FICHTE, Johann Gottlieb. Pensamento político de Maquiavel Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Ed. Hedra,2010. Resenha de: GASPAR, Francisco Prata. Maquiavel e a sua aplicação. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.17, Jan./Jun., 2011.
Mãos se encontrando, cantando, esperando servir-se de justiça.
Impaciência de gerar outra carne, outra polícia diferente destas armas sempre justas para o crime1
Publicado originalmente no número 1 da revista Vesta, de Königsberg, em 1807, o ensaio de Fichte sobre a obra de Maquiavel é, decerto, um texto de divulgação e elogio da obra do “nobre florentino” para o leitor alemão da época. Retomando o texto-homenagem de Goethe escrito como um monumento erigido a Winckelmann, o propósito inicial de Fichte é o de recuperar a obra de Maquiavel, dando-lhe a sua devida importância – o que significa pretender menos que Goethe, afinal, se no caso do historiador da arte antiga se trata de alguém já com perfeita honra e dignidade, no caso de Maquiavel, embora haja alguns simpatizantes de sua obra, ele se encontra também “totalmente mal-compreendido e medido segundo uma medida que ele expressamente proíbe, depois caluniado, ultrajado, seu nome usado como pejorativo” 2. Mas, ao mesmo tempo, o ensaio é também um texto de intervenção política, no qual é o próprio Fichte que, através de Maquiavel, toma posição diante do rumo equivocado dado pelo governo prussiano para a sua política externa, e cujo desfecho tinha sido então a ocupação francesa de parte do território prussiano. Na sombra, Maquiavel ainda pede um sepultamento com honra, e é para isso que Fichte pretende contribuir; sob a ocupação francesa, é Fichte e a sua filosofia que, perturbados, não querem se calar.
Assim como um texto de divulgação, o ensaio é composto de duas partes: uma primeira parte introdutória, em que Fichte, ao fazer uma apresentação geral do autor e de suas obras, procura não só pro por uma nova interpretação da obra de Maquiavel, a fim de tirá-lo dessa sombra em que se encontra, mas também se pergunta qual aplicação a política de Maquiavel teria no tempo presente (de Fichte); e então uma segunda parte, que consiste em uma seleção de passagens traduzidas pelo próprio Fichte do Príncipe e acrescidas de alguns adendos seus. De início, é preciso afastar a má-compreensão e, com ela, por conseguinte, todos os seus preconceitos subjacentes. E Fichte o fará justamente, por incrível que pareça, como um historiador moderno da filosofia: através de uma leitura imanente de Maquiavel, a compreensão da obra é dada pela própria obra, e o leitor não deve vir com prévios conceitos ou prévios juízos, mas produzir o conceito da obra, isto é, julgar a obra, a partir das medidas que ela própria lhe fornece 3. E é desse modo, pois, que na mesma medida em que critica as leituras enviesadas de Maquiavel e suas respectivas incompreensões, Fichte pode apresentar um Maquiavel despido de preconceitos, não mais aquele autor imoral, tomado pelo paganismo e autor partidário e parcial, mas aquele que, insuflado pelo suprassensível e por uma natureza ética superior, formula uma filosofia política de alto alcance.
.Com efeito, para bem julgar a obra maquiaveliana, é preciso situar Maquiavel naquilo que ele tem em vista e não naquilo que nós temos em vista. Maquiavel, diz Fichte, se circunscreve à vida efetiva e à história, e é daqueles que formula seu pensamento a partir da vida, tudo introduzindo e extraindo da história – trata-se, pois, diz Fichte, de uma “sabedoria prática da vida e do governo (Lebens– und Regierungswei sheit) ”. Por isso, quando escreve, Maquiavel não tem em vista “as perspectivas superiores da vida humana e do Estado do ponto de vista da razão” 4 ; ele chega mesmo a ter aversão aos ideais, ao “dever ser”, mas circunscreve-se às coisas como são, procurando sempre a eficácia das ações políticas. Não exigir de Maquiavel, portanto, o que ele próprio não exigia dele, funciona aqui como chave de leitura de sua obra, e “a maior das perversões, assevera Fichte, é julgá-lo como se ele tivesse querido escrever um Direito de Estado transcendental e obrigá-lo, séculos depois de sua morte, a entrar numa escola que mesmo em vida ele não teve ocasião de frequentar” 5.
O Príncipe, por exemplo, não é um livro para ser lido como a exposição de uma moral ou de um direito puros, mas um livro em que Maquiavel, na medida em que procurou dar alguma firmeza e duração à relação dos Estados da Itália, apresenta um conjunto de regras e medidas políticas a serem tomadas conforme a situação, seguido sempre também de um conjunto de exemplos – que podem valer como regras, “modelos” – de como homens do passado agiram em determinadas situações. E se o que se busca é a consolidação de relações estáveis na Itália, o dever de todo príncipe não será um dever moral, mas o dever político de auto-conservação (Selbsterhaltung), e a sua suprema e única virtude será, em função desse dever, a consequência (Konsequenz), isto é, a coerência e sensatez em suas ações. Assim, não é a ação mais correta do ponto de vista moral que tem validade aqui, mas a ação mais eficaz de acordo com esse fim superior que Maquiavel se coloca.
Várias virtudes, ao contrário, como a generosidade ilimitada e insensata ou a clemência, são nefastas para o bom governo, e pecam em eficácia na conservação da nação e do poder político do príncipe. Aliás, é também nessa chave de leitura que é preciso interpretar a linguagem de Maquiavel: quando ele fala em “avareza, crueldade e assim por diante”, ele o faz apenas utilizando a linguagem popular da época, pois sob essas palavras o que se visa são virtudes efetivas do governar e não vícios: “uma sábia parcimônia, um rigor que se mantém inexorável na execução da lei e assim por diante” 6. Se Maquiavel faz uso dessa linguagem, diz Fichte, a culpa não está totalmente nele, pois nisso ele apenas partilhava a linguagem da época, de modo que a culpa tem de ser partilhada com ela.
Não querendo escrever uma doutrina transcendental da moral ou do direito, mas procurando formular, a partir da vida e da história, regras eficazes para a conduta política dos príncipes para um governo estável e sólido, Maquiavel não é, portanto, um autor imoral. Ao contrário, pensa Fichte: a sensatez e coerência que ele busca nos príncipes, o raciocínio rigoroso e bem ordenado e a finalidade geral de uma nação italiana unificada são os índices claros de que a obra de Maquiavel não só é uma leitura atraente, como de uma natureza ética da qual ninguém “se afastará sem amor e respeito, mas também, ao mesmo tempo, não sem lamentar que a esse soberbo espírito não tenha sido dado um palco mais regozijante para as suas observações” 7.
Isso em relação ao suposto caráter imoral de Maquiavel como escritor. Mas a mesma operação de dissolução de incompreensões e preconceitos que se imiscuem na leitura consagrada da obra do nobre florentino é também realizada em relação ao paganismo de Maquiavel, à sua indecisão entre republicanismo e monarquismo e ao seu partidarismo. Tais dissoluções, contudo, não vêm ao caso aqui. Pois é de interesse maior entender o trecho final da parte introdutória do ensaio, exatamente na medida em que, ao se perguntar pela aplicação da política de Maquiavel aos tempos presentes, começa a expor ainda mais claramente todo o caráter de intervenção política do ensaio, fazendo assim a transição para a sua segunda parte, na qual se apresentam algumas passagens do Príncipe, que, enquanto tais, foram traduzidas e selecionadas, como se tentará mostrar, não sem razão.
Mas já de início é de se perguntar, entretanto, como é possível a Fichte retomar a política de Maquiavel a fim de aplicá-la ao seu tempo presente? Isso porque se, por um lado, Fichte compartilha o “princípio capital” da política de Maquiavel, a saber, a ideia de que todo Estado pressupõe a guerra de todos contra todos, sendo sua finalidade, então, produzir a paz comum, mesmo que seja apenas como fenômeno exterior8 – pressuposição inevitável e inquestionável, já que, dado o Estado como instituição de coerção, é necessário pressupor essa guerra de todos contra todos –, por outro lado, todavia, enquanto Maquiavel introduz e extrai tudo da vida e da história, Fichte, ao contrário, é aquele que tem em vista o Estado de razão e o direito transcendental; mais que isso, Maquiavel parece ser justamente aquele “político especulativo meramente empírico” que é tão criticado por Fichte no Estado comercial fechado, o apêndice à Doutrina do Direito. É ali, pois, no Estado comercial fechado, que Fichte começa a delinear o estatuto da política no interior da doutrina-da-ciência como a ciência mediadora entre o puro direito público (das reine Staatsrecht) e a realidade efetiva 9. Afinal, na medida em que desse puro direito público nasce um Estado de razão que, por sua vez, não é imediatamente aplicável à realidade efetiva – já que em parte alguma os homens são encontrados sob uma constituição oriunda da razão e de conceitos, mas antes do acaso e providência – se faz necessária uma mediação, que faça a passagem entre o Estado de razão e o Estado efetivo dado, do contrário, a destruição repentina da constituição efetiva em proveito da constituição do Estado de razão resultaria na própria destruição dos homens, tornando-os selvagens. Em outros termos, o puro direito público fornece as regras (Regeln) universais necessárias a toda constituição fundada na razão e nessa “sua suprema universalidade elas convêm a tudo e, justamente por isso, não convêm a nada determinado ”, donde a sua imediata inexequibilidade – ou inaplicabilidade – na realidade efetiva; ora, para serem aplicadas, diz Fichte, elas “teriam somente de ser mais determinadas para um estado (Zustand) efetivo dado”, e essa determinação a mais da regra universal estabelecida no puro direito público ocorre na ciência que “eu denomino Política ” 10. Assim, dada esta certa heterogeneidade entre o Estado de razão e um Estado efetivo dado, entre a regra universal do direito e uma situação efetiva dada, torna-se necessária uma mediação, ou um termo médio, que permita a passagem dos dois mundos. A política enquanto ciência, e não enquanto prática, é uma ciência do governo que, portanto, partindo não de uma situação totalmente determinada, mas da avaliação de um estado geral de coisas, fornecerá como determinação a mais da regra universal as medidas (Maßregeln) a serem tomadas para que o Estado efetivo dado nessa situação geral se aproxime do Estado de razão; medidas que, enquanto determinação a mais das regras universais, se referem não a um caso particular, mas a um estado geral de coisas e possuem, por isso, ainda uma certa universalidade. – Traçando um paralelo ilustrativo, sugerido pela nota 18 do Tradutor 11, a política, como mediadora que torna possível a aplicação do puro direito à mera experiência, funciona aqui aproximadamente ao modo como o esquematismo da imaginação funciona na Crítica da Razão Pura de Kant. Lá, como aqui, está em questão a aplicação das regras, e lá, como aqui, entre as regras e aquilo sobre o que elas serão aplicadas há uma heterogeneidade que exige uma mediação, um terceiro termo homogêneo aos dois mundos; lá, essa mediação é dada pelos esquemas que, lembremos, enquanto efeito do entendimento (as regras) sobre a sensibilidade (um diverso em geral da sensibilidade), não “têm em vista uma intuição singular, mas só a unidade na determinação da sensibilidade” 12, aqui, essa mediação é dada pelas medidas, que ainda permanecem universais sob um certo ponto de vista, já que a política, como ciência do governo, não pode ser a política para a França ou Alemanha, nem a política para a França ou Alemanha no ano de 1800, mas tem de ser uma política comum a um certo estado geral de coisas 13.
Ora, se é assim, se a política é a ciência do governo que fornece, através das medidas, a determinação a mais que as regras do puro direito público exigem para a sua possível aplicação a um Estado existente, ela, então, se tem um elemento que provém da realidade efetiva, toma, na verdade, a sua substância das regras universais do direito transcendental, de modo que parece ser incompatível a Fichte utilizar a política de Maquiavel, aquele que introduz e extrai tudo da história, para aplicá-la ao seu presente histórico – e não se trata nem mesmo de saber se ela é aplicável ou não, já que de início ela parece ser incompatível com a concepção fichteana de política. E na crítica de Fichte ao que ele chama de “político especulativo meramente empírico” talvez seja o próprio Maquiavel que é ali encontrado: aquele é um político que, não confiando em nenhum conceito ou cálculo, mas apenas na experiência imediata, “rejeitaria esta política [a de Fichte], porque ela não conteria fatos, mas apenas conceitos e cálculos de fatos, em suma, porque ela não seria história. Um tal político tem em sua memória como uma reserva um número de casos e medidas (Maßrege ln) exitosas, que outros antes dele tomaram nesses casos. O que aparece a ele, ele pensa em um daqueles casos e procede como um dos políticos que o precederam” 14 – afinal, não é também Maquiavel, a partir da própria leitura de Fichte, que deliberadamente circunscrito à vida, formula suas regras e medidas a partir dos exemplos que encontra na história? E no entanto, Fichte não só se pergunta em que medida a política de Maquiavel é aplicável aos seus tempos, como antes já o havia elogiado profundamente – sendo o seu propósito, aliás, dar-lhe um sepultamento digno.
É que aqui dois pontos precisam ser considerados, e que, juntos, permitem entender a pergunta pela aplicação da política de Maquiavel e, com isso, a dimensão política do ensaio de Fichte. Em primeiro lugar, quando Fichte se pergunta pela aplicabilidade da política de Maquiavel é preciso entender que ele já não se encontra no terreno da política como ciência, mas já passou para o terreno da aplicação mesma da política, isto é, para a aplicação das medidas a um determinado caso dado, isto é, para a prática da política. Ora, como a medida é algo ainda geral, ela exige uma capacidade do político para saber se ela deve ser aplicada naquele caso e como ela o deve ser – como diz Fichte: “o político em exercício (ausübender Politiker) tem sempre ainda de aplicar uma regra, de certo ponto de vista sempre ainda universal, a um caso particular, e para cada caso particular um pouco diferentemente” 15, embora a aplicação não possa se afastar da regra.
Essa capacidade para aplicar a regra pode ser denominada, mantendo -se o paralelo com Kant, de capacidade de julgar, isto é, aquele talento para distinguir se algo está ou não sob a regra dada 16. E é o próprio Fichte que assim explica a aplicação da regra a partir de uma ciência mediadora: “sempre resta ao julgamento daquele que pratica (Beurteilung des Praktikers) um vasto campo; a ciência mediadora apenas o encaminha e indica a ponte dos dois mundos diferentes. Como a lacuna permanece, ele tem de se ajudar a si mesmo pelo julgamento (Beurteilung) ” 17.
Quer dizer, no momento em que é preciso aplicar a regra ou medida à realidade, o político prático, em exercício, necessita ter uma capa cidade de inventividade e discernimento para que mesmo a distância entre a medida da política, enquanto ciência mediadora, e a realidade seja acomodada 18. – E isso ele o fará pelo seu talento próprio em julgar e simultaneamente, caso este não seja suficiente, a partir de exemplos passados que mostrem como a medida foi aplicada – e é Kant quem diz que os exemplos aguçam a faculdade de juízo 19. É aqui, pois, que Maquiavel entra em cena, afinal, ao se situar no terreno da vida e da história e formular a partir delas regras para a boa conduta dos príncipes, ele acaba também por fornecer uma série de exemplos de como políticos do passado se portaram, isto é, como aplicaram as regras – em alguns casos, virtuosamente, em outros, de modo vicioso. O próprio Príncipe, aliás, é um livro escrito para Lorenzo de Médicis, para que, com a instrução do livro, possa unificar a Itália e bem governá-la, “pressuposto sempre que vos atenhais à maneira daqueles que vos apresentei como modelos ” 20 – aqui, o exemplo vale como medida, um pouco como no juízo reflexionante kantiano.
Em segundo lugar, com efeito, é preciso considerar também que quando Fichte se pergunta pela aplicabilidade da política de Maquiavel, ele não tem em vista a relação do príncipe com os seus súditos – que era a questão que movia Maquiavel ao escrever o Príncipe –, pois em geral os príncipes da Europa do século XIX já estão em paz com os seus súditos e não necessitam de uma política para isso, mas o que o move é a relação do príncipe com as outras nações. Ora, nessa relação entre os Estados não há nenhum direito superior, nem nenhuma lei, a não ser a lei do mais forte, e neste caso, não havendo direito, a relação de permanente volúpia da guerra é ainda mais forte e necessária. Como então formular uma política se não há um direito para lhe dar as regras universais que ela deverá determinar? É aqui, enfim, que a política de Maquiavel é aplicável, justamente porque, sem nenhum direito que lhe dê a regra, ele formula, com exemplos da história e tendo em vista a eficácia das ações, um conjunto de regras para dar estabilidade e duração à relação dos Estados da Itália. Assim como Maquiavel, Fichte procura agora formular regras para os príncipes para que haja estabilidade na relação entre os Estados, que justamente se encontram em guerra naquele momento.
Com efeito, no caso presente, em que não há nenhum direito superior que reja a relação entre os Estados e em que a volúpia de guerra de todos contra todos se intensifica ainda mais, cada nação procurando continuamente se engrandecer às custas da outra, a estabilidade entre os Estados não será estabelecida por qualquer confiança ou relação de tipo moral entre as nações, mas tão somente se cada nação conservar-se forte em seus limites, estiver bem preparada para a guerra, sempre atenta a qualquer tentativa de seu vizinho em mudar a situação em seu proveito – pois se ele puder, ele o fará necessariamente, mesmo que seja seu irmão – e em não confiando de modo algum nas palavras, mas sempre procurando forçar uma garantia – “e absolutamente não abrir mão dessa condição da garantia e, estando em armas, não as depor, a todo risco, antes de ter chegado a ela” 21. Desse modo somente, nesse estado de permanente atenção e tensão, nenhuma nação encontrará uma ocasião segura para se lançar contra o seu vizinho e “uma espada manterá a outra em repouso e sucederá uma paz crônica” 22. Por sua vez, essa perspectiva política, diz Fichte, se não decorre do direito, está porém de acordo com o ponto de vista da razão, pois, na medida em que os povos não são uma propriedade do príncipe, ele não pode os considerar como um assunto privado seu: ele não pode, como o faz um cidadão privado, acreditar na humanidade, na honestidade dos homens, afinal, quando o cidadão privado é lesado, é apenas ele que é lesado e ele ainda pode recorrer à justiça de sua nação, enquanto o príncipe, se assim o fizer, é toda a nação que será prejudicada e ele não pode arriscar, em nome dessa crença, a sua nação, o seu povo e todo os seus bens. Nesse sentido, aliás, a moral não tem validade na política, o príncipe está vinculado à lei moral somente em sua vida privada, pois, em relação aos seus súditos, é ao direito de sua nação que ele está vinculado e, em relação aos outros Estados, são por essas regras e política de força que Fichte formula que ele deve se guiar, sempre tendo em vista o bem-estar e a dignidade de seu povo.
Ora, é essa perspectiva “mais séria e vigorosa” que, afirma Fichte, foi deixada de lado em seu presente, e a filosofia do tempo que então vigora, “enamorada da paz perpétua”, oferece como bem somente uma certa “humanidade, liberalidade e popularidade, suplicando que simplesmente se seja bom e então tudo também será bom, por toda parte recomendando a áurea via média, isto é, o amálgama de todas as contradições em um surdo caos”. E o pior é que essa filosofia do tempo tem entrada nos gabinetes e cortes dos governos, e é a ela basicamente que Fichte concederá a honra de todas as desastradas decisões políticas do governo prussiano no cenário internacional, principal mente na relação com a França de Napoleão. Decerto, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, mostra Fichte, são os “alicerces eternos e inabaláveis de toda ordem social”, mas exclusivamente com eles não é possível construir e gerir um Estado 23. Aliás, é de se perguntar se não é essa mesma ingênua filosofia do tempo a raiz daquela leitura moralizante da obra de Maquiavel, de modo que em um só lance a obra de Maquiavel é recuperada e a filosofia política da época criticada.
Assim, considerados esses dois pontos diante da pergunta pela aplicação da política de Maquiavel ao tempo presente, a saber, que essa aplicação já se dá no terreno da prática e que o seu campo são as relações entre os Estados nas quais não há nenhum direito que as reja, é possível então compreender todo o caráter de intervenção política do ensaio de Fichte sobre Maquiavel e, nessa chave de leitura, passar aos trechos traduzidos selecionados por Fichte. Imagine agora, por tanto, leitor, um prussiano letrado em 1807 que vive desgostoso sob a ocupação francesa e, depois de ter lido a parte introdutória do ensaio, lê na primeira passagem selecionada do Príncipe – a Exortação a Libertar a Itália –: “Jamais, na verdade, o tempo foi mais favorável a um príncipe capaz de tornar-se o criador de uma nova ordem de coisas na Itália do que justamente agora” 24 ; que, diante da vacilação e adiamento do governo prussiano para declarar guerra contra a França de Napoleão, lê que os romanos não adiavam uma guerra se isso significasse adiar problemas que uma vez certamente virão, “pois bem sabiam que com isso a guerra não é sustada, mas meramente, e aliás para vantagem do outro, adiada para mais adiante” 25 ; imagine leitor, quando esse prussiano ainda lê as passagens do Príncipe sobre a arte da guerra, sobre como a neutralidade em uma disputa é sempre um equívoco – neutralidade pregada pelo governo prussiano – ou quando, enfim, lê sobre os secretários dos príncipes. Todas são passagens do punho de Maquiavel, mas é da política da época que elas falam também. E Fichte tem consciência disso: ele quer despertar – ou não seria vivificar? – em seu leitor um estado de coisas que poderia ter sido diferente 26. O texto é datado, mas hoje, em que o direito internacional e as suas instâncias são pouco respeitados, ainda dá muito o que pensar e imaginar. Imagine, pois, leitor, porque, de certa forma, também é disso que se trata, nessa confluência entre história da filosofia, filosofia e intervenção política, contida no ensaio de Fichte sobre Maquiavel, cuja já consagrada tradução de Rubens Rodrigues Torre Filho foi ano passado reeditada, depois de ter sua primeira publicação em 1979, no número 9 da revista Almanaque.
Notas
1Torres Filho. “Poema desmontável”. In: Novolume, São Paulo, 1997, p. 146.
2 FICHTE, J. Pensamento político de Maquiavel. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Hedra, 2010, p. 18.
3 Coisa que o próprio Fichte exigia dos leitores da sua doutrina-da-ciência, dado o seu caráter radicalmente reflexionante. Aqui, com Maquiavel, ele apenas faz a um outro filósofo o que ele exige para si. Sobre o princípio de leitura da doutrina-da-ciência, vale a pena ver a obra filosófica do tradutor, notadamente: Torres Filho., R. R. O espírito e a letra: crítica da imaginação pura em Fichte, São Paulo, Ática, 1975, cap. 1
4 FICHTE, J. Pensamento político de Maquiavel, p. 19.
5 Idem, p. 21.
6 Idem, ibidem.
7 Idem, p. 23.
8.Para isso, Fichte cita o próprio Maquiavel: “todo aquele que funda uma república (ou, em geral, um Estado) e lhe dá leis tem de pressupor que todos os homens são malignos e que, sem exceção nenhuma, darão vazão a sua malignidade intrínseca tão logo encontrem para isso uma ocasião segura”, idem, p. 40.
9 Toda essa discussão sobre a política em Fichte e, depois, a comparação com a imaginação em Kant, foi sugerida pela nota 18 do Tradutor, onde, depois de uma citação do Estado comercial fechado, na qual aparece a definição de política, o Tradutor comenta: “Tão central quanto a imaginação como mediadora entre o sensível e o inteligível, ela [a política] é, para Fichte, o meio -termo entre ‘história’ e ‘filosofia’”, idem, p. 42 – nota 18 da tradução
10 FICHTE, J. Der geschlossene Handelsstaat. In: Werke, III, Berlin, Walter der Gruyter, 1971, p. 390-1. No apêndice à Doutrina dos Costumes, Fichte escreve: “O que medeia (das Vermittelnde) a aplicação da pura Doutrina do Direito às de terminadas constituições públicas existentes chama-se Política ”, Ascetik als Anhang zur Moral, Werke, XI, p. 123.
11.A propósito, alguém poderia dizer que o paralelo da nota 18 feito pelo tra dutor é de Fichte com ele mesmo, e não da política em Fichte com a imaginação em Kant. Não adentraremos nessa discussão, mas apenas apontaremos para as relações estabelecidas pelo próprio Torres Filho, em sua referida obra filosófica, entre o esquematismo como meio da Crítica e a imaginação como centro da doutrina-da-ciência (ver: Torres Filho., R. R. O espírito e a letra, cap. 2). E a isso acrescentaremos que, aqui, Fichte não se encontra no nível transcendental originário das exposições da doutrina-da-ciência, mas em um nível derivado em que ao a priori se opõe o a posteriori, nível semelhante àquele da Crítica, pois a questão aqui é como introduzir na vida a ciência (ver: Fichte, J. Ascetik als anhang zur Moral, Werke, XI, p. 122).
12 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, v. III, p.189 (A140/B179).
13 FICHTE, J. Der geschlossene Handelstaat, Werke, III, p. 391.
14 Idem, ibidem.
15 Idem, ibidem.
16 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft, p. 184 (A132/B171).
17 FICHTE, J. Ascetik als Anhang zur Moral, Werke, XI, p. 122-3.
18 Talvez seja possível dizer que a política como ciência fornece uma estratégia para a política e a política como prática, ao procurar aplicar essa estratégia, precisará formular uma tática.
19 KANT, I.Kritik der reinen Vernunft, A134/B173. Não é curioso que o próprio Kant, quando fale da faculdade transcendental de juízo se refira à necessidade de um político de ter o talento do juízo e diga: “Um médico, um juiz ou um estadista (Staatskundiger) podem ter na cabeça excelentes regras patológicas, jurídicas ou políticas, a ponto de cada um poder ser um importante professor nelas, e no entanto, facilmente se equivocar na sua aplicação (Anwendung), ou porque falte a ele o juízo natural (embora entendimento, não), e ele pode compreender o universal in abstracto, mas não pode distinguir se um caso pertence a ele in concreto, ou também porque ele não foi preparado o suficien te para esse juízo com exemplos e ocupações concretas” (Idem, p. 185, A134/ B173).
20 FICHTE, J. Pensamento político de Maquiavel, p. 55 (passagem selecionada do Príncipe ).
21 Idem, p. 46.
22 Idem, p. 47.
23 Idem, p. 51.
24 Idem, p. 53 (passagem selecionada do Príncipe ).
25 Idem, p. 61 (passagem selecionada do Príncipe
26 Fichte escreve: “Assim dizem que o avestruz fecha os olhos ante os caçadores que vêm ao seu encontro, também como se o perigo que não lhe é mais visível simplesmente não existisse mais. Não seria nenhum inimigo do avestruz quem lhe gritasse: – Abre teus olhos, vê, ali vem o caçador, foge para aquele lado para que lhe escapes”. Idem, p. 85.
Referências
FICHTE, J. Pensamento político de Maquiavel. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Hedra, 2010.
_____.Der geschlossene Handelsstaat, Werke, III. Berlin: Walter de Gruyter, 1971.
Ascetik als Anhang zur Moral.In: _____, Werke, vol. XI. Berlin: Walter de Gruyter, 1971.
KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974.
TORRES Filho. O espírito e a letra: crítica da imaginação pura em Fichte.São Paulo: Ática, 1975
Francisco Prata Gaspar – Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
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