Ai, ai, meu Deus
O que foi que aconteceu
Com a música popular brasileira?
[…]
Parei pra pesquisar
(Rita Lee e Paulo Coelho)1
A música popular brasileira, muitas vezes engessada sob o rótulo MPB, sempre foi, em maior ou menor medida, aberta à diversidade. Se, desde meados dos anos 1960, tal sigla promoveu, aparentemente, um encolhimento do seu espectro diversifi ado, na verdade isso foi mais obra de analistas e/ou da indústria cultural do que propriamente um retrato fi el do que se passava nos canteiros da música made in Brazil. Ao menos da maneira como foi acionada, aqui e ali, a categoria MPB transmitiu a impressão, enganosa, de representar um todo harmônico. A exemplo do que observou E. P. Thompson, ao se reportar às abordagens em torno de questões culturais e frisar que “o próprio termo ‘cultura’, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto”.2
Tomada, implícita ou explicitamente, por muitos estudiosos como uma espécie de “tipo ideal” weberiano, a MPB, no fundo, foi convertida numa expressão daquilo que ela não é. E, nessa operação de exageração, como é próprio dos “tipos ideais”, tratou-se de “concebê-los na sua expressão mais pura e consequente, que jamais se apresenta assim nas situações efetivamente observáveis”.3 Ao não se darem conta disso, certos pesquisadores ossificaram ou mumificaram a MPB, como se ela fosse, no fundo, um monólito. No entanto, ela jamais se constituiu num samba de uma nota só.
Seja lá como for, em que pese a coabitação de diferentes linguagens musicais sob tal rubrica, ao longo do tempo definiram-se as bases sobre as quais se assentou o mainstream encarnado pela tríade samba, Bossa Nova e Tropicalismo. Embora se pudesse detectar linhas de fuga a essa “santíssima trindade” da música popular brasileira, ela falou mais forte, em alto e bom som.
Neste dossiê, contudo, sem qualquer demérito ao que adquiriu o status de canônico – e sem desconhecer que os cânones podem, perfeitamente, ser revisitados, quando mais não seja, para se explorar outros ângulos de observação de um mesmo fenômeno –, o ponto de vista sobre a música popular produzida nestes trópicos envereda por outras direções. Ele avança o sinal e, fora do cânone, acena para o diálogo com outros universos musicais, que implicam, sob vários aspectos, outras formas de digestão do mundo. Ganham rosto, então, personagens satélites que, já há algum tempo, reivindicam, por assim dizer, seu lugar na história da música deste país.
Desse modo, como quem deixa cair a venda dos olhos, os autores aqui escalados (dois doutores, dois doutorandos e uma mestre) trilham caminhos ainda não sedimentados nos estudos acadêmicos. O rap – inclusive o rap goiano, uma saborosa mistura de rap com pequi –, o funk carioca, com seu relato da guerra social vivida no Rio de Janeiro, e o break pernambucano que desaguaria no Mangue Beat são peças do dossiê, que, sem trair sua intenção, incursiona igualmente pelos domínios do samba. Não, porém, para reproduzir o já sabido, mas, sim, para jogar luz sobre um samba não canônico, o de São Paulo, e analisar a obliteração da presença do negro na história da metrópole paulistana. Um traço comum irmana os pesquisadores por nós reunidos. Como resultado de uma opção deliberada da editoria da ArtCultura, todos são jovens acadêmicos, com talento para tatear novas trilhas. Trocando em miúdo, eles também não são canônicos, a despeito dos méritos dos textos que assinam.
De toda forma, pelo menos dois deles alcançaram, recentemente, reconhecimento no circuito universitário. Maria Cristina Prado Fleury Magalhães (MC, para os mais íntimos) obteve o primeiro lugar, na categoria Música e Artes, do III Prêmio de Popularização da Ciência, concedido pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC-regional Goiás), em 2016. Roberto Camargos, que já frequentou as páginas da ArtCultura, foi um dos contemplados, em 2013, com o cobiçado Prêmio Produção Crítica em Música, da Fundação Nacional de Artes (Funarte), ligada ao Ministério da Cultura, que bancou a publicação de seu livro Rap e política: percepções da vida social brasileira.
4 Bebamos, pois, na fonte da juventude. Afi nal, temos muito a aprender com os jovens, especialmente com jovens pesquisadores do lastro dos que comparecem a este dossiê.
Notas
1 “Arrombou a festa I” (Rita Lee e Paulo Coelho), Rita Lee e Tutti Frutti. Compacto Som Livre, 1977.
2 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 17.
3 COHN, Gabriel (Org.). Introdução. In: Max Weber: Sociologia. São Paulo: Ática, 1979, p. 8. Esse autor lembra ainda que Weber chegou a declarar, com todas as letras, que “exagerar é a minha profissão”. Idem, ibidem, p. 7.
4 CAMARGOS, Roberto. Rap e política: percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015.
Organizador
Adalberto Paranhos – Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Instituto de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-graduação em História e em Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisador do CNPq. Autor, entre outros livros, de O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007. E-mail: akparanhos@uol.com.br
Referências desta apresentação
PARANHOS, Adalberto. Correndo por fora: redefi nindo o mainstream?. ArtCultura. Uberlândia, v. 20, n. 36, p.27-28, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]
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