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Filosofia, história e sociologia das ciências: abordagens contemporâneas | Vera Portocarrero

O conjunto de textos que compõem Filosofia, história e sociologia das ciências constitui, na verdade, uma ‘abordagem contemporânea’ da ciência em sua história. Trata-se de uma coletânea de trabalhos altamente informativos e formativos nos campos da história, da filosofia, da epistemologia e da sociologia da ciência. Os autores interrogam as relações das ciências, das técnicas e das sociedades não de um ponto de vista estritamente ‘positivista’ ou ‘dogmático’, mas de um ponto de vista histórico-crítico. Porque, para eles, a ciência pensa, com um pensamento que engaja a vida. Tais interrogações, por vezes apaixonantes e controversas, abrindo para várias opções, compõem uma verdadeira e oportuna história das ciências escrita de modo coerente e vivo, revestindo-se de uma importância que torna sua leitura preciosa não somente para o especialista, mas para todo aquele que pretende se iniciar na pesquisa e se interrogar sobre a natureza da ciência, seus desafios e seus problemas fundamentais. Ademais, trata-se de uma história que não separa aquilo que a realidade da história unifica: o saber e as culturas.

Temos aí uma história crítico-sociológica tentando, entre outras opções bem-sucedidas, questionar os velhos dogmatismos e a problemática cientificista, e procurando mostrar que, longe de poder fundar a sociedade, a ciência constitui um produto das sociedades, que ela não pertence, como os heróis civilizadores dos mitos, a uma ordem transcendente, escapando às vicissitudes do tempo e do espaço; porque ela é obra dos homens, elaborada por uma cultura e por sociedades particulares: é histórica e geograficamente situada, mas também social, histórica, filosófica, econômica e eticamente condicionada. É portadora das marcas do contexto no qual se constrói e se desenvolve, assumindo esta ‘relatividade’ que a impede de propor ‘conhecimentos absolutos’.

Os autores não se preocupam com o poder das chamadas ‘aplicações’ tecnológicas da ciência. Eles interrogam porque não estão satisfeitos com os resultados eficazes e benéficos da ciência. Não veneram a ciência. O mundo moderno, ao cometer esse erro, perdeu de vista o pensamento. E criou a ‘religião da ciência’ (cientificismo), incutindo nos ‘espíritos’ uma confiança cega no poder da ciência e um respeito quase universal por sua autoridade intelectual. Por muito tempo, essa confiança e esse respeito resistiram aos desastres e acidentes imputados à ciência. O de Hiroshima ainda está em nossa memória. O futuro das manipulações genéticas nos apavora. Nesse domínio, não há progresso automático. A ciência pode destruir metodicamente o planeta! Por isso, os autores mostram, em suas análises, que tanto as ideologias cientificistas quanto os movimentos ‘anticiência’ constituem as duas faces de uma mesma moeda, onde o pensamento, operando na ciência, aparece de modo meio apagado ou desfigurado. Donde a necessidade de nela ser novamente introduzido, para que nele sejam buscados os argumentos de uma verdadeira ‘ética’, a fim de que a política volte a constituir uma deliberação sobre os fins desejáveis, para uma sociedade, e uma determinação desses fins: e não se converta, como parece, fascinada pelo modelo da objetividade e da racionalidade científicas, numa ‘ciência política’ que se sacrifica ao mito do especialista, nada mais visando que uma gestão eficaz dos meios. Portanto, trata-se de uma ética que une pensamento e liberdade, contrária aos dogmatismos e moralismos, capaz de restituir ao pensamento científico sua grande vocação intelectual: a de uma aventura infinita.

Por tudo isso, torna-se oportuna a reflexão rigorosa dos autores da presente história, introduzindo “diversas vertentes de pensamento que constituem a fundamentação do atual debate sobre as ciências”, visando detectar os momentos fundamentais da démarche científica, a partir do estudo de alguns dos temas mais significativos da história das ciências. Trata-se de uma investigação que se inscreve no contexto do que chamo de uma “epistemologia histórica”, não somente preocupada com as determinações ‘intelectuais’ ou ‘filosóficas’ de nosso saber, mas com suas determinações sócio-histórico-culturais. Considerando a ciência como um fato cultural total, não só contribui para a superação do mal-entendido histórico entre ciência e filosofia, entre humanismo e tecnologia, entre ciência e sociedade etc, mas nos fornece uma melhor apreensão e uma melhor compreensão da ciência e seus métodos, bem como uma compreensão mais completa e mais humana de nossa civilização e de nós mesmos. Porque a ciência, profundamente enraizada na cultura, é construída por homens; apoiada em diversos pressupostos filosóficos, recorre sempre, em sua história, às formas mais variadas da imaginação.


Resenhista

Hilton Japiassu – Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ.


Referências desta Resenha

PORTOCARRERO, Vera (Org.). Filosofia, história e sociologia das ciências: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994. Resenha de: JAPIASSU, Hilton. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.1 n.1, jul./out. 1994. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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