Forças Armadas e Política no Brasil | José Murilo de Carvalho

As reflexões sobre a história das Forças Armadas no Brasil têm mudado seu foco nos últimos anos. Com maior zelo empírico e com menor propensão para apriorismos teóricos e políticos, um conjunto crescente de pesquisadores – composto de civis e militares, é bom que se diga – tem ampliado seus interesses, fazendo com que a historiografia sobre as Forças Armadas no Brasil cresça em quantidade e qualidade. Melhor ainda: o debate historiográfico tem sido enriquecido pela variação temática e pelo aperfeiçoamento teórico e metodológico, com proveitos recíprocos. Ao invés de esses pesquisadores se ocuparem quase exclusivamente com a intervenção militar na política, a instituição castrense é estudada como um todo, sem prejuízo de suas relações com a sociedade não fardada.

Nesse sentido, é oportuna a publicação do livro de José Murilo de Carvalho, “Forças Armadas e Política no Brasil” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005), coletânea de artigos e ensaios escritos pelo autor ao longo de mais de duas décadas de pesquisa sobre as forças armadas brasileiras. A estrutura do livro é dividida em três partes: a primeira delas, “História”, reúne os artigos mais “clássicos” e metodologicamente basilares das reflexões sobre a trajetória das Forças Armadas brasileiras no século XX.

Em seguida, “Política” aglutina intervenções mais pontuais a temas conjunturais, como os debates sobre as atribuições das Forças Armadas, durante a elaboração da Constituição de 1988; as dificuldades concretas da adaptação das lideranças militares (e lamentavelmente, também das elites políticas civis, com seu despreparo atávico para os assuntos militares e estratégicos) para as rotinas de subordinação ao poder civil; o pouco conhecido sistema (?) de informações do governo João Goulart e um perfil do general Euclides Figueiredo, surpreendente para aqueles que, desse ramo familiar, somente conheciam os feitos e ditos do filho-presidente, que preferia as fragrâncias das baias aos odores do povo.

A seção “Guerras” conclui o livro, com três abordagens sobre a Guerra do Paraguai e uma sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial.

Nesta resenha serão abordados mais detidamente alguns capítulos, que ou são estudos de referência para as abordagens do tema, ou produzem inquietações acadêmicas e políticas sobre o andamento das relações entre as Forças Armadas e a política brasileira.

O primeiro estudo da seção “História”,As Forças Armadas na Primeira República: o Poder Desestabilizador”, desde sua publicação original, em 1977, na coleção História Geral da Civilização Brasileira, organizada por Boris Fausto, tornou-se referência obrigatória nos estudos sobre os militares na Primeira República. Embora sua estrutura privilegiasse, a princípio, uma perspectiva “organizacional”, o autor o desenvolve relacionado intimamente com as diversas facetas da sociedade da primeira experiência republicana. Ao examinar as Forças Armadas através do processo de recrutamento, do treinamento do corpo de oficiais, da estrutura interna, do tamanho e localização geográfica dos efetivos militares, bem como das ideologias de intervenção desenvolvidas pela organização militar, a sociedade não-militar está presente, seja como interlocutora, seja como base do recrutamento do efetivo, seja como objetivo de “salvação”, de aliança com oficiais ou até mesmo como fonte de cargos políticos e administrativos. O foco, porém, permanece na organização militar. Com efeito, as instituições militares possuíam uma complexidade muito maior que a instrumentalização do poder de classe poderia compreender. As dinâmicas de ascensão interna, promoção e reforma, por exemplo, eram tão ou mais importantes que as relações entre oficiais e membros das elites políticas e econômicas da Primeira República. Ao enfatizar as tensões internas à instituição, entre a vontade de intervenção política, mais comum nos oficiais mais jovens e impetuosos, na parte de baixo da hierarquia, e a necessidade de defesa dos liames hierárquicos e disciplinares, por parte das lideranças institucionais, Carvalho apresenta três tipos de ideologia de intervenção: a “intervenção reformista”, a “não-intervenção” e a “intervenção moderadora”. A vitória institucional dessa última efetuou-se no momento de sua maior provação, justamente quando o movimento revolucionário de 1930 ameaçou jogar uma parte do exército contra a outra. A solução “por cima”, através do “movimento pacificador”, evitou momentaneamente uma crise interna à instituição, e colocou para as lideranças militares do novo governo uma agenda na qual a política institucional deveria ser a única política na instituição militar (p.51).

Mesmo com tanto anos de sua publicação, continua um estudo seminal, como ressalta Celso Castro, na apresentação da sobrecapa. Se alguma coisa pudesse ser acrescentada, seriam provavelmente algumas considerações sobre o impacto, na organização militar e nas relações entre as forças armadas e a sociedade civil, dos dois maiores eventos militares que ocuparam o exército brasileiro na Primeira República: as dramáticas campanhas de Canudos e do Contestado. Boa parte das propostas de modernização institucional do exército teve como ponto (negativo) de referência as dificuldades enfrentadas nesse dois conflitos.

O artigo “Forças Armadas e Política, 1930-1945” consolida e amplia as reflexões do trabalho anterior. Nele, são analisados o processo de consolidação da hegemonia de um setor do exército sobre a instituição como um todo e a estruturação do poder militar na sociedade. Essa trajetória, porém, não foi percorrida sem conflitos e enfrentamentos, dentro e fora da organização castrense. Para efetivar-se como vitoriosa, a “revolução de 1930” precisou contar com os jovens oficiais rebeldes do Tenentismo, comissionar sargentos e abrir as portas do exército à política, consubstanciada em organismos como o Clube 3 de Outubro. Tais procedimentos geravam conseqüências danosas à estrutura hierárquica e disciplinar da instituição. Os cargos e interventorias estaduais acirravam as ambições e competições dos jovens oficiais “revolucionários”, enquanto aqueles que se mantiveram legalistas e longe da política se sentiam prejudicados na carreira. Por outro lado, muitos sargentos organizaram as revoltas nos quartéis ou a elas aderiram, insatisfeitos com a continuidade de sua situação funcional precária e por não poderem ascender ao quadro de oficiais, depois de terem colaborado decisivamente para a vitória da revolução. Deve-se lamentar, nesta edição, a ausência do apêndice com o arrolamento dos motins, revoltas e agitações nas Forças Armadas nesse período, presente na edição original, publicada em 1982, na obra coletiva “A Revolução de 30. Seminário Internacional (Brasília: Ed. da UnB). Protagonistas ou participantes ativos da maioria dessas revoltas, os sargentos ainda são uma face pouco conhecida na história militar brasileira, e mereciam mais pesquisas, como afirmava José Murilo de Carvalho, há mais de 25 anos. A advertência continua válida.

Como já havia sinalizado no artigo comentado anteriormente, Carvalho mostra que entre as concepções neutralistas (exército como “grande mudo”) e as de um “exército popular”, emergiu uma terceira posição, que o autor denomina “intervencionismo controlador”. Para consolidar essa posição dentro e fora da caserna, as lideranças institucionais, general Góes Monteiro à frente, procederam a dois movimentos. Ao “abrirem a sociedade ao Exército”, ampliavam a base do recrutamento, apertando o cerco aos resistentes ao serviço militar obrigatório, enquanto faziam gestões para o fortalecimento material da instituição (p.75). Ao “fecharem o Exército à sociedade”, faziam restrições ao ingresso de grupos “indesejáveis” para as escolas militares, chegando às raias do racismo (p.80), além de restringir ao máximo a participação política partidária de oficiais e praças e renovar a cúpula militar, com a reforma e/ou expurgo dos oficiais discordantes. Era a consolidação do princípio de Góes Monteiro, de que deveria ser eliminada a política no Exército, para ser posta em prática a política do Exército.

Essa política efetuou-se também em relação ao Estado e à sociedade brasileira, seja na luta bem-sucedida por maiores recursos orçamentários, seja na submissão do poder das polícias militares estaduais ao Exército. Tais esforços culminaram, em 1937, na implantação do Estado Novo, com a indispensável fiança da instituição militar, e em 1945, com o golpe contra o que as elites militares (e civis) vislumbravam como ameaça à ordem social, como o movimento queremista, as manifestações populares e o populismo.

O longo arco que vai da aliança de Getúlio Vargas com essas lideranças militares, em 1930, até seu “divórcio” com a mesma cúpula militar, em 1945 e, mais dramaticamente, em 1954, bem como suas conseqüências depois de sua morte, é traçado em “Vargas e os militares: aprendiz de feiticeiro”. Utilizando as metáforas de “namoro” (1930-1937), “lua-de-mel” (1937-1945) e “divórcio” (1945-1964), Carvalho se afasta um pouco das questões mais “estruturais” das forças armadas, presentes no artigo anteriormente citado, e procura, na dinâmica entre as causas sociais e as ações dos agentes políticos, a chave para o entendimento da relação de Vargas e seus herdeiros políticos, como João Goulart, com os militares:

De 1930 a 1964, mudaram as Forças Armadas, mudou Vargas, mudou o Brasil (…) Enquanto se tratava de reconstituir o poder, de realinhar os setores tradicionalmente dominantes, ou mesmo de promover novos interesses, como os da burguesia industrial, Vargas e os militares caminhavam juntos. (…) Mas Vargas foi adiante e buscou uma redefinição do poder pela expansão de suas bases, pela incorporação do povo no processo político (…). Nesse momento, ele teve contra si os militares e os interesses de poderosos grupos sociais.(…) As Forças Armadas, convencidas do poder que tinham adquirido e obcecadas pelo anticomunismo, foram incapazes de aceitar a competição de novos atores e o conflito democrático. Vargas, em seu segundo governo, assim como João Goulart mais tarde, foi incapaz de entender as características da nova organização militar que ajudara a criar, não mais manipulável pela cooptação de generais (p.116,117).

Essa chave do entendimento do processo político é mais bem explicitada em “Fortuna e Virtù no Golpe de 1964”. Tomando as expressões de Maquiavel, Carvalho examina o conjunto de possibilidades concretas dos agentes políticos no processo que culminou com o golpe de 1964. Ao invés de explicar o golpe pela articulação conspiratória das elites civis e militares, ou pela ingerência norte-americana, ou pela necessidade histórica de um aprofundamento do capitalismo no Brasil, Carvalho aponta que o golpe foi conseqüência de estratégias (ou falta delas) dos agentes políticos: para ele, “o golpe e sua rápida vitória não fora determinado pela presença da fortuna, mas pela ausência de virtù” (p.120). Em outras palavras, se outras tivessem sido as ações dos principais personagens políticos de então, o processo histórico seria diferente, pois as opções estavam abertas e disponíveis até o último momento, e a escolha pela polarização política não fora uma inevitabilidade histórica.

Nos outros artigos, é digna de nota a contribuição pontual de Carvalho ao entendimento dos pressupostos de ação do Tenentismo, comuns às suas versões de esquerda e de direita (em “Juarez Távora e a Modernização”) e ao estabelecimento de uma agenda de pesquisa sobre os eventos bélicos externos em que o país participou com seus militares e civis convertidos em soldados, nos teatros de operações do Paraguai e na Itália: quem eram os combatentes, como foram recrutados, como era a vida na frente de combate, as relações entre praças e oficiais, entre brancos e negros, a disciplina, alimentação, doenças, serviço médico, motivação para o combate, propaganda, relações com praças e oficiais de nações aliadas, serviços não-combatentes, os efeitos da guerra na estrutura institucional das forças armadas, o regresso dos combatentes, sua reintegração social, dentre outros tópicos (p. 183, 190-191).

Os clássicos não envelhecem. Esta coletânea de estudos de José Murilo de Carvalho sobre as relações entre as Forças Armadas e sociedade no Brasil vem à luz em um momento especial na historiografia do tema, quando o interesse, diminuído momentaneamente nos anos seguintes ao final do regime militar, parece retomar o vigor. Mas as advertências do autor continuam válidas: o estudo não deve encerrar-se em si, mas lastrear as ações do presente. Sem vontade política, competência e capacidade de antecipação, sem a virtù, qualquer democracia corre o risco de perder-se nas rodas da fortuna.


Resenhista

Francisco César Alves Ferraz – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de História da UEL.


Referências desta Resenha

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. Resenha de: FERRAZ, Francisco César Alves. Diálogos. Maringá, v.11, n.1-2, 269-274, 2007. Acessar publicação original [DR]

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