Força de lei: o fundamento místico da autoridade – DERRIDA (C)
DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: M. Fontes, 2010. Resenha de: BELTRAMI, Fábio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 196-199, Set/dez, 2013.
Jaques Derrida foi um filósofo nascido em El-Biar, na Argélia, em 1930. Ensinou na Sorbonne, na École Normale Supérieure e École de Hautes Études. Viveu grande período de tempo na França e alternou docências tanto na França como nos Estados Unidos da América. Faleceu em Paris, em outubro de 2004.
O livro Força de lei: o fundamento místico da autoridade, no original [Force de loi…] (1994), com segunda edição no Brasil pela Editora M. Fontes, no ano de 2010, com 145 páginas e tradução realizada por Leyla Perrone- Moisés, consta de duas exposições realizadas por Derrida. A primeira parte do livro, intitulada “Do direito à justiça”, foi apresentada pelo filósofo em um colóquio organizado por Drucilla Cornell na Cardozo Law School, em outubro de 1989. Já a segunda parte, intitulada “Prenome de Benjamin”, foi apresentada em 26 de abril de 1990, em colóquio organizado por Saul Friedlander, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, EUA.
Seguindo as duas partes, consta um post-scriptum. Assim, a presente obra fica estruturada em dois documentos apresentados por Derrida nos colóquios mencionados, seguido do post-scriptum, que fecha as ideias relacionadas na obra.
Na primeira parte, o filósofo irá trabalhar a questão da possibilidade de se chegar à Justiça pela desconstrução, lembrando que o colóquio, no qual Derrida apresentou o trabalho contido na primeira parte do livro, justamente se chamava “A desconstrução e a possibilidade da justiça”. Na primeira parte, Derrida trabalha a ideia de que Direito e Justiça são conceitos distintos, não devendo ser unidos. Assim, Derrida segue a linha do colóquio e inicia com um questionamento importante: “Será que a desconstrução assegura, permite, autoriza a possibilidade da Justiça? Será que ela torna possível a Justiça ou um discurso consequente sobre a Justiça e sobre as condições de possibilidade da Justiça?” (DERRIDA, 2010, p. 4).
A partir desses questionamentos, o filósofo inicia seus trabalhos, levantando questões referentes à linguagem e fazendo delas peças fundamentais no seu sistema de análise. Inicia analisando a forma como se deve apresentar ao público presente no colóquio: se falar em inglês ou em francês. Pode parecer algo irrelevante, porém para o filósofo tal questionamento vem carregado de uma ordem de Justiça. Derrida diz que deve falar na língua daquele que houve o congresso, que sedia o congresso, pois aquilo seria o mais justo ou julgado justo a ser feito. Essa justeza, diz o filosofo, é de natureza difícil de ser identificada, não há como saber se é por conveniência, por polidez, lei do mais forte ou equitativa de democracia, contudo, parece ser o mais justo.
Essa argumentação de Derrida sobre a forma de dirigir-se ao público é preparatória para um argumento relevante referente a duas expressões que constam no idioma inglês e que, segundo o autor, se veem com força diminuta quando de suas traduções. A primeira expressão vem do inglês e é to enforce the Law que, quando traduzida para o francês, resta como “aplicar a lei”. Esse “aplicar a lei”, segundo Derrida, não possui a mesma força, uma força que vem do interior, constante na expressão em inglês. A enforce the law é o que garante o Direito, o que permite a própria existência do Direito.
Derrida percebe problemas que podem advir dessa aplicabilidade (enforceability) da lei, dentre eles, um em especial: como distinguir a aplicabilidade legítima da lei da violência que se julga injusta, ou seja, o que é uma força justa ou uma força não violenta? As respostas a essas perguntas para Derrida parecem surgir de Pascal e de Montaigne. O primeiro quando diz que é preciso unir a justiça com a força, para fazer com que aquilo que é justo seja forte, ou aquilo que é forte seja justo, pois, para o mesmo, justiça sem força é contradita, e força sem justiça é autoritária.
Já Montaigne defende a ideia de um “fundamento místico da autoridade”, dizendo que as leis se mantêm em crédito, não porque são justas, mas por simplesmente serem lei; não obedecemos às leis por serem justas, mas devido ao fato de serem leis, porque têm autoridade. Nós fornecemos crédito à lei, e ali repousa sua autoridade. Ocorre em Montaigne uma separação entre Direito e Justiça, o que Derrida irá explorar.
Parte da questão: Se existe uma autoridade, donde ela provém? Quem a institui? Qual é o seu fundamento? A dificuldade em responder a essas perguntas, a dificuldade em responder como o Direito se instituiu gera o seu caráter místico. Assim, pressupõe-se que o Direito se originou nele mesmo é o que diz Derrida quando sustenta que as leis não são nem legais nem ilegais no seu momento fundador, que a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e, portanto, interpretativa que, em si mesma, não é justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação preexistente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar ditas leis – o que, segundo Derrida, dá-nos a possibilidade de desconstrução do mesmo, vez que, ou construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformávies, ou porque seu fundamento último, por definição, não está fundado sobre questões de justiça.
No entanto, a Justiça não é desconstrutível, a desconstrução é a Justiça. Derrida coloca três aporias para explicar o porquê de a desconstrução ser a Justiça. A primeira aporia é designada como a epokhé; a segunda aporia, como “a assombração do indecidível”; e a terceira aporia, como “a urgência que barra o horizonte do saber”. Nessas aporias, Derrida, basicamente, sustenta a sua posição de que o Direito não é a Justiça, de que o Direito é o elemento do cálculo, enquanto a Justiça é incalculável. É justo que haja um Direito, mas a Justiça exige que se calcule o incalculável, que se dá no intervalo em que o justo e o injusto não podem ser esclarecidos por uma regra, lei, ou qualquer norma positiva que seja. A Justiça requer uma decisão, requer o indecidível. Nos sistemas atuais, poder-se-ia pensar nas situações estáticas das codificações legais ante o dinamismo das relações humanas, para exemplificar a situação exposta por Derrida.
Passando agora para a segunda parte do livro, intitulada “Prenome de Benjamin”, nela Derrida faz a análise de um texto de Walter Benjamin intitulado Zur Kritik der Gewalt, traduzido como [Crítica da Gewalt], palavra que Derrida já mencionara na primeira parte do texto, e cujo significado na língua germânica designa tanto violência quanto poder legítimo, o que pode vir a gerar confusão nas interpretações quando do uso da mesma, inclusive, levanta o questionamento de Derrida acerca da força do direito e da força ilegal, pode-se dizer.
Derrida começa analisando a posição de Walter Benjamin e considera que a mesma reflete a crise do modelo europeu de democracia burguesa, liberal e parlamentar e foca a Alemanha como grande centro dessa crise.
Além disso, Derrida trabalha as considerações que Benjamin elaborou na sua obra sobre a relação entre Estado e Direito e suas distinções, bem como elabora um questionamento acerca de como Benjamin reagiria perante a “solução final” formulada pelo governo nazista. Esse questionamento é importante, dado que Benjamin faleceu no ano de 1940. Ao fim, Derrida propõe algumas formas de interpretação do texto de Benjamin para serem lidas nos dias atuais.
Basicamente, percebe-se que Derrida busca explorar a crítica da Gewalt, de Walter Benjamin, e expõe a posição do mesmo sobre a violência no Direito, esclarecendo que, para o filósofo alemão, haveria a distinção entre duas violências relativas ao Direito: uma violência fundadora, que institui e instaura o direito, e uma violência conservadora, que mantém, confirma e assegura a permanência e a aplicabilidade do Direito. Haveria, também, a distinção entre violência fundadora do Direito, dita mística, e a violência destruidora do Direito, dita divina. Igualmente, haveria a distinção entre Justiça, princípio de toda colocação divina de finalidade, e Poder, princípio de toda instauração mística de direito.
O problema que Derrida apresenta após a leitura de Benjamin é referente à violência que vem de dentro de todo o sistema institucional, a violência exterior à lei e, sobretudo, quando dita violência parte do aparato governamental. Uma espécie de estado de exceção, em que a exterioridade da violência se mostra diante do sistema legislativo quase como num buraco negro jurídico. Daí parece que Derrida extrai a pergunta sobre qual seria a atitude de Benjamin perante a solução final.
Os inúmeros questionamentos que Derrida levanta no livro conduzem o leitor, quase automaticamente, a de fato questionar a estrutura posta e a possibilidade de tal estrutura não servir para o fim que a ela pensamos que foi instituída. Sempre haverá espaço para a violência, seja pela enforce the law, por meio da Gewalt – em seu duplo sentido – mas Derrida, no seu Força de lei… nos mostra que esse espaço sempre será preenchido.
Fábio Beltrami Advogado. Mestre em Filosofia pelo PPGFil da UCS. Caxias do Sul, RS. E-mail: fabio.beltrami@hotmail.com