais poderoso do regime.
Como afirmava Góis Monteiro (1943), tratava-se de fazer a política do Exército, e não mais a política no Exército. Sob um conceito amplo de defesa nacional, as Forças Armadas foram reorganizadas, profissionalizadas, hierarquizadas, treinadas e equipadas com armamento moderno: deveriam ser o elemento dinâmico do Estado e expressão organizada da nação para afirmar uma ordem burguesa sem liberalismo. Em síntese, a essência do regime envolvia o próprio conceito de militarização do Estado (AMARAL, O Exército e a educação nacional In Nação Armada, p. 29). Os oficiais ocuparam inúmeras interventorias estaduais, cargos nas novas empresas estatais – Companhia Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores – e órgãos formuladores de políticas públicas, tais como o Conselho Nacional de Petróleo. As despesas militares tornaram-se enormes, atingindo 25% do orçamento federal em 1933. Nesse mesmo ano, o certificado de serviço militar tornou-se pré-requisito para o exercício de cargo público e no Estado Novo a obrigatoriedade tornou-se universal para o sexo masculino, triplicando-se o número de efetivos. Tal extensão de poderes e das funções dependeu de uma guerra travada dentro das Forças Armadas, principalmente o Exército: entre 1931 e 1938, foram expulsos 624 oficiais e 1875 praças. O Clube 3 de Outubro, porta-voz dos tenentes reformistas dos anos vinte, foi fechado. As dezenas de rebeliões de praças, em sua maioria por questões salariais e funcionais, foram reprimidas com violência, resultando em presos, mortos e feridos.
No final da Segunda Guerra Mundial, a aliança entre Vargas e os militares se desfez à medida que o presidente colocou em marcha o plano de continuar no poder como o “pai dos pobres” com o apoio dos sindicatos e trabalhadores urbanos. A derrubada de Vargas foi o primeiro golpe em que as três forças agiram conjuntamente, criando-se então o embrião do que seria o futuro Estado-Maior das Forças Armadas. Na ocasião uniram-se os militares simpatizantes do Eixo com os de tendência liberal, formando uma nova facção militar que se tornaria vitoriosa em 1964. Nas duas décadas anteriores a essa data fatídica, a presença do poder militar foi ostensiva com a participação dos altos oficiais como candidatos à presidência da República, ocupando postos estratégicos no governo, pressionando as instituições e por meio de levantes.
As análises relativas ao período da redemocratização manifestam frustração quanto às expectativas de mudança do comportamento das Forças Armadas. Foram em vão as esperanças de que a Constituição de 1988 limitasse as suas funções à defesa da soberania nacional. Em lugar disso, manteve-se o papel de garantidoras da lei e da ordem, introduzido na primeira Constituição da República. Acrescente-se a isso o tardio desmantelamento de órgãos repressivos criados na ditadura tais como o SNI, DSI, OBAN, CENIMAR, entre outros; o uso dos militares para ações repressivas contra greves, ou então o controle de atividades secretas tais como a produção de material bélico e o programa nuclear paralelo da Marinha. O historiador atribui parte da responsabilidade aos civis, os quais por comodidade e preconceito, evitam o espinhoso tema da interferência militar na vida política. Lembra que os intelectuais brasileiros, por sua origem de classe e visão de mundo, viveram distantes dos militares desde o século XIX. Acrescentaríamos que os militares acabaram por impor as suas próprias condições para encerrar o regime militar, a exemplo da Lei de Anistia, sem que o poder civil -incluídos partidos, imprensa e sociedade organizada – exigisse contrapartida.
“Uma república tutelada” é o sugestivo titulo de um dos capítulos inéditos, o qual por sinal abre o livro. Escrito sob a presidência de Jair Bolsonaro, apresenta a tese da tutela militar por meio da articulação entre passado e presente. Depois do acender da “luz amarela”, quando o General Hamilton Mourão, então chefe do Comando Militar do Sul, celebrou o golpe de 1964, oficiais manifestaram-se sobre assuntos políticos em diversas ocasiões. Em 2017, o general Mourão defendeu em uma loja maçônica do Distrito Federal que era dever do Exército intervir caso o poder judiciário não conseguisse sanar a política do País. Em abril do ano seguinte, o general Eduardo Villas Bôas, Comandante do Exército, pressionou o STF quando do julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula. O mandato presidencial de um capitão reformado, alinhado com a visão da linha dura do Exército dos anos 1970, que pôs um número inédito de militares no governo e que não tem apreço especial pela Constituição, leva o autor a se perguntar se não corremos o risco de sermos surpreendidos pelos acontecimentos, como em 1964.
José Murilo acredita que a situação é outra em vista das transformações do País. Entre os aspectos positivos, considera que os militares no atual governo não representam as suas corporações; que as Forças Armadas mudaram no sentido da profissionalização; que elas adotaram um novo sistema de valores do seu treinamento; e que de acordo com pesquisas, a esmagadora maioria dos oficiais-alunos se declara de centro-direita e de centro-esquerda, assim como contrariamente à participação dos militares na política. Trata-se de um otimismo cauteloso, pois como manifesta na conclusão, “seria imprudente acreditar que estejamos imunes a retrocessos políticos”.
Diversos elementos mostram as dificuldades que se interpõe à profissionalização das Forças Armadas no Brasil. Por si só, a Constituição de 1988 consagra o poder de intervenção: além da tradicional defesa externa, as forças armadas também respondem pela “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. É um leque amplo de prerrogativas que confere às Forças Armadas um papel tutelar, equivalente ao Poder Moderador do Império, sem paralelo nas nações democráticas. Faculta tanto o uso para fins de policiamento quanto de interferência nos assuntos políticos do País.
A disputa pela memória de 1964, juntamente com a defesa incondicional da ditadura pelas Forças Armadas, são obstáculos à sua profissionalização: a legitimidade do golpe, os Atos Institucionais, as violações contra os direitos humanos, os desaparecimentos e torturas, todavia constituem assuntos tabu que os militares se recusam a discutir. Situação completamente diferente dos vizinhos Chile e Argentina, onde as Forças Armadas apresentaram desculpas oficiais aos cidadãos. No Brasil, as Forças Armadas teriam a ganhar se permitissem esclarecer os eventos que mancham a sua história e que ainda constituem uma ferida aberta, em especial para aqueles que foram vítimas diretas ou indiretas. Talvez no futuro, as novas gerações de oficiais sem a carga do passado possam pedir perdão em um ato de reconciliação nacional.
Ora, em que lugares as Forças Armadas são profissionalizadas? Apenas nas democracias liberais, quase todas no Ocidente. Na maior do mundo predomina a intromissão dos militares nos assuntos políticos: como braços armados de partidos únicos, controlando governos, como guardas pretorianas de déspotas, mobilizando permanentemente a população ou exercendo o poder tutelar, como no Brasil desde 1930. O que explica a persistência desse poder? Os motivos devem ser buscados tanto na tardia entrada do povo na política quanto na capacidade de os militares ocuparem um espaço institucional que, em tese, caberia às forças políticas. Se existem fatores estruturais subjacentes a tais atitudes, José Murilo os localiza na falta de uma real hegemonia burguesa, nas limitações do desenvolvimento capitalista brasileiro e por consequência na precária inclusão política e social das camadas populares urbanas e rurais. Quanto aos desafios futuros das Forças Armadas, não são pequenos, pois externamente defrontam-se com uma ordem globalizada e a formação de blocos, e internamente com uma realidade marcada pelas tensões advindas da desigualdade social, da pobreza e do narcotráfico, para cuja solução os civis batem às portas dos quartéis.
O repertório dos assuntos tratados no livro não se esgota nas grandes questões da vida nacional nem no estudo dos vitoriosos. Capítulos mais pontuais ricos em reflexões mostram uma enorme sensibilidade histórica e humana com relação a trajetórias e memórias, tanto de figuras consagradas quanto de personagens obscuros, marginais e esquecidos dentro da própria história militar.
A Guerra do Paraguai fornece o contexto para a discussão da sua historiografia e a participação dos setores populares. Mostra a relevância dos negros e mulatos nas tropas brasileiras, em contraste com a carência de pesquisas a respeito e o esquecimento a que o assunto foi relegado pelo próprio Exército. É o caso do negro livre Cândido da Fonseca Galvão, que inspirado pelo “sacrossanto amor do patriotismo”, reuniu trinta voluntários no interior da Bahia para irem à luta. Ou então de Jovita Alves Feitosa, de descendência indígena, pobre e com apenas 17 anos, que se alistou no Piauí disfarçada de homem e que depois de descoberta, foi aceita como sargento e reverenciada por onde passava, a “Joana D’Arc do Brasil” – o exame da sua trajetória é desdobrada pelo autor num livro recém-publicado, Jovita Alves Feitosa: voluntária da pátria, voluntária da morte. Outra perspectiva aparece no exame do diário de campanha de Francisco Pereira da Silva Barbosa, de família de fazendeiros do Vale do Paraíba, que partiu com o 1° Corpo de Voluntários da Pátria – ao todo foram 55.000 indivíduos – e fornece uma descrição dramática do cotidiano da guerra. Para José Murilo, essa guerra foi o fator mais importante na construção da identidade brasileira no século XIX, dando forma a uma abstração chamada “pátria”. Nas suas palavras, “algo de novo nascia no mundo dos valores cívicos”.
Por sua vez, abnegação, sacrifício e frustração marcam as vidas de um praça da Força Expedicionária Brasileira e um alto oficial. Este é o General Euclides de Figueiredo, pai do último presidente do regime militar. De posição liberal e oponente de Getúlio Vargas, foi preso político durante o Estado Novo e eleito deputado federal em 1946. Na Câmara empenhou-se na apuração dos abusos praticados durante o governo Vargas contra os opositores, na punição dos responsáveis e na anistia às vítimas. Contrariamente às nações em guerra, eram crimes “de plena paz e contra brasileiros”, dizia o general Euclides. Teve contra si enorme resistência dos demais deputados. Ouviu o deputado Carlos Marighela, do PCB da Bahia, que denunciou as torturas sofridas por ele e outros homens e mulheres sob custódia dos órgãos de repressão política. Para o general, o depoimento foi um dos pontos altos do trabalho da comissão parlamentar. Declarando ter sido companheiro de Marighela na prisão, louvou a sua atitude corajosa em contar tudo o que havia testemunhado. O contraste entre o pai e o filho general soam mais do que óbvios.
O outro personagem é um jovem de São João del-Rei convocado para lutar na Segunda Guerra Mundial. O seu diário de campanha é uma obra rara, pois é o testemunho de um homem comum, diferentemente da maioria dos relatos escritos por oficiais. Temos ali a guerra narrada no calor da hora, com os acontecimento e emoções, tristezas e alegrias, temores e saudades de um pracinha. Apegado à família, à religião e à sua terra, Sebastião Boanerges Ribeiro aparentemente desconhecia as motivações político-ideológicas da guerra: os alemães, não os nazistas, eram o seu inimigo. O sargento retornou ao Brasil só no final do conflito, quase cego de um olho em razão da explosão de uma mina. Ao chegar ao Rio de Janeiro com outros combatentes, ninguém estava no aeroporto para recebê-los. Nem alojamento tinham para ficar. No hospital do Exército, sem ser examinado pelo médico, foi declarado apto ao trabalho militar. Sem reconhecimento, desesperançado e amargurado pediu baixa e voltou ao mundo civil.
Por fim, merece destaque Euclides da Cunha, objeto da viva admiração do autor e objeto de outro capítulo inédito. Em geral, os estudos conferem pouca relevância à sua passagem pelo Exército. Inclusive os militares lhe dão pouca atenção, talvez por não possuir uma trajetória exemplar. Abandonou a carreira, apoiou a campanha civilista de Rui Barbosa contra o marechal Hermes da Fonseca e acabou sendo morto em duelo por outro militar. Para o autor, Euclides não teria sido o que foi sem as Forças Armadas: a sua formação, ideias e fervor nacionalista foram gerados dentro instituição militar.
Como “bacharel fardado”, Euclides assumiu com toda radicalidade as ideias positivistas e antimonárquicas da Escola Militar. É lendária a sua atitude de protesto republicano quando jogou a sua espada nos pés do ministro da guerra em 1888, durante uma revista. A Escola Militar tentou salvá-lo alegando “fadiga por excesso de estudo”, porém recusou o veredito afirmando ter agido por convicções republicanas. Acabou sendo expulso, mas logo depois da Proclamação da República foi reintegrado ao Exército por Benjamin Constant, para desligar-se definitivamente em 1896. Assim mesmo, por seus méritos, foi nomeado em seguida adido militar pelo ministério da Guerra para acompanhar o conflito de Canudos. Um episódio expressivo do seu nacionalismo teve lugar na Amazônia. Como chefe da Comissão Mista de Reconhecimento do Alto Purus, teria se sentido humilhado ao presenciar os soldados peruanos cantarem o hino de seu país durante a celebração do dia da independência. De volta ao Rio de Janeiro, contou o episódio ao deputado Coelho Neto, que convenceu os colegas a aprovarem uma lei para a realização de um concurso para a escolha da letra do hino nacional brasileiro, ganho por Osório Duque Estrada. Comportando-se como um ”soldado-cidadão”, teve suas ações discutidas na imprensa, na Câmara e no Senado, tornando-se um herói da República. Para o autor, o episódio da espada foi repleto de consequências – o contrato no jornal A Província de S. Paulo, o casamento com a filha do major Sólon, a viagem a Canudos, o livro Os Sertões, a entrada na Academia Brasileira de Letras e no IHGB, a traição da esposa, a morte trágica: “tire-se o gesto de 1888 e o resto cai por terra”.
Glória e tragédia se misturam na vida de Euclides da Cunha. Se a rebeldia foi a sua marca, não pôde no entanto conjurar as forças do destino. A ele, José Murilo aplica a sentença poética do anjo torto de Drummond: “vai, Euclides, ser gauche na vida. O mais sublime e genial dos gauches”.
Referências
AMARAL, Azevedo. O Exército e a educação nacional. Nação Armada, 4, p. 26-30, mar. 1940.
GOFFMAN, Erving. The characteristics of total institutions. In ETZIONI, Amitai (ed.). Complex Organizations New York: Holt, Rinehart and Winston, 1961, p. 312-340.
MONTEIRO, Góis. A Revolução de 1930 e a finalidade política do Exército Rio de Janeiro: Andersen, 1934.
SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894. São Paulo: Edusp, 1994.
Resenhista
José Luis Bendicho Beired – Professor livre-docente associado do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. E-mail: j.beired@unesp.br
Referências desta Resenha
CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019. Edição revista e ampliada. Resenha de: BEIRED, José Luis Bendicho. “Recuperando o tempo perdido: o estudo das forças armadas e a política no Brasil”. Revista de História. São Paulo, n. 179, 2020. Acessar publicação original [DR]