CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. Resenha de: SZCZEPANIK, Gilmar Evandro. Principia, Florianópolis, v.16, n. 3, p.505–510, 2012.
A obra Filosofia da tecnologia: um convite, publicada em 2011 pela editora da Universidade Federal de Santa Catariana, apresenta os autores fundamentais e as principais correntes filosóficas que perpassam a filosofia da tecnologia. Além de divulgar o debate filosófico existente em torno da tecnologia de forma convidativa, instiga e desafia a realização de novas pesquisas sobre esse tema ainda pouco estudado no contexto brasileiro. Trata-se de uma das melhores referências sobre a temática existentes em língua portuguesa. A clareza argumentativa com a qual a obra foi escrita permite que pessoas não iniciadas nessa área tenham um entendimento adequado do assunto e pessoas já inseridas na tradição filosófica conheçam a pluralidade e a complexidade dos problemas filosóficos vinculados à tecnologia. Muito mais do que um recorte ou uma simples reconstrução da história da filosofia da tecnologia e de seus problemas, a obra traz um olhar crítico e reflexivo sobre as questões filosóficas despertadas pela tecnologia.
O livro encontra-se dividido em 9 capítulos nos quais são apresentados os principais temas e problemas que permeiam a filosofia da tecnologia. No primeiro capítulo da obra, Cupani enfatiza a complexidade que envolve o estudo filosófico da tecnologia.
As dificuldades iniciam quando os investigadores se propõem a responder a seguinte questão: o que é a tecnologia? Diferentes filósofos profissionais buscaram respostas para essa indagação. Dentre as múltiplas definições e caracterizações existentes sobre a tecnologia, Cupani destaca aquela apresentada pelo filósofo norteamericano Carl Mitcham (1994) que compreende a tecnologia i) como objeto, ii) como conhecimento, iii) como atividade humana e iv) como volição. Além da problemática conceitual, o autor considera que a tecnologia tem implicações filosóficas distintas que repercutem de diferentes formas nas diversas áreas da filosofia. Assim, muitas teses filosóficas desenvolvidas ao longo da tradição poderiam ser repensadas e/ou reavaliadas a partir de ponto de vista tecnológico.
O segundo capítulo é dedicado aos pensadores clássicos da área, como o espanhol José Ortega y Gasset (1939), os alemães Martin Heidegger (1954) e Arnold Gehlen (1949) e o francês Gilbert Simondon (1958), que contribuíram para a consolidação da filosofia da tecnologia como uma disciplina. Cupani apresenta as peculiaridades argumentativas desenvolvidas por cada um deles para fundamentar uma concepção de tecnologia. Apresenta-nos assim, um Ortega y Gasset que concebe a tecnologia como um tipo específico de reforma que o homem impõe à natureza com o objetivo de satisfazer suas necessidades, sejam elas básicas ou supérfluas, pois o homem não quer apenas viver, mas deseja viver bem. Em seguida, expõe de forma precisa o enfoque ontológico e metafísico desenvolvido por Heidegger sobre a técnica, reconstruindo a crítica heideggeriana à concepção antropológica e instrumental da técnica. As ideias do filósofo e sociólogo Arnold Gehlen sobre a tecnologia são apresentadas logo após e Cupani retoma as principais teses relacionadas à ambigüidade da técnica, às relações e semelhanças da técnica com a magia, ao prolongamento técnico dos membros e das capacidades humanas. Por fim, Cupani apresenta a posição do filósofo francês Gilbert Simondon que chama a atenção para a falta de compreensão do mundo tecnológico e a necessidade de se filosofar sobre a técnica. Perspectivas otimistas são contrapostas com abordagens críticas e não-otimistas. Todos os autores apresentados consideram fundamental direcionar o pensamento filosófico à tecnologia.
O terceiro capítulo é dedicado principalmente às ideias do historiador norteamericano Lewis Mumford (1934, 1967 e 1970), um dos mais expressivos estudiosos da filosofia da tecnologia pelo seu viés historiográfico, que esboça uma história do progressivo desenvolvimento tecnológico da espécie humana e analisa o papel que a técnica exerceu na civilização ocidental, apontando diferentes estágios de seu desenvolvimento.
Neste capítulo, Cupani apresenta o interessante argumento de Mumford segundo o qual o relógio (e não a máquina de vapor) é a máquina-chave da era industrial.
Um dos principais pontos deste capítulo está relacionado à compreensão da relação entre o homem e a máquina, pois “vivemos numa civilização da máquina”, diz Cupani, mas seria um exagero considerá-las uma maldição ou a causa de todos os nossos problemas.
No quarto capítulo da obra, nos deparamos com uma abordagem analítica da filosofia da tecnologia fundamentada predominantemente nos escritos do filósofo Mario Bunge (1974, 1985a e 1985b). Um dos primeiros pontos explorados é a distinção entre “técnica” e “tecnologia”. Ambas são caracterizadas pela produção de algo artificial, isto é, de um artefato. No entanto, a primeira designa um controle ou transformação da natureza com elementos pré-científicos e a segunda envolve necessariamente um embasamento científico moderno. O enfoque analítico da filosofia da tecnologia busca compreender a tecnologia como uma atividade planificada, que possui métodos, que utiliza e ao mesmo tempo desenvolve conhecimentos e que é orientada por um conjunto de valores, normas e regras específicas. Neste capítulo, Cupani concede espaço à discussão sobre a distinção entre ciência pura, ciência aplicada e tecnologia. Este debate vem sendo realizado há um longo período, mas as fronteiras entre essas áreas ainda não foram definidas com precisão. Além das linhas demarcatórias serem tênues, há posições alternativas que questionam a viabilidade da manutenção das mesmas. A tecnociência, por exemplo, sustenta que a ciência e a tecnologia encontram-se fundidas de tal modo que é inviável tentar compreendê-las separadamente. Na parte final do capítulo, há duas seções dedicadas as i) questões ontológicas e epistemológicas; e ii) as questões axiológicas e éticas suscitadas pela tecnologia. Desta forma, Cupani demonstra como podemos abordar analiticamente a tecnologia.
Como vimos até aqui, a filosofia da tecnologia comporta diferentes abordagens. A abordagem fenomenológica da tecnologia é desenvolvida no quinto capítulo do livro no qual Cupani discute predominantemente com Don Ihde (1990), Hubert L.
Dreyfus (1992) e Albert Borgmann (1984). O autor ressalta a forma como o filósofo norte-americano Don Ihde i) rejeita a noção de neutralidade científica e o modo como o mesmo ii) explora a relação entre eu — tecnologia — mundo que faz com que a tecnologia deixe de ser compreendida como um instrumento neutro e passe a ser compreendida como “encarnada” ou “incorporada”, interferindo diretamente nas experiências que temos. Em relação ao pensamento de Dreyfus, Cupani reconstrói as críticas do filósofo norte-americano ao programa de Inteligência Artificial (IA) que tinha a ambição de produzir supermáquinas tão ou mais inteligentes que o próprio homem. No entanto, “o nosso risco não é o advento de computadores superinteligentes, mas o de seres humanos subinteligentes” (Dreyfus 1992, p.280). A postura que Albert Borgmann exerce perante a tecnologia é de uma riqueza impressionante, pois ele consegue captar e descrever detalhadamente muitos aspectos que não são percebidos ou valorizados em um enfoque “objetivista”, afirma Cupani. Nesse contexto, a tecnologia é concebida como um modo de vida específico da Modernidade e deve ser compreendida como um fenômeno básico e não como consequência de fatores sociais, econômicos ou políticos. São particularmente interessantes as duas formas de vida humana geradas pelo paradigma das coisas e o paradigma dos dispositivos apresentados originalmente por Borgmann e retomados aqui pelo autor do livro.
O vínculo entre tecnologia e poder é o tema central do sexto capítulo. Nele Cupani recorda que a relação entre tecnologia e poder já tem uma longa tradição dentro do cenário filosófico, mas concentra a sua análise sobre tecnologia e poder nos filósofos norte-americanos Langdon Winner (1986) e Andrew Feenberg (1999) com intuito de explorar as discussões filosóficas mais recentes. O primeiro ficou famoso pela abordagem sustentada em seu prestigiado artigo Do artifacts have politics? no qual concebeu a tecnologia como possível portadora de qualidades políticas, como aquelas que condicionam o modo de vida das pessoas ou aquelas outras que parecem impor condições sociais e estruturas de poder. Se Winner — e seus diversos exemplos — exploram a dominação e o poder que a tecnologia exerce sobre o homem, Feenberg trilha um caminho alternativo, buscando apresentar propostas para resistirmos ao poder exercido pela tecnologia, argumenta Cupani. A forma como essas duas teses são apresentadas, permitem ao leitor — seja ele iniciante ou esteja ele inserido há mais tempo na tradição filosófica — compreender e indagar sobre os possíveis pressupostos políticos que determinados artefatos tecnológicos ostentam ou representam.
A natureza do conhecimento tecnológico é o assunto apresentado no sétimo capítulo do livro. Cupani retoma o pressuposto de que a tecnologia não é apenas um prolongamento da ciência e reconstrói as diversas críticas apresentadas à concepção de tecnologia como ciência aplicada. Além disso, o autor busca apresentar algumas das peculiaridades do conhecimento tecnológico e faz isso utilizando autores como Javier Jarvie (1967), Henryk Skolimowski (1966), Walter Vincenti (1990) entre outros mais. O capítulo apresenta uma interessante comparação entre o conhecimento científico e o conhecimento tecnológico, demonstrando as sutilezas e as peculiaridades que há em cada uma dessas áreas. As questões clássicas relacionados ao conhecimento como “crença verdadeira justiçada” e a (in)viabilidade da manutenção desta concepção também são exploradas.
O capítulo oitavo é reservado à discussão dos impactos que a tecnologia produz nas diferentes culturas. Cupani (2011, p. 187) se propõe a “analisar o modo como os vários autores descrevem as diversas maneiras em que o saber tecnológico e suas produções influenciam a sociedade a que se incorporam, modificando sua cultura e, por conseguinte, a personalidade de seus membros”. Pontos como a supervalorização dos meios em relação aos fins, a universalização das normas técnicas, a mudança na percepção do tempo, a tendência de reduzir o conhecimento à informação, assim como a própria alteração da personalidade são explorados pelo autor. Assim, o autor apresenta um interessante cenário no qual a visão otimista tradicional em relação à tecnologia é questionada à medida que somos convidados a apreciar os impactos culturais provocados pelas diversas tecnologias nas mais distintas esferas culturais.
A questão do determinismo tecnológico é tratada no último capítulo do livro. São retomadas ideias de Winner (1986) e de Jacques Ellul (1954). Em relação a Ellul, Cupani desenvolve a hipótese de que a tecnologia esteja fora de controle por produzir consequências — muitas vezes não intencionais — imprevisíveis. Nesse sentido, Cupani considera que “a possibilidade de dirigir os sistemas tecnológicos para fins claramente percebidos, conscientemente escolhidos e amplamente compartilhados torna-se cada vez mais duvidosa”. Além disso, o autor explora as características da técnica moderna que a diferenciam da técnica antiga. O caráter autônomo da tecnologia acaba minimizando a possibilidade de escolha dos seres humanos, pois a ela se dá a partir daquelas opções fornecidas pela própria técnica. Em outras palavras, somos condicionados a escolher aquela opção que aparenta ser a mais eficiente. A autonomia da tecnologia é compreendia como uma espécie de autoimposição por ela ter suas próprias regras. Todas aquelas ações que são contrárias ou que não obedecem ao ideal de eficiência não parecem muito sensatas, considera o autor.
Por fim, cabe apenas ressaltar que o livro Filosofia da tecnologia: um convite contempla os principais temas e problemas relacionados à tecnologia, possibilitando que o leitor tenha contato com os principais referenciais teóricos da área e se sinta convidado a prosseguir com investigações filosóficas. O convite está feito.
Referências
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Gilmar Evandro Szczepanik – Doutorando em filosofia Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina BRASIL. E-mail: cienciamaluca@yahoo.com.br
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