A obra organizada pelos historiadores Elizete da Silva, Lyndon de Araújo Santos e Vasni de Almeida traz à luz uma importante discussão histórica acerca da presença das, por assim dizer, igrejas protestantes reformadas no Brasil, mais nomeadamente anglicanas, luteranas, presbiterianas, batistas, metodistas e congregacionais.
A primeira contribuição das discussões colocadas pelos autores é a importância das leituras por eles levantadas sobre parcela importante da população brasileira – os evangélicos reformados – no campo historiográfico nacional. A renovação historiográfica que alcançou a academia a partir do século passado tem nessa referida obra seu fecundo sinal ao enfocar novos objetos: a religião e a religiosidade dos “crentes”; novos enfoques: a institucionalização das igrejas; e novas preocupações: as questões de gênero, a mídia, a educação.
Os estudos sobre as nossas religiões, nossas religiosidades e, sobretudo um mergulho histórico para entender a institucionalização das denominações cristãs reformadas no Brasil vêm contribuir de forma significativa para a formação de nossa história cultural e religiosa. Ao propor, através da abordagem da obra, um enfoque na formação dessas instituições, os autores nos brindam com um novo olhar sobre a presença protestante no Brasil.
Os autores localizaram o século XIX como o recorte histórico de uma presença mais sistemática das diversas denominações cristãs no país. Importante é, para o leitor, compreender que esse século em matéria de história foi crucial para a configuração de um novo modelo de país e de sociedade que estava nascendo a partir dos primeiros momentos de um Brasil que recebia a corte portuguesa e anos mais tarde proclamava a sua independência.
É de signo positivo constatar que esse momento da história do Brasil, localizado pelos autores em suas investigações históricas, que coincide com a institucionalização das denominações evangélicas no país, evidencia a configuração de uma nova realidade econômica: a questão comercial com a formação de uma burguesia que aspirava novas oportunidades de negócio, novos interesses, novas formas de perceber o mundo a sua volta.
A realidade brasileira do século XIX em diante – tempo histórico abordado pelos autores – traz também uma nova configuração política nacional. A formação do Estado Nação mesmo tendo ainda na cultura católica luso-brasileira, seu grande referencial religioso demonstrou que a hegemonia da igreja de Roma, enquanto religião já não era tão hegemônica, assim, os evangélicos reformados já estavam se espalhando por todo o país, uma realidade nova que somada à urbanização por qual passava a sociedade brasileira na época, favoreceu a expansão religiosa.
Entre as contribuições da referida obra, consideramos o fato da mesma dar ênfase ao chamado pluralismo evangélico nacional. Enxergar não um protestantismo, mas protestantismos. A pluralidade religiosa nacional no aspecto evangélico, seja ele reformado – enfoque da obra – como neopentecostal, abre inúmeros campos de análise e de pesquisa de caráter histórico devido à diversidade de igrejas, de visões de mundo, de culturas e de modos de vida das populações crentes.
A abordagem proposta pela obra a partir de uma análise dos evangélicos reformados, mas sem deixar de lado a preocupação de localizá-los dentro de um universo bem mais amplo de cristãos, coloca – por esse não simples motivo – a discussão num patamar de importância para a historiografia que aborda as relações igreja-sociedade na história do país, historiografia não menos importante no nosso ponto de vista não proscrita em termos de importância teórica e metodológica de abordagem da história de nossa sociedade.
Desligar-se dos paradigmas de abordagem dos protestantes no Brasil, que em outros trabalhos sempre deram enfoque nas conhecidas “ondas”, nas já sedimentadas “classificações”, e as já saturadas “terminologias” para enquadrar esses ou outros temas relacionados às igrejas protestantes é outro sinal significativo de uma nova concepção historiográfica, de uma nova história da presença dos crentes no Brasil, novos referenciais que estão bem presentes na escrita da obra aqui resenhada.
Reafirmamos a importância de destacar a preocupação dos autores com a questão referente à diversidade religiosa brasileira, mesmo em se tratando do campo protestante-evangélico e este último, de forma especial, por se tratar do tema em debate na obra. A dimensão dos religiosos não católicos no Brasil não permite que desprezemos esse tipo de preocupação, pois se assim não fosse, a discussão cairia facilmente nas armadilhas que as generalizações conceituais costumam fazer, ao enquadrar, por exemplo, a igreja protestante como se fosse uma igreja homogênea, coisa que está mais claro que nunca que não o é.
Consideramos ainda observar o esforço da obra em não desconectar as questões relativas à presença protestante no Brasil com a sua raiz histórica, ou seja, a reforma luterana do início do século XVI. Observar as origens e os antecedentes históricos das novas religiões é importante do ponto de vista histórico pela necessidade da localização espacial e temporal dos acontecimentos que são na verdade a base de toda revolução religiosa que alcançou todo o ocidente católico a partir das ideais de Lutero, essas ideias aqui chegaram e estão na base da formação de uma nova realidade religiosa nacional.
Nomeamos como a grande justificativa para a leitura da obra a necessidade que nossa sociedade tem de compreender a grande presença protestante e evangélica em toda a estrutura da vida brasileira. Se o início do século XIX é marcado pela presença mais sistemática e o início da organização das igrejas cristãs não católicas no Brasil, o que é mostrado pelos autores, no século XX e XXI há uma verdadeira presença dos evangélicos em toda a estrutura social do país através de atuações na área da educação, da saúde, de obras assistenciais, para além é claro, da igreja enquanto templos religiosos que aglutinam e reúnem fiéis.
Na primeira parte da obra, os autores dão enfoque à institucionalização das igrejas no país. Anglicanos, Luteranos, Congregacionais, Presbiterianos, Metodistas e Batistas construíram seus alicerces históricos de formação de suas comunidades a partir de uma nova visão de mundo, de homem, de sociedade e de país. A institucionalização das igrejas é a preocupação dos autores, entender e discutir do ponto de vista histórico os evangélicos reformados em suas trajetórias históricas traz um panorama novo para nossa historiografia e abre novos interesses para pesquisas futuras dentro da temática ora exposta.
Na segunda parte, a obra propõe a discussão sobre os novos temas no campo religioso nacional na seara evangélica, que são a questão da mídia e as problemáticas em relação à questão de gênero dentro do universo das igrejas pesquisadas pelos seus autores. A necessidade de compreensão da relação das igrejas com o fenômeno da mídia nacional em todas as suas dimensões favorece a abertura de novas preocupações de pesquisa para a compreensão do fenômeno religioso nacional que, somada ao debate sobre as questões de gênero, nos ajuda a entender os novos horizontes que as pesquisas acerca das religiões favorecem.
Julgamos importante observar algumas lacunas que a obra deixa, mas que em nada tira o seu mérito e importância. Historicizar e questionar a presença das igrejas evangélicas e de seus membros com enfoque no campo político se mostra de fundamental importância para a compreensão do universo dos evangélicos no país, e de quebra nos apresentaria novos horizontes de compreensão desse fenômeno de crescimento dos mesmos na estrutura social brasileira. Acredito que depois de um longo período quase sem se fazer notar, a relação dos evangélicos com a política, como também a atual participação dos mesmos no debate político nacional, vem gradativamente influenciando os caminhos da nossa democracia.
Consideramos que se no século XIX ocorreu a institucionalização dos evangélicos no Brasil como é apresentado pela obra, o final do século XX em diante vem nos mostrando o que consideramos a institucionalização política dos crentes. A presença da chamada bancada evangélica no congresso nacional é testemunha dessa nova institucionalização que diferentemente do século XIX, não ocorre mais na forma de templos e conquista de fiéis para seus cultos, mas agora na forma de influência direta na configuração política nacional, o que, a nosso ver, mostraria o interesse das igrejas evangélicas na formação de uma agenda moral para o país, por meio do debate político.
Outro silêncio da obra consiste na problematização da relação entre a presença dos evangélicos no país e a sua relação com os valores contemporâneos de nossa sociedade. Em que medida a cultura evangélica estaria atuando e configurando a formação de novos valores morais, sociais e educacionais e é claro para além dos valores religiosos dos próprios crentes. Como estaria a cultura nacional brasileira já caracterizada pela personalidade do homem que ama o futebol, vive o seu carnaval, suas festas populares diante do avanço de uma identidade religiosa evangélica tão presente no nosso cotidiano e que segundo o último censo já totaliza 22% da população brasileira ou 42 milhões de pessoas?
Fica ainda uma reflexão: porque os evangélicos protestantes – em análise na obra – pelos mesmos dados do IBGE citados anteriormente somam apenas 6 milhões de seguidores, ou seja, 14% do universo atual de evangélicos nacionais? Sendo anglicanos, luteranos, presbiterianos, batistas, metodistas e congregacionais, os primeiros a se institucionalizarem no país a partir do século XIX, porque hoje em números gerais são parcela minoritária comparada aos números totais do universo evangélico no país?
Mas para além dessas lacunas e silêncios que apontamos na discussão da obra, ou seja, a preocupação com o fenômeno da presença dos evangélicos no debate político nacional, na configuração da democracia, da relação da cultura evangélica com a cultura nacional, os valores contemporâneos nacionais e, por último, a localização das igrejas, objeto de análise do livro em relação ao quantitativo dos outros evangélicos no Brasil, consideramos no todo, a obra como uma leitura de importância ímpar para o debate historiográfico em torno do universo religioso nacional de uma forma geral, e particular, em se tratando do universo evangélico.
Às vésperas das comemorações dos 500 anos da reforma protestante no mundo ocidental, acontecimento que quebrou com o monopólio do catolicismo, a obra Fiel é a Palavra: Leituras Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil, em matéria religiosa, contribui de forma harmoniosa, conceitual, metodológica e histórica para a compreensão de um Brasil que não é mais tão católico como foi nos seus três primeiros séculos após a primeira chegada portuguesa. Atualmente, não há mais como conceber qualquer pesquisa séria que se proponha em entender a sociedade brasileira sem se pensar na presença evangélica no país.
Finalmente, julgamos importante observar que a obra aqui resenhada abre a possibilidade de renovação da história da presença protestante no Brasil, como citamos no início do texto, por se distanciar da já amplamente discutida, presença protestante através das conhecidas ondas, classificações e terminologias. Por esse motivo inicial e que foi também preocupação dos autores, a obra pode contribuir para a formação de uma nova história da presença dos evangélicos protestantes no Brasil e por consequência, contribuir com a formação de uma consciência histórica e cultural do leitor, que sobre essa obra venha a se debruçar.
Raylinn Barros da Silva – Graduado em História e Pós-Graduado em Ensino de História pela UFT (Universidade Federal do Tocantins). Tem experiência na História Regional, atuando principalmente na pesquisa dos temas que envolvem a Igreja Católica e suas missões religiosas no extremo norte de Goiás, hoje Tocantins.
SILVA, Elizete da; SANTOS, Lyndon de Araújo; ALMEIDA, Vasni de (Orgs.). Fiel é a Palavra: Leituras Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil. Feira de Santana: UEFS Editora, 2011. Resenha de: SILVA, Raylinn Barros da. Escritas. Palmas, v.5, n.1, p. 151-156, 2013. Acessar publicação original [DR]
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