Fin de siglos¿ Fin de ciclos? 1810, 1910, 2010 | Leticia Reina e Ricardo Pérez-Montfort

Obras escritas com a participação de diversos autores geralmente abordam um determinado tema a partir de múltiplos enfoques, mas este não é o caso do livro Fin de siglos¿ Fin de ciclos? 1810, 1910, 2010; nesta obra, organizada por Letícia Reina e Pérez Montfort, 27 autores escreveram sobre três conjunturas históricas relevantes para o México, e o resultado do livro foi uma narrativa marcada pela pluralidade de assuntos e interpretações – uma História no “plural”.

Os textos reunidos no livro de Reina e Péres-Montfort registram o pensamento dos pesquisadores que participaram do seminário de especialização realizado pelo Instituto Nacional de Antropologia e História do México (INAH) e pelo Centro de Investigações e Estudos Superiores de Antropologia Social (CIESAS). A proposta do seminário consistia em promover uma discussão sobre a história do México a partir das comemorações decorrentes do bicentenário da Independência e do primeiro centenário da Revolução Mexicana, ambos completados em 2010.

A organização do seminário influenciou na composição do livro que apresenta 34 textos, além da Introdução que foi escrita pelos organizadores da obra. Alguns textos são curtos (de 4 a 8 páginas), a maior parte possui uma extensão média (entre 10 e 15 páginas) e apenas dois são mais extensos (entre 20 e 24 páginas). Partindo da premissa de que a qualidade de um texto não deve ser avaliada pela sua extensão, mas sim, pela sua coerência na abordagem de um determinado tema, pela objetividade e pelas interpretações apresentadas, entendo que o livro aqui resenhado reuniu um conjunto qualificado de textos, sobretudo se considerarmos a sintonia entre os trabalhos apresentados e a proposta do seminário que foi realizado com o mesmo nome da obra: “Fin de siglos¿ Fin de ciclos?”

A perspectiva de uma História Comparada perpassa o corpo do livro que está subdividido em seis partes: (1) “Tres fines de siglo”; (2) “Crisis Económica”; (3) “Crisis Políticas”; (4) “Crisis social”; (5) “Crisis Cultural”; (6) “Balances. Fin de siglos¿ Fin de ciclos?”

A palavra “crisis” foi um tema recorrente e, de certa forma, ela é um indicativo de uma das marcas da história mexicana. A Independência ocorreu num contexto de crise nas relações entre a sociedade e o governo espanhol, e cem anos depois, a Revolução Mexicana foi iniciada num contexto de crise entre a sociedade e o governo de Porfírio Diaz. Nas décadas finais do século XX e no começo do século XXI, um novo ciclo de crise atingiu o México que, sob a influência do neoliberalismo e da globalização, realizou grandes mudanças na sua política econômica. Para muitos intelectuais mexicanos, os efeitos colaterais das mudanças na política econômica e a continuidade das desigualdades sociais, são indicativos de uma crise inacabada.

De fato, podemos pensar a história do México a partir dos três ciclos de crises cronologicamente representados pelos anos de 1810, 1910 e 2010; contudo, devemos ponderar as observações registradas no livro a respeito da prática da comparação histórica. Corretamente, Enrique Semo reconheceu a existência de “regularidades propias de cada sociedad”, contudo, afirmou que “la historia no se repite”, uma vez que as condições concretas da sua realização mudam com o tempo. Semo concentrou-se em apontar elementos em comum nos três últimos séculos de história do México e destacou a existência de iniciativas de modernização impostas pela elite, além da influência de interesses externos nos assuntos mexicanos e do agravamento das tensões sociais.

Elisa Speckman Guerra escreveu sobre a legalização das desigualdades do México na transição do século XIX para o XX e identificou uma importante mudança nas práticas de reprodução da desigualdade: a distinção jurídica entre “castas” e a negação da cidadania aos índios foi gradualmente suprimida e no seu lugar surgiu a distinção entre “ricos” e “pobres”, mexicanos letrados e analfabetos; e a sob influência do conceito de meritocracia, grande parte da população mexicana foi excluída do direito de voto.

A questão da desigualdade social também foi analisada por Víctor Gayol, Luis Reygadas, Paolo Riguzzi e Antonio Ibarra. Estes autores responderam a difícil tarefa de pensar a historicidade das desigualdades no México – um país marcado pela coexistência de diferenças sociais, étnicas e econômicas. Gayol focou sua abordagem no período de 1780 a 1810, explorando as discussões da época sobre a legitimidade das desigualdades sociais – aspecto jurídico fundamental na organização do Antigo Regime. Reygadas, por sua vez, ressaltou a relação entre as condições econômicas e escolaridade na sociedade mexicana atual. Reygadas apresentou dados que indicam o uso das novas tecnologias e a formação escolar como fatores de diferenciação entre os ricos e os pobres no México. Ibarra concentrou sua atenção nas desigualdades econômicas no período entre 1780 e 1910, identificando nestas desigualdades, um dos motivos da Independência. Riguzzi reconheceu a existência de um crescimento econômico e de fortalecimento do Estado no governo de Portfírio Diaz, contudo, apontou uma série de problema existentes no governo porfirista, dentre os quais podemos destacar o agravamento das desigualdades sociais e a ruptura com práticas econômicas importantes para as comunidades indígenas.

A composição do Estado mexicano e as suas principais mudanças a partir da Independência foram temas contemplados por Carlos San JuanVictoria, Salvador Rueda-Smithers, Daniela Marino e Ignácio Sosa. RuedaSimithers retomou o pensamento político dos zapatistas para lembrar que o governo implantado em Morelos durante os anos da Revolução possuía uma proposta de valorização dos ayuntamientos e de construção de uma justiça local (envolvendo a própria comunidade). Na opinião da autora, estes elementos do pensamento zapatista foram silenciados pelo governo pós-revolução que seguiu o caminho da centralização política. Este mesmo governo usou a figura de Zapata para valorizar sua política de reforma agrária.

Daniela Marino apresentou uma interessante interpretação do processo de fortalecimento do aparelho estatal durante o governo de Porfírio Diaz. Foi sob o comando de Porfírio que o Estado ganhou uma forma consolidada no México através do controle do território e da população, “del monopólio de la violencia, de la fiscalidad y de la creación del direcho”. Na concepção da autora, a queda de Porfírio foi uma consequência das limitações do seu regime, dentre as quais estavam a incapacidade de renovar sua liderança principal e a distribuição desigual da riqueza gerada.

Ignacio Soza propõem uma espécie de genealogia das crises que atingiram o México no passado e da crise contemporânea. Soza não diminui a importância de influências externas (primeiro a Espanha, depois os Estados Unidos) nos assuntos mexicanos e não ignora a existência de conflitos entre grupos sociais mexicanos pelo controle do poder político; contudo, na opinião deste autor, as crises foram provocadas por ações e omissões do governo. Interpretação instigante, sobretudo se acrescentarmos a opinião do autor de que as reformas promovidas após as revoluções atendiam aos interesses das elites.

Carmen Salinas Sandoval escreveu sobre a transição do Antigo Regime ao Liberalismo na Nova Espanha. Leticia Reina destacou a distância entre as expectativas existentes na sociedade mexicana no começo do governo Porfírio Díaz e os resultados alcançados; e como bem salientou Reina, durante o Porfiriato: “El problema de tierras, impuestos, injusticias y lo nuevo, que era la falta de representatividad de sus gobernantes, estaban indisolublemente ligados”. Alberto Azis Nassif também escreveu sobre a representação política no México e diferenciou-se dos outros autores pela ênfase na hegemonia do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e nas mudanças ocorridas a partir do surgimento de novas forças políticas nas décadas finais do século XX.

A questão agrária é reconhecidamente um dos temas mais importantes da história do México; neste livro, ela foi objeto de reflexão de três autores. Alejandro Tortolero apresentou um estudo sobre a economia agrária mexicana no século XVIII e constatou que diversos fatores provocaram crises no mudo rural da Nova Espanha: elevação dos preços, secas, custo da produção, enfraquecimento da economia familiar, endividamento dos “haciendados”. O texto de Tortolero oferece subsídios para compreendermos os problemas rurais mexicanos anteriores à Proclamação da Independência e, consequentemente, anteriores ao projeto de modernização agrária de Porfírio Diaz – tradicionalmente apontado como um dos principais motivos da Revolução Mexicana. Antonio Escobar Ohmstede abordou a questão agrária a partir do viés da continuidade das lutas pelo acesso a terra e apontou problemas na reforma agrária promovida após a Revolução Mexicana. Mais do que terra, o que estava em jogo também era o controle das águas e das matas – elementos fundamentais para a manutenção das culturas indígenas. Equacionar a distribuição destes elementos (contemplando interesses de “haciendados”, comunidades indígenas e municípios) tornou-se um grande problema para o governo mexicano e, considerando a concentração de terras existentes hoje no país, podemos inferir que o México ainda não superou este problema. Armando Bartra deslocou sua análise para assuntos mais contemporâneos como o impacto da Revolução Verde no México, a redução dos investimentos públicos na agricultura, a importação de alimentos, o êxodo rural e a perda da identidade social dos camponeses.

Na quinta parte do livro, os três textos reunidos apresentam um panorama de experiências de mobilização social ocorridas em diferentes conjunturas históricas. Carlo Rubén Ruiz Medrano analisou as “representaciones sociales de la transgresión” na Nova Espanha do século XVIII para explicar a cultura política das elites e a concepção que elas possuíam sobre os indígenas e as “castas” sociais inferiores. Rejeitando a ideia de submissão e passividade dos grupos explorados pelas elites, o autor valorizou experiências de resistência aos interesses das elites. Romana Falcón contribui participou do livro escrevendo o único texto que trata especificamente da situação da classe operária mexicana na segunda metade do século XIX. O estudo de Falcón é um interessante exemplo da diversidade de críticas, propostas e estratégias de ação adotadas pelos operários mexicanos num período de expansão da indústria no país. Geralmente ignorados, incompreendidos e reprimidos pelo sistema, os operários encontraram na luta armada uma possibilidade de transformar as suas precárias condições de vida.

Francisco Pérez-Arce abordou os movimentos sociais ocorridos no México ao longo das últimas décadas, e desta forma, contemplou temas como o fortalecimento do sindicalismo, o envolvimento da Igreja com os problemas sociais, o resurgimento do movimento indígena (inicialmente em Chiapas, depois em âmbito nacional).Todo movimento social implica na existência de demandas não atendidas pelo poder público e, consequentemente, o texto de Pérez-Arce também nos fala das reações do governo diante da pressão social.

As relações entre Estado/cultura/sociedade ganham ênfase na quinta parte do livro através dos textos de José Joaquín Blanco, Esther Acevedo, Ricardo Pérez-Montfort, Rodrigo Martínez Baracs, Carlos Illades e Lorenzo Meyer. A existência de seis textos focados nas questões culturais evidencia a valorização deste tema na academia mexicana.

José Joaquim-Blanco escreveu sobre as tensões entre a Igreja e a Coroa no final do século XVIII quando “las reformas borbónicas” encontraram críticas e resistências do clero na Nova Espanha. Neste período, estava em curso um processo de construção de uma identidade mexicana pela valorização da cultura indígena e pela percepção das diferenças entre os habitantes da Nova Espanha e os espanhóis, e conforme demonstrou Joaquim-Blanco, membros do clero participaram deste processo que incluía o sincretismo religioso manifestado na Virgem de Guadalupe e no santo Tomás-Quetzalcóatl.

Esther Acevedo explorou o tema do modernismo no México, reconstituindo, a partir das revistas literárias mais expressivas do final do século XIX e começo do XX, as principais ideias deste movimento cultural. Segundo Acevedo, o modernismo mexicano surgiu dividido em três correntes: uma aberta para ideias e influências internacionais, uma focada no “decorativismo”, e uma que aspirava a criação de uma arte nacional. Diversos artistas participaram do modernismo que encontrou apoio no próprio governo através de Justo Sierra – Ministro da Instrução Pública no governo de Porfírio Diaz e incentivador da arte modernista. Ricardo Pérez-Muntfort também escreveu sobre a arte mexicana na transição do século XIX para o XX, contudo, sua interpretação seguiu outra direção: PérezMuntfort considerou negativa a influência do governo na arte mexicana, tanto durante o regime de Porfírio Diaz, quanto no período pós-revolução.

Rodrigo Martínez Baracs trabalhou a preocupação dos artistas e intelectuais com o futuro mexicano, ressaltando a presença desta preocupação em conjunturas históricas distintas como no conflito com a Espanha na ocasião da independência, na Revolução Mexicana e na atual crise mexicana. Tomando a arte como ponto de referência, Martínez não percebe o futuro de uma forma otimista.

Carlos Illades estudou o medo que as massas populares provocavam na elite mexicana durante o Regime Porfirista e apontou, como uma das consequências deste medo, a opção pelo autoritarismo político e pelo fortalecimento das instituições do governo. Finalizando a parte do livro dedicada à Cultura, Lorenzo Meyer escreveu sobre o fim da hegemonia do Partido Revolucionário Institucional, consumado no ano 2000; mais do que uma mudança de representação política (com a projeção de novos partidos), o declínio do PRI sinalizou uma crise nas relações entre a sociedade e o governo, uma vez que foi acompanhado de um descrédito pelas instituições públicas e de uma crescente insatisfação com os resultados da economia mexicana. Na opinião de Meyer, os principais problemas do México são conhecidos, mas a solução deles permanece um desafio para o governo e para a sociedade.

Em linhas gerais estes são os principais tópicos do livro Fin de siglos¿ Fin de ciclos? 1810,1910 e 2010. Sem a pretensão de ser uma “história total” do México contemporâneo, o livro possui o mérito de colocar em pauta uma série de perguntas e relevantes para a compreensão das mudanças e continuidades ocorridas no México, tanto no plano social e cultural, quanto no plano econômico e político. Aberto para a pluralidade da história, este livro nos convida para a aceitação das dúvidas e para o reconhecimento das divergências na interpretação do passado – valorizando aspectos essenciais para a produção de um saber acadêmico crítico e dinâmico.

Fabiano Quadros Rückert – Doutorando em História pelo PPGH da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Bolsista CAPES-PROSUP. Professor de História na rede municipal de São Leopoldo. E-mail: fabianoqr@yahoo.com.br


REINA, Leticia; PÉREZ-MONTFORT, Ricardo (Coord.). Fin de siglos¿ Fin de ciclos? 1810, 1910, 2010. México: Siglo XXI, 2013. Resenha de: RÜCKERT, Fabiano Quadros. Uma história do México no plural. Dimensões. Vitória, n.39, p. 371-377, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

 

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