Físicos/ mésons e política: a dinâmica da ciência na sociedade | Ana Maria Ribeiro de Andrade
O ofício de historiador talvez possa ser comparado com aquele do encenador. Tem-se os fatos e os documentos, assim como as peças, até que, em uma nova iniciativa, alguém resolva recontar a história ou resgatar um texto dramatúrgico ao proscênio. Em ambos, a matéria está ali, mas a cada nova interpretação ou encenação tem-se uma nova visão, uma nova problematização, recorte ou idealização, a qual se juntam novos artefatos, sejam documentos, entrevistas ou, no caso do teatro, novos recursos cênicos. Essas ‘remontagens’ muitas vezes lançam novas perspectivas e entendimentos sobre fatos e textos, ainda não pensados ou vislumbrados, gerando um inesgotável manancial que, no caso da história, forma-se em historiografia.
Recontar a trajetória da formação da física no Brasil e os desdobramentos que levaram à criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), no ambiente das conseqüências da Segunda Guerra Mundial, tanto no campo internacional quanto no nacional, é o que se propõe a autora da obra em questão. Assim, embora já exista fornida bibliografia sobre o tema e, mais particularmente, sobre a criação do CNPq, o livro de Ana Maria Andrade revela uma nova visão, um novo olhar, ao esmiuçar e tecer as intricadas relações entre militares, cientistas e políticos que levaram à criação dos dois organismos.
A despeito do relativo êxito das pesquisas biológicas no Brasil, desde o início do século XX, a tarefa de fazer ciência no Brasil implicava muito mais um elevado espírito de abnegação e obstinação do que qualquer tipo de apoio. Desde a inexistência de uma política científica nacional engendrada pelo Estado, a condição do país de exportador de produtos primários, o bacharelismo das escolas e faculdades que apenas se limitavam a reproduzir saberes mimetizados do Velho Continente até à hipervalorização dos ‘doutores’ da medicina, engenharia e direito, nada era facilitado aos precursores da atividade científica. Em um país de vasta exploração agrícola, (re)produzia-se conhecimento para uso de uma incipiente camada urbana, que valorizava o dernier cri dos modismos europeus.
E com a física não seria diferente. Assim como a pesquisa biológica só obteve algum tipo de reconhecimento no país após a consagração obtida por Manguinhos na Exposição Internacional de Berlim, em 1907, a física no Brasil apenas alcançou visibilidade e importância após a descoberta e detecção dos mésons-p por César Lattes, então um jovem pesquisador de vinte e poucos anos, nos Laboratórios de Bristol, na Inglaterra, em 1947, a partir da observação no estado de natureza. A descoberta dos mésons representava um avanço no conhecimento sobre o estado da técnica da física no mundo, então a ciência do momento graças ao seu emprego na tecnologia nuclear, e seu conseqüente poder de dissuasão após as bombas de Hiroshima e Nagasaki, que encerraram a Segunda Guerra.
Nesse momento, sobre suas cinzas, eclodia a guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética, e a corrida armamentista convencional e, principalmente, a nuclear impulsionavam o desenvolvimento da pesquisa em física e da energia atômica, em um cenário de forte paranóia anticomunista no Ocidente.
No Brasil, com a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) junto aos Aliados na campanha da Itália, o fim da guerra trouxe a redemocratização do sistema político através da anistia, eleições gerais e o governo Dutra, herdeiro de Vargas e do aparato do Estado Novo. Os acordos firmados com os Estados Unidos em troca do esforço de guerra faziam crer que o país se tornaria um aliado preferencial e obteria ajuda americana para seu desenvolvimento. Mas a tarefa de reconstrução da Europa, representada pelo Plano Marshall, visando à contenção da expansão comunista no continente, relegou o país à condição de aliado periférico que, como bem ressalta Ana Maria Andrade, acarretou maiores ganhos para o parceiro mais forte, como a “manutenção da base militar de Fernando de Noronha, o fornecimento de materiais estratégicos”, como, por exemplo, o tório — elemento importante para o enriquecimento de urânio —, e outros minerais, presentes nas areias monazíticas, que eram exportadas, na expectativa da cooperação em forma de transferência de tecnologia. E no maniqueísmo da época, graças a um engenhoso ardil, cassava-se o registro do Partido Comunista do Brasil (PCB), no primeiro arranhão na recentemente renascida democracia brasileira.
Nesse panorama, Lattes, logo após a descoberta do mésons-p, segue para Berkeley, no bojo de seu impacto e, sobretudo, como parte das alianças firmadas entre Brasil e Estados Unidos, razão pela qual um cientista estrangeiro pôde fazer parte de pesquisas consideradas estratégicas para os interesses americanos, cuja Atomic Energy Comisson detinha o poder de liberar ou vetar os trabalhos decorrentes para publicação. Lá, conseguiu reproduzir, em laboratório, a obtenção dos mésons-p. Reafirmando a consagração obtida em Bristol, o feito de Berkeley redundou em um caudal favorável de outras situações, na criação do CBPF e, logo após, do CNPq.
E é no capítulo sobre a criação do CBPF que o livro traz algumas interessantes revelações, como, por exemplo, a participação de João Alberto Lins de Barros – o coronel João Alberto, temido chefe da polícia do Distrito Federal no Estado Novo – como um dos principais articuladores e promotores do novo espaço, conseguindo reforços políticos e financeiros. Dois outros irmãos de João Alberto também se envolveram no projeto por interesses profissionais e acadêmicos.
E outra revelação interessante é a de que se tratava de uma instituição de pesquisa que nasceu como fruto de intensa articulação entre pesquisadores, militares, políticos e diversos níveis governamentais, inclusive estaduais e municipais, que subsidiaram a sua fundação e suas atividades iniciais, em 1949, constituindo-se como sociedade civil, sem vínculo direto com o Estado, embora obtendo dotações orçamentárias da União, situação que perduraria até 1976, quando foi incorporado ao CNPq. Evidentemente que o impacto causado pela tecnologia nuclear e a vontade ou necessidade, para uns ou outros, de se alçar o país a um outro patamar além de seu perfil agrícola, propiciou apoios amplos à concretização do CBPF. E ainda, segundo a autora, a física no Brasil, que nasceu com maior vigor na Universidade de São Paulo (USP), quando de sua criação na década de 1930, começou a tomar vulto no CBPF, acarretando inclusive uma migração de alguns pesquisadores e dando origem à rivalidade entre ambas as instituições, além de pesquisadores estrangeiros, sendo que alguns até permaneceram ali definitivamente.
O que, com efeito, vale dizer é que a criação do CBPF e, até mesmo, logo posteriormente, do CNPq, representou a primeira ação organizada e a primeira evidência de sua constituição, da comunidade científica nacional, entendendo-se como tal a defesa de interesses comuns da ciência no Brasil.
A década de 1950 caracterizou-se pela efervescência do debate em torno de concepções distintas de desenvolvimento: o liberalismo clássico, que apregoava o laissez-faire e a importância do capital estrangeiro como fator dinamizador do crescimento econômico; o nacional desenvolvimentismo, baseado no ideário da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) preconizando uma concepção autônoma de desenvolvimento com base no processo de substituição de importações através da absorção de tecnologias; e o desenvolvimentismo nacionalista, caracterizado pela presença forte e efetiva do Estado na economia e investimentos em infra-estrutura industrial e bens de produção.
O segundo governo Vargas (1951-54) seguiria essa terceira perspectiva, marcadamente nacionalista e de grande apelo popular, caracterizada pela criação de empresas estatais voltadas para a geração de insumos industriais e fontes de energia, como Petrobras, Eletrobras, Companhia Siderúrgica Nacional, além de uma agência de fomento para financiar essa empreitada, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE).
Embora ocorrida no final do governo Dutra, mais identificado com o liberalismo econômico, a criação do CNPq em janeiro de 1951, às vésperas da posse de Getúlio Vargas, afinou-se melhor com a perspectiva nacional-desenvolvimentista desse último. Sua alocação em linha direta com a Presidência da República, sem qualquer interveniência ministerial assim como a composição do Conselho Deliberativo do órgão, integrado por cientistas, militares e membros da burocracia governamental, já no governo Vargas, reflete a grande aliança em prol de um desenvolvimento nacional com maior margem de autonomia tecnológica.
Ana Maria Andrade demonstra no capítulo referente à criação do CNPq, que se pode considerar, apesar de curto, um dos melhores textos já produzidos sobre a história do órgão, não obstante os muitos já existentes, como se costurou essa aliança. Inicialmente ainda sob o signo da importância da pesquisa nuclear derivada da guerra, e de se deter esse arsenal tecnológico para se fazer valer no concerto das nações, também é concebido como passível de desempenhar o papel de uma agência de energia atômica, nos moldes da americana. De certa forma, isso desperta um “orgulho nacional”, facilitando enormemente sua aceitação nos meios políticos de todos os matizes. Mesmo tendo sua criação motivada pela questão do domínio da tecnologia nuclear, o conselho acaba por amalgamar os diversos segmentos da comunidade científica nacional, tornando-se, apesar de seu caráter governamental, o locus privilegiado de um pacto pelo desenvolvimento nacional, criando os rudimentos de uma política científica nacional.
Nesse capítulo também, a autora descreve mais detidamente a figura e o papel do almirante Álvaro Alberto, elo de ligação e união entre a diversa composição do Conselho Deliberativo do CNPq, por sua condição de militar de alta patente, estreitamente vinculado aos interesses da comunidade científica. Porém, apesar dos objetivos comuns que selaram essa ampla aliança, não deixa de desvelar as dificuldades iniciais de seu funcionamento, a ausência de critérios e parâmetros para a concessão de auxílios e bolsas, o peso dos interesses pessoais na obtenção de bolsas, o poder do lobby dos médicos, por sua tradição para conseguir financiamentos para cursos de aperfeiçoamento que, necessariamente, não guardavam relação com a proposta política do órgão.
Com o suicídio de Vargas em 1954 e a posse de Café Filho, ocorreu uma reviravolta no modelo de industrialização estatista implantado na primeira metade da década de 1950, do qual não saiu ileso o conselho. Embora a autora considere que as dificuldades com as quais se defrontou o CNPq dali por diante se devessem à crise econômica do país e às dificuldades monetárias do período, vale dizer que outros autores atribuem o esvaziamento do órgão à própria reorientação da política econômica a partir de então. O governo Kubitschek, o qual optou por um processo de crescimento acelerado — cinqüenta anos em cinco — e redirecionou a política industrial para o setor de bens de consumo, através da substituição de importações e da participação do capital estrangeiro, levou ao desmantelamento da proposta varguista de um modelo autônomo de industrialização e, conseqüentemente, ao fim da aliança que forjou o CNPq. Seu esvaziamento tornou-se inevitável, tanto que a proposta de criação de um Ministério da Ciência, apoiada por diversos institutos de pesquisa e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), acabou natimorta por falta de apoio político no governo JK.
E tal esvaziamento também pode ser explicado por um caso por poucos conhecido e, que, segundo revela a autora, tomou proporções de escândalo, podendo ter contribuído para seu enfraquecimento e pondo fim ao sonho de tornar o Brasil detentor de tecnologia nuclear.
Trata-se da compra, de dois sincrociclótons, primeiro um de menor porte e, posteriormente, outro maior, equipamento importante para a consolidação da pesquisa em física no Brasil e para o domínio de tecnologia atômica. Um caso que se arrastaria de 1949 a 1960, em que se envolveram cientistas, políticos e militares, financiamentos perdidos, interesses internacionais em jogo, revelando a ausência de planejamento da pesquisa, a capacitação de recursos humanos, a ingenuidade nacional frente aos interesses americanos, causando uma fissura tamanha nas relações pessoais entre pesquisadores e entre o CBPF e o CNPq, acrescida de desvio de verbas e corrupção, que acabaram por respingar no almirante Álvaro Alberto, sendo, segundo a autora, a causa de sua demissão da presidência do CNPq. Ao cabo de 11 anos, viu-se a perspectiva da capacitação tecnológica nuclear nacional esvair-se mais uma vez: no meio do caminho abandonou-se a proposta do sincrociclóton maior e, quando finalmente inaugurou-se o de menor proporção, descobriu-se a inutilidade de seu emprego.
Mesmo que apenas pelo relato desse caso, que aqui evita-se contá-lo em detalhes para instigar a curiosidade do leitor, vale a pena debruçar-se sobre o livro de Ana Maria Andrade. Nele pode-se entender por que, às vezes, mesmo se tendo condições favoráveis, poucas vezes bem entendido, torna-se difícil fazer ciência e, principalmente, apresentar resultados palpáveis e tangíveis à sociedade, na busca de sua legitimação.
Portanto, Ana Maria Andrade resgata a história da construção de uma comunidade científica, de sua capacidade de articulação e mobilização de diversos setores da sociedade e do Estado em um livro que, ressalte-se, profundamente bem documentado, tanto em fontes textuais e iconográficas, apenas carente de um glossário de termos de física, necessário aos leigos, nos faz pensar que ciência exige planejamento, avaliação e, fundamentalmente, perspicácia política e uma profunda compreensão do meio na qual a atividade científica se insere, em todas as suas dimensões: política, econômica, social e tecnológica.
Resenhista
Sérgio Gil Marques dos Santos – Fundação Oswaldo Cruz/Presidência. E-mail: gsergio@terra.com.br
Referências desta Resenha
ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de. Físicos, mésons e política: a dinâmica da ciência na sociedade. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec; Mast; CNPq, 1999. Resenha de: SANTOS, Sérgio Gil Marques dos. Ligações perigosas: as relações entre Estado e ciência no Brasil do pós-guerra. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.8, n.1, mar./jun. 2001. Acessar publicação original [DR]