Em Tempos interessantes, Eric Hobsbawm comentou que comumente as biografias “terminam com a morte do biografado, mas as autobiografias não têm esse fim natural”, uma ironia que não se traduz apenas como humor para historiadores envolvidos em empreitadas biográficas (2002, p. 447). Autor proeminente nos estudos sobre esse gênero, Benito Schmidt enfrentou como desafio o que para Hobsbawm era chiste ao biografar o gaúcho Flavio Koutzii, cuja biografia não teve o aludido fim natural: Koutzii não apenas contribuiu imensamente para a produção do livro, como foi um leitor privilegiado antes e depois de sua publicação – e, assim como Hobsbawm, Koutzii é judeu, fez-se comunista e não dispensa a fina ironia.
Após debruçar-se por quase uma década sobre variados registros que a vida de Koutzii lega à pesquisa histórica, Schmidt lançou um livro bastante singular, tanto pela relação que estabeleceu com seu objeto e principal fonte – Koutzii e suas memórias -, quanto pela forma como articulou essa fonte com as demais. Da primeira às últimas páginas nota-se que o livro é a confluência da relação entre biógrafo e biografado – especial singularidade da obra.
Uma homenagem ambígua na dedicatória do livro, deferência à mãe de Koutzii (“para Clara, por Flavio”), deixa dúvidas se foi assinada por Flávio ou por Benito e é claro sinal do quanto ambos ficaram próximos durante a pesquisa, proximidade patente também nas fotografias em que posam juntos e sem embaraço. Muitos de seus trechos confirmam tal sintonia: Flávio emprestou livros para Benito (p. 446) e procurou saber, mais de uma vez, se ele os lera (p. 103), sugeriu nomes e pautas para outras entrevistas (p. 447), anteviu os originais e fez acréscimos (p. 315); Benito, por sua vez, não escondeu a admiração pelos ideais que Flavio personifica (p. 19), aprofundou temas que a memória e a timidez de Flavio preferiam contornar (p. 78) e, além das histórias que ouvia, também contou as suas próprias (p. 61). Quando estavam mais sintonizados, Flavio reconheceu que alguns assuntos exigiam confiança (p. 332), em sinal de que ela fora conquistada, e Benito garantiu expressamente: “O texto foi moldado a partir das negociações realizadas entre nós” (p. 19). Neste livro, portanto, a presença do biografado é tão constante quanto a primeira pessoa do autor, ambos protagonistas e em permanente interação – difícil tratá-los pelo sobrenome depois de vê-los tão próximos por quase uma década e mais de 500 páginas.
Ao não esconder sua subjetividade atrás de qualquer biombo metodológico, Benito Schmidt estabeleceu importante posição: sem perder o olhar crítico – um dever do ofício -, demonstrou que a aproximação entre o historiador e seu objeto alcança resultados instigantes – e como em toda produção historiográfica possui alcances e limites. O estilo adotado por Schmidt atribui à obra um valioso caráter etnográfico, ampliando suas possibilidades de leitura. Com alguma acuidade é possível perceber, por exemplo, resquícios do diário de campo do autor, como quando Schmidt descreve circunstâncias em que conversou com antigos companheiros de Flavio, compartilhando o tanto que emoções e tensões desses encontros o sensibilizaram. O livro exibe inúmeros efeitos dessa aproximação, cujo saldo se torna positivo pela clareza com que é demonstrada e pelo debate que pode ensejar.
Como muitas, essa é uma biografia que possui dupla entrada editorial: atende ao público acadêmico, versado ou iniciante na história das esquerdas, bem como ao grande público, que correrá para o livro convidado pela notoriedade do biografado. Judeu por parte de pai e mãe, Flavio Koutzii nasceu em Porto Alegre em 1943 e engajou-se no movimento estudantil quando era secundarista no Colégio de Aplicação – onde parece ter tido poucos colegas de família operária. Na universidade, cursando Economia e Filosofia, prosseguiu com as atividades políticas e pouco antes do golpe de 1964 filiou-se ao PCB para, logo em seguida, tornar-se dissidente. Defensor da resistência armada à ditadura, alistou-se numa organização que continha operários na sigla, o Partido Operário Comunista (POC), sob influência da IV Internacional. Com vistas na revolução armada, Flavio experimentou longa jornada de exílio: Chile, França duas vezes e Argentina, onde quedou preso e torturado. Até obter sua liberdade, travou intensa batalha jurídica, individual e coletivamente: conseguiu envolver amigos, familiares, sua companheira, um deputado e até um embaixador – e novamente parece ter passado ao largo da classe trabalhadora. Vencida essa batalha, retornou ao Brasil em meados dos anos 1980 e filiou-se ao Partido dos Trabalhadores, amadurecido pela idade e pelas consequências de suas escolhas políticas. Por essa legenda Koutzii disputou – e ganhou! – sucessivas eleições para mandatos parlamentares, devidamente próximo de projetos que repercutiam entre a classe operária. Em muitos aspectos Flavio Koutzii é um típico militante da chamada “geração 68” e sua trajetória se confunde com a da democracia brasileira na última metade do século XX.
O livro está divido por critérios cronológicos em cinco capítulos com dimensões e conteúdo não tão proporcionais. Enquanto os dois primeiros – menos extensos – se dilatam no espaço e no tempo, entre a infância gaúcha de Koutzii e seu envolvimento com a luta armada em São Paulo nos anos 1960, os dois seguintes – mais alongados – se concentram na sua passagem pela Argentina na década de 1970. No quinto e último capítulo Schmidt apresenta a batalha de Flavio Koutzii para superar as marcas do cárcere argentino, reconstruindo-se na França, até seu retorno ao Brasil, onde superou de vez os tempos de vida clandestina.
A temporada de Flavio na Argentina foi marcante na sua vida e inspirou profundamente o livro de Schmidt. Por um lado, as relações estabelecidas por Koutzii em solo argentino, onde assumiu posição de comando no Partido Revolucionário de los Trabajadores – Ejército Revolucionário del Pueblo (PRT-ERP) mesmo sendo estrangeiro, revelam aspectos marcantes e singulares do sujeito em tela nas suas relações com as esquerdas revolucionárias latino-americanas, com especial destaque para a influência do internacionalismo que marcou a IV Internacional – e nesse ponto o livro é pleno em demonstrar a importância de se entender o coletivo a partir dos estudos individuais. Por outro lado, Schmidt investiu longa e detalhadamente na análise dos efeitos da tortura e da prisão na vida de Koutzii, observando-o em escala bastante particular e decerto influenciado pela nevralgia que o tema desperta nas muitas e dolorosas memórias desvendadas por sua pesquisa. O terceiro e o quarto capítulos – mais descritivos – revelam a reciprocidade que aproximou Schmidt e Koutzii: fonte recorrente usada por Schmidt, o livro de memórias escrito por Koutzii (1984) parece não ter concedido a atenção que seu autor gostaria aos traumas que enfrentou, por isso, ao entrevistá-lo, Schmidt pôde abordá-los com mais minúcia. O livro apresenta ao leitor formas diversas de se apreciar as relações encontradas no gênero biográfico, alternando a escala de observação entre as idiossincrasias de Flavio Koutzii e a pluralidade que se percebe nele.
Durante sua pesquisa Benito Schmidt precisou lidar com as costumeiras dificuldades que marcam o ofício do historiador, mas é notório que entre elas não consta a escassez de fontes, o que lhe impôs outros desafios. O autor abasteceu-se de sortidas fontes memorialísticas: entrevistou sozinho ou com ajuda de estagiários muitos sujeitos que conviveram com Flavio; explorou entrevistas em jornais de ampla circulação e da imprensa partidária; recorreu a textos e cartas de autoria do biografado e de pessoas do seu convívio – muitas delas estavam sob guarda do próprio Koutzii. Além disso, manteve constante diálogo com sua autobiografia e o próprio Koutzii concedeu mais de 10 entrevistas para Schmidt entre 2010 e 2014. Assim, todo o livro está assentado sobre o movediço terreno da memória.
As memórias compõem o eixo da narrativa e ensejam o contexto necessário para o entendimento do protagonista. À medida que as memórias sobre Flavio Koutzii foram se revelando à pesquisa, o historiador compôs seu enredo, mas sem forjar um contexto acoplado artificialmente ao protagonista. Por isso a narrativa ganhou ritmo desafiador: como a memória, ela corre em fluxo irregular, com algumas idas e vindas, com recorrências, e sem deixar espaço para contextualizações panorâmicas, que nem sempre respondem à complexidade do liame formado pelo sujeito, suas memórias e o mundo a seu redor. O leitor não especializado poderá reclamar da falta de nomes de prefeitos, governadores e presidentes, periodizações consagradas, e tudo o mais que costuma ser descrito como contexto, mas haverá de perceber que se trata de uma escolha, não de uma deficiência.
Essa contextualização peculiar foi crucial para explicar os caminhos que levaram Koutzii à sua opção “revolucionária”. Ele próprio reivindica dois componentes preponderantes em seu “DNA político” – palavras suas – e Schmidt tratou de conferir inteligibilidade a essa relação entre história e memória. Um desses “genes” foi a herança definida pelo patronímico que o biografado recebeu de Jacob Koutzii, destacado militante do PCB nos anos 1930 e 1940. O outro foi seu duplo gene judaico, que se tornou definitivo mais como uma experiência social do que uma vivência religiosa. Longe da sinagoga, mas sempre em comunidade, Koutzii experimentou relações que o sensibilizaram para diversos tipos de opressão e Schmidt percebeu com sua pesquisa aquilo que as memórias de Flavio indicavam, demonstrando como suas interações sociais o cativaram para o universo comunista. O livro ilustra elementos formadores na vida de um sujeito ligado às esquerdas brasileiras antes de seus contatos com guias teóricos e rotinas político-partidárias, mostrando que as memórias são excelente filão para acessar etapas “pré-revolucionárias” desses sujeitos. Se Koutzii foi atraído para o comunismo a partir de sua condição de judeu, seu exemplo convida a pensar como interseções de classe, raça ou gênero conduziram outros sujeitos de sua geração a alistar-se nestas fileiras.
O uso recorrente das fontes orais e o tratamento que Benito Schmidt lhes conferiu situam o livro no centro dos debates sobre métodos e recursos da História Oral. É notório que a transposição da oralidade para o texto escrito não é suficiente para a manutenção de suas características – por exemplo, não fosse o esforço de Schmidt em pontuar ironias de Koutzii, elas escapariam ao leitor – e esse esforço é revelador da mediação clara e sincera que Schmidt promove entre suas fontes, decifrando gestos, diferentes entonações, pausas ou entusiasmos de seus entrevistados, o que compõe uma miríade de informações que não chegam ao leitor em versão bruta. Por isso o autor poderia dispensar critérios aos quais recorre nas muitas transcrições que utiliza, que apesar de consolidados (p. 18), por vezes sobrecarregam o texto com citações alongadas e com muitos marcadores de supressão ([…]).
O livro apresenta, como o leitor especializado notará, uma lacuna que não se encontra identificada por colchetes e reticências: no entorno de Flavio Koutzii falta a classe trabalhadora. Tal lacuna não é sintoma de descuido do historiador Schmidt, é intrínseca à biografia de Koutzii, no tanto que ele tem de representativo de um projeto de transformação social que se inspirava em princípios e calendário revolucionários que não logrou sucesso. É possível que o momento em que os trabalhadores mais se fizeram notar na biografia de Koutzii tenha sido quando depositaram, anônimos, seu voto nas urnas que o elegeram parlamentar nas décadas de 1980 e 1990, a quem se juntou, inclusive, o jovem Benito, que segredou ter votado em Koutzii (p. 15) – uma sinceridade política e metodologicamente preciosa em tempos em que o voto, secreto ou aberto, tem valido pouco. O engajamento de Flavio no PT é um ponto de inflexão na história de sua geração, e na dele também, por reaproximar a maior parte da esquerda revolucionária dos trabalhadores brasileiros em ambiente de progressivo alargamento democrático – o que já não se encontra quando da publicação do livro. Entre seu ingresso no PT e o afastamento do partido, Koutzii experimentou uma fase nova e bastante singular de sua vida, que possui profunda influência sobre o entendimento posterior que ele faz de seus caminhos e escolhas. Diferente do que aparece noutras memórias, especialmente as publicadas nas décadas de 1980 e 1990, Flavio não recorre à sua participação em ações armadas como um distintivo de orgulho ou como prova de seu engajamento revolucionário; para ele isso é algo superado e até contornado. Por isso a conjuntura pós-1984, bastante influente sobre suas memórias e não abrigada nesta biografia, faz falta – talvez o pós-2013 também. Sem essa ampliação do recorte, a aludida “biografia de um militante revolucionário” parece circunscrita à experiência armada de Koutzii, que foi socialmente restrita e bastante curta – menos de uma década entre as cinco abordadas no livro. As desilusões de Flavio Koutzii com o projeto de partido em que mergulhou nos anos 1980, bem como os aspectos de sua atuação parlamentar, seriam cruciais para entender os sonhos, as conquistas e as decepções de uma geração que imaginou a si própria como revolucionária.
Contudo, avançar sobre os anos 1980 e 1990 seria extenuante, como sugere a lide de Schmidt com tantas e tantas fontes, e reclamar a ausência deste período na biografia em tela é antes de tudo esperar pelos passos seguintes do autor e do biografado. O livro termina, portanto, sem um final previsível e que em acréscimo podemos chamar de feliz: Flavio Koutzii continua vivo e atuante a seu modo e Benito Schmidt poderá prosseguir ampliando sua pesquisa. É certo que em congressos e artigos futuros, mais restritos ao público acadêmico, o autor encontrará espaço para abordar questões específicas que escaparam aos critérios editoriais do livro ou que poderiam expor excessivamente nevralgias de Flavio, que registrou de próprio punho: “Enquanto houver biografia, haverá livro” (p. 523). Por isso, os próximos passos de ambos, biógrafo e biografado, ensejam expectativas após a leitura desta bem-vinda biografia, cuja recomendação fica aqui gravada.
Referências
HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes: uma vida no século XX. Tradução de S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
KOUTZII, Flavio. Pedaços de morte no coração. O depoimento de um brasileiro que passou quatro anos no inferno das prisões políticas da Argentina. Porto Alegre: L&PM Editora, 1984.
SCHMIDT, Benito Bisso. Flavio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário – de 1943 a 1984. Porto Alegre: Libretos, 2017.
Declaração de financiamento
A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento da FAPESP (Proc. 2017/01705-9).
Resenhista
Lucas Porto Marchesini Torres – Doutorando em História na UNICAMP e autor de Estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980. Salvador: EDUFBA, 2017.
Referências desta Resenha
Schmidt, Benito Bisso. Flavio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário – De 1943 a 1984. Porto Alegre: Libretos, 2017. Resenha de: TORRES, Lucas Porto Marchesini. “Enquanto houver biografia, haverá livro”: uma biografia negociada. História (São Paulo). Franca, v.40, 2021. Acessar publicação original [DR]
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