Festas e Festividades na História | Em Tempo de Histórias | 2022
Festas juninas | Imagens: Ministério do Turismo/Agência Brasil
As festas e festejos de muitos e diferentes tipos, encontrados em todas as sociedades, são práticas que constituem o cotidiano das pessoas e grupos enquanto linguagem e experiência, como podemos observar em registros histórico desde os períodos mais remotos. Através dessas manifestações, os sujeitos se comunicam e fazem circular suas percepções de mundo, constroem sociabilidades e experimentam sensibilidades. Nesta perspectiva, os estudos de festas e festejos dedicam-se a pensar também o implícito, o simbólico, os elementos que compõem imaginários de quem festeja e representações do que é festejado. Isso perpassa a historicização de quem festeja e de como e onde se festeja. Conforme Maria Clementina Cunha (2001), pensar as festividades não é algo que reduz aos eventos em si, mas das pessoas que festejam. As diferenças e antagonismos se encontram, pensados em termos de classes sociais, etnicidade e/ou relações de gênero. Isso significa que não há suspensão dos conflitos.
Nas palavras de Bakhtin (2013), trata-se da teatralização da vida ao reverso; é o mesmo mundo que se comemora, com a diferença de que isto acontece em modo festivo. Assim, numa mirada bakhtiniana, a festa revela inúmeras formas e manifestações, deixando transparecer os desejos e anseios dos sujeitos, inclusive – e sobretudo – aqueles que não emergem nos dias considerados normais. Assim, reunimos trabalhos que pensam essas comemorações numa concepção de história social da festa, que pode ser considerada um modo de fazer história social, como uma sinédoque da sociedade. Tratase assim, de uma aproximação de lente, para que a festa possa falar não apenas por si mesma, pelos eventos de sua extensão e duração, como também de tudo que recapitula, densifica e expõe, em linguagem que pode ir do lúdico ao fúnebre, do cívico ao revolucionário, do respeitoso ao irreverente, havendo interseções e oscilações entre a predominância de um polo ou outro desses binômios. Em alguns estudos de fôlego, como o de Ladurie (2002), isto resulta muito nítido.
Uma dimensão relevante da festa é o modo como são reorganizados os tempos e os espaços na sua duração, como assinala Baroja (2006). Com efeito, numa ocasião festiva, ocorrem mudanças na ocupação dos espaços físicos por diferentes setores da respectiva sociedade. Em contrapartida, o tempo que uma presença pode perdurar em determinado lugar na vigência da festa pode variar consideravelmente, observando-se mudanças na permanência de indivíduos de diferentes extrações sociais em determinados espaços. Enfim, tempo e lugar podem se reconfigurar significativamente nessas ocasiões, permitindo não somente compreender os mecanismos e logísticas próprias da festa, como da própria normalidade, de que a festa seria um contraponto, ao mesmo tempo que uma complementaridade.
A partir dessa compreensão das festas e festividades na história, os textos que agora apresentamos foram divididos em dois blocos: o primeiro segue a lógica do calendário das festas aí estudadas, iniciando pela Festa de Iemanjá. O 2 de fevereiro saúda a rainha das águas nas tradições religiosas de matriz africana, passando pelo carnaval e seguindo para os festejos juninos. No segundo bloco, estão os textos que discutem as festas de forma mais ampla, sem necessariamente focar em uma festa específica, e sim nos sentidos e apropriações das variadas modalidades festivas, com textos que discutem a produção das narrativas sobre festas e territorialidades das práticas festivas na cidade.
O texto que abre o primeiro bloco é “Festa de Iemanjá em Ilhéus, Bahia: a celebração à Grande Mãe e suas imagens arquetípicas” de Lismar Reis, Valéria Amim e Rui Póvoas. Trata a festa e os elementos que a compõem como um instrumento de comunicação entre o que os autores chamam de mundos visíveis e invisíveis, trabalhando as imagens arquetípicas de Iemanjá nas celebrações dedicadas à divindade na cidade de Ilhéus. O artigo contribui para pensar as celebrações religiosas enquanto festas que professam a fé, mas também comunicam uma forma de estar no mundo e compreendê-lo.
O 2 de fevereiro continua na pauta com o artigo “Iemanjá: a mãe dos filhos de peixe”, de autoria de Wagner Vinhas. É resultado de uma pesquisa, ainda em andamento, sobre as festas públicas destinadas a Iemanjá. O autor constrói tal análise a partir uma perspectiva sócio-histórica da prática festiva realizada no Bairro do Rio Vermelho, notadamente reconhecidos pelas festas ao Orixá das águas do mar. A partir dessa perspectiva, busca compreender os elementos que compõem aquilo que é compreendido como extraordinário, mágico e o sagrado, ao tempo em que pensa a festa enquanto repertório antropológico e histórico.
Passado o 2 de fevereiro, em um contexto brasileiro, o mundo se prepara para o carnaval, uma ocasião em que se promove o diálogo, no âmbito de um calendário judaicocristão, entre a festa da carne e a comemoração do espírito, visto que o carnaval seria a festa de despedida da carne para a iniciar, na quarta-feira de cinzas, a quaresma. O texto “Num abre alas que eu quero passar de ensurdecer: identidade e distinção das elites nos carnavais do Ideal Clube (Manaus, 1906-1920)”, Kivia Mirrana Pereira discute a trama dos bailes carnavalescos em Manaus no início do século XX, em um contexto da Belle Époque, tecendo uma análise das sociabilidades e as representações expressas nas festividades do Ideal Clube.
Findado o bloco com os carnavais e a quaresma, nos estados que compõem a Região Nordeste, os preparativos festivos direcionam a sua atenção para as festas juninas, que comemoram os três santos católicos: Santo Antônio, São João e São Pedro e que também é a festa da colheita. O artigo “Festa, versos e forró: representações do São João de Campina Grande em cordéis”, de Glauber Silva, promove uma reflexão acerca das representações do que se convencionou chamar do “Maior São João do Mundo” nos cordéis, pensado como as narrativas contribuem para a construção das representações sobre o São João de Campina Grande.
Ainda sob a égide dos festejos juninos, a produção “Festas Junina da Travessa X: notas sobre sociabilidades”, de Ana Maria Gillies e Bruno Pereira, fecha o primeiro bloco. Os autores se dedicam a compreender as teias de sociabilidades a partir das festividades juninas na cidade de Orlândia, no Estado de São Paulo. O artigo é construído a partir das memórias das pessoas que residem na cidade e constroem a festa junina, de forma a pensar os seus sentidos.
O segundo bloco que compõe este dossiê se abre com o artigo “Cidade Baixa em festa: análise histórica de um bairro boêmio”, de Joanna Sevaio. A autora traz as manifestações festivas desde as rodas de samba aos carnavais, para compreender as questões urbanas daquilo que se compreende como Cidade Baixa de Porto Alegre, tomando como recorte temporal os anos finais do século XIX e no século XX, com ressonâncias na atualidade. Nesse percurso, traz questões que tocam os aspectos das territorialidades e projetos urbanos a partir de um território ocupado e construído por pessoas negras.
Os usos da festa e suas narrativas correspondem ao viés apresentado no artigo “O tempo da festa e os usos do passado nos santuários aos Protomártires do Brasil (1988- 2017) de Miquéias Bezerra. A produção analisa as narrativas sobre a festa sagrada e profana dedicadas aos Mártires de Cunhaú e Uruaçu, em dois santuários no Rio Grande do Norte. Tem em vista compreender os sentidos, valores e identidades construídas a partir da festa religiosa que é também profana, como uma estratégia de compreender as relações aí experimentadas no local em que acontece a comemoração.
Em uma perspectiva parecida, de pensar narrativas acerca do festejar, o artigo “Pagodeiras desenfreadas”: sambas, lazer e controle social na ‘Paris dos Trópicos’ (1896- 1919)” escrito por Josivaldo Lima Júnior discute os mecanismos de controle social em Manaus, no período da Belle époque. Tal interpretação é construída a partir da análise das narrativas dos jornais sobre os sambas e dos sujeitos que organizam essas rodas e de como esses sujeitos eram representados e quais os sentidos dessas representações para a cidade que era intitulada “a Paris dos Trópicos”.
A analise discursiva sobre festejos é a perspectiva do artigo “Discursos e Conflitos da/na Festa de 16 de julho na cidade de Borba da Mata – MG”, da autoria de Cleyton Costa. O trabalho discute diferentes abordagens sobre a festa, que segundo o autor, é um dos principais eventos da cidade de Borba da Mata. Cleiton da Costa constrói a sua análise a partir da fonte oral, em uma perspectiva da construção das memórias e significados da festa.
O eixo conceitual da memória é aquele que dá a tónica do artigo “Os imigrantes vão à festa: colonização, germanidade e memória”, escrito por Nathan Lermen. O autor discute, a partir de reportagens publicadas nos jornais de Guarapuava, as comemorações de imigrantes suábios-danubianos que chegaram ao Brasil a pós a Segunda Guerra e construíram uma festa para referenciar e fortalecer uma memória germânica da imigração.
Nesse segundo bloco, o forró volta à cena. Desta vez, não para pensar uma prática específica, mas para compreender a historicidade desse movimento. Temos então o artigo “Aspectos históricos das festas e festividades de forro no Brasil” da Ciranilia Silva. O texto reflete sobre as concepções e transformações do forró entre os anos de 1960 e 1980, pensando os seus sujeitos e relações com a indústria musical. Para isso, lança mão da análise dos elementos que caracterizam o forró: dança, ritmos, sua relação com os santos juninos: Santo Antônio, São João e São Pedro e como essa manifestação ganhou espaço em locais fora dos estados que compõem a região denominada Nordeste.
O texto que fecha o segundo bloco – e por conseguinte o dossiê – é uma espécie de volta ao começo. Não se trata bem de uma busca das origens, mas da análise de uma das produções mais antigas sobre festejos no Brasil. Diego Almeida e Karina Melo no texto “Notas musicais e bibliográficas: uma análise indiciária das notas de Ferdinand Denis em Uma Festa Brasileira”. Trata-se de uma obra que descreve a festa ocorrida em 1550 em homenagem a Henrique II e Catarina de Médici. Entretanto, as atenções dos autores estão voltadas para as notas do texto, que segundo o autor, apresentam indícios do que corresponderiam ao início de um projeto de modernidade.
Estamos no ano do bicentenário das guerras pela Independência do Brasil e não podemos perder de vista que as festas também estão presentes nos momentos de conquistas e revelam sujeitos que deles participam. Nessa perspectiva, fechamos o dossiê com o texto de Sérgio Guerra Filho, “Dois de Julho: Festas de Caboclo e Cabocla e a Guerra da Independência na Bahia”. O autor traz as comemorações populares do culto ao Caboclo e a Cabocla em cidades da Bahia como forma de compreender e relacionar aos acontecimentos das lutas pela Independência.
As sociedades festejam, articulam sentidos e representações de si mesmas e pensam as festas a partir de lugares sociais; essas práticas permitem imprimir, disputar e negociar memórias e expectativas. No âmbito dessa lógica, é possível compreender os movimentos da História e os imaginários de sociedade a partir do estudo das festividades. Além disso, as formas de fazer, os usos dos espaços, o jeito de estar no mundo revelam os imaginários que constroem, muitas vezes, projetos de sociedades. Assim, com o conjunto de textos que dão corpo ao dossiê Festas e Festividades, desejamos contribuir para interpretar os mundos a partir das festividades que organizam.
Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rebelais. São Paulo: HUCITEC, 2013.
BAROJA, Julio Caro. El Carnaval. Análisis histórico-cultural. Madrid, Alianza Editorial, 2006.
CUNHA, Maria Clementina. Ecos da Folia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Carnaval de Romans. Da Candelária à Quarta Feira de Cinzas, 1579-1580. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Organizadores
Milton Araújo Moura
Miranice Moreira da Silva
Referências desta apresentação
MOURA, Milton Araújo; SILVA, Miranice Moreira da. Apresentação. Em Tempo de Histórias. Brasília, n. 40, 3-7, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]