Festa, memória e patrimônio | Memória em Rede | 2020

O presente dossiê congregou pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, de Portugal e da Galiza, Espanha, que trabalharam com as relações entre festas, patrimônio, história e memória a partir de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, contribuindo para um número da Revista Memória em Rede que oferece um excelente aporte para os pesquisadores que se dedicam ao estudo desse tema. Antropólogos, geógrafos, historiadores, turismólogos, entre outros profissionais apresentaram trabalhos com estudos de caso que possibilitam pensar a refletir as diferentes dimensões, elementos, atividades e práticas que permeiam e compõem o universo de diferentes festividades (festas religiosas, festas populares, comemorações cívicas).

Os autores também exploraram seus objetos a partir de diferentes olhares, que estão relacionados com suas formações como pesquisadores, o que revela a importância de congregar estudos de diferentes áreas do conhecimento, pois as festas constituem um objeto de estudos interdisciplinar, que podem, e devem, ser pesquisadas levando em consideração esses diferentes olhares. Tanto uma festa religiosa, como uma festa em torno de um prato típico regional, ou mesmo uma festa popular como um carnaval, são objetos de estudo multifacetados, que devem ser entendidos a partir de sua historicidade (de suas transformações ao longo dos anos, da experiência temporal que os sujeitos envolvidos com esse atividade experimentam), de suas práticas e performances, de suas representações, de seus impactos econômicos e tensões políticas e sociais, dos imaginários gerados e da transmissão de saberes entre os participantes.

A imagem da capa do dossiê, de Sofie Layla Thal, revela um aspecto importante das festividades, o antes e o depois, a dimensão liminar (TURNER, 1988) que também deve ser levado em consideração pelos pesquisadores que buscam se dedicar ao seu estudo. Nesse sentido, como Prats (1983) esclarece, o patrimônio é uma invenção e uma construção social, e embora as festas sejam constantes, a patrimonailização pode alterar seus significados para a comunidade, gerando processos turísticos intensos, deslocamentos populacionais, estímulos nas economias e tensões identitárias que refletem as transformações na memória dos sujeitos envolvidos. Transformar uma festa em patrimônio delimita também um “antes” e um “depois” na historicidade dessa prática. Esses, entre outros aspectos, são abordados nos trabalhos que compõem o presente dossiê.

O artigo de Bruna Lacerda Martins Morante, “Do modo de saber-fazer à celebração do Carneiro no Buraco de Campo Mourão – Paraná” parte das seguintes questões: como ocorre o reconhecimento de um “saber-fazer” em um patrimônio imaterial? Como uma comida pode se tornar patrimônio de uma comunidade? Essas perguntas norteiam as reflexões da autora sobre a Festa do Carneiro no Buraco, uma “tradição inventada” (HOBSBAWM; RANGER, 1998) no estado brasileiro Paraná. Todo patrimônio é uma construção, e o registro dessa festividade como patrimônio foi uma construção que envolveram interesses de diferentes grupos sociais relacionados ao modo de fazer o “carneiro no buraco”, um prático típico de uma comunidade paranaense. Como uma construção, a produção desse prato em um ambiente festivo, e posteriormente patrimonializado, passou por um processo de seleção de elementos que materializam uma determinada memória e história da festa e desse alimento.

Frederico Luiz Moreira e Lana Mara de Castro Siman contribuem com o trabalho “Festa, patrimônio vivo: reflexões sobre educação na feitura de tapetes do Corpus Christi”, mantendo o foco no “saber-fazer”, nas formas de produção inseridas em festividades, embora adentrando em uma outra dimensão festiva e abordando o problema dos processos educativos que permeiam a aprendizagem de práticas voltadas para celebrações. O objeto dos autores é a elaboração dos tapetes de serragem do Corpus Christi em Sabará, Minas Gerais, especificamente a aprendizagem da elaboração dos tapetes em relações intergeracionais. Tal como o artigo de Bruna Morante, apresentam diversas fontes, como registros fotográficos dos tapetes e entrevistas com participantes das atividades.

No trabalho “Patrimônio Cultural, Festas e Lutas Políticas em Comunidades Quilombolas de Mato Grosso”, a dimensão política que permeiam as celebrações é percebida pelos autores, Manuela Areias Costa e Luciano Pereira da Silva. Ao trabalhar com a memória e a história oral de remanescentes de comunidades quilombolas, os autores defendem a necessidade de perceber e preservar os relatos dos sujeitos entrevistados como patrimônio brasileiro, pois identificam a falta de esforços e de políticas públicas para essa finalidade. Especificamente, os autores se debruçam sobre as festas nessas comunidades, que cumprem diferentes funções, como o auxílio na coesão social do grupo, trocas de experiências e confraternização entre os sujeitos que participam dessa festividade, mas também constituem momentos em que conflitos geracionais e disputas políticas/sociais afloram.

O artigo de Natália Araújo de Oliveira, “Vamos fazer uma festa também, vamos fazer a festa dos Pioneiros”: memória e identidade celebradas e demarcadas na Festa do Pioneiro da Marcha para o Oeste em Nova Xavantina/MT” também explora disputas políticas em torno da memória no universo das festividades de uma comunidade. A autora pesquisa um grupo chamado “Pioneiro da Marcha para o Oeste”, formado por migrantes que se dirigiram para o município durante o governo de Getúlio Vargas para ocupar territórios considerados vazios. Esse grupo começou a organizar atividades, especificamente a Festa dos Pioneiros em função da chegada de outros grupos algumas décadas mais tarde, como os gaúchos na década de 1970, que fundaram um Centro de Tradições Gaúchas (CTG), reforçando sua presença identitária na cidade. As festas pode ser instrumentos efetivos para reivindicações memoriais, como no caso observado pela autora.

Alessandra Buriol Farinha e Fábio Vergara Cerqueira contribuem para o dossiê com o trabalho “A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes de São José do Norte, Brasil: devoção popular e memória cultural”. Nesse artigo os autores analisam uma festa que ocorre em um município do Rio Grande do Sul, um estado brasileiro, desde 1811, observando aspectos históricos relacionados ao universo festivo, bem como a memória dos participantes. Partindo da observação das festas realizadas entre 2014 e 2017, a devoção a Nossa Senhora dos Navegantes é destacada nas diferentes atividades realizadas, como missas e procissões marítimas e terrestres. Também foram observadas relações familiares entre os sujeitos envolvidos e o todo uma dinâmica social e econômica que a festa mobiliza na comunidade. Portanto, embora o objeto seja uma festa religiosa, e a fé apareça como elemento importante e central, outras dinâmicas são reveladas durante a festividade.

Dulce Simões contribui com o trabalho “Festivais, imaginários e identificações transnacionais”. Nesse artigo, a autora explora os diferentes significados que as festas podem representar para diferentes sociedades, explorando a afetividade, vinculada a herança cultura que liga os sujeitos aos lugares sociais, os imaginários, promoção turística, divertimento, entre outros sentidos que o universo festivo assume. Partindo de Bakhtin (1987), a festa é percebia também como uma espécie de segunda vida da sociedade, que reflete tensões sociais, aspectos que foram explorados por diferentes tendências de estudos que são esclarecidos e indicados no trabalho. Para aprofundar essas reflexões, a autora toma com objeto de seu estudo o Festival Islâmico de Mértola, uma vila raiana localizada ao sul de Portugal e o Festival de Música Tradicional e Celta de Santulhão, uma aldeia na região de Trás-os-Montes, no norte de Portugal.

Comba Campoi García contribui com o artigo “Passem e vejam”; o pavilhão da feira como espaço liminar na Galiza de Franco”. A autora parte do conceito de “liminaridade”, de Turner (1988) para pesquisar atividades de artistas ambulantes em feiras da Galiza, Espanha, na primeira metade do século XX, especificamente o percurso biográfico de uma família de marionetistas ambulantes no pós-guerra na região (1936-1960). A liminaridade constitui uma espécie de ápice das práticas performativas, um estado “[…] entre um antes (de que nos desfazemos, purificando-nos) e um depois, em que nos reagregamos.” (GODINHO, 2014, p.12). Comba apresenta uma reflexão aprofundada desse princípio (envolvendo outros autores) para entender a festa, as feiras sazonais e as práticas oriundas da cultura popular os espetáculos de marionetes apresentados na Barraca da Barriga Verde.

Paula Godinho finaliza os artigos do dossiê com o trabalho “Carnaval no sul da Galiza: uma proposta processual entre o riso e o emblema”. A autora analisa uma festividade de carnaval realizada anualmente em um município da Galiza, Espanha, partindo de observações etnográficas de “ciclo longo” para perceber as transformações sociais que ocorrem na comunidade em questão a partir da festa. Seu trabalho é fruto de constantes revisitações dos carnavais a partir de etnografias produzidas em diferentes tempos e contextos, desde 1980 até o presente. Ao observar também o processo de patrimonialização atual das festividades, a autora percebe uma ruptura entre presente e o passado, uma alteração no regime de historicidade (2013), na experiência temporal dos sujeitos envolvidos com a festa. A autora também aborda elementos como as máscaras e o riso carnavalesco na cultura popular no sul da Galiza, Espanha, bem como os “folións” e as modificações que afetaram esses elementos ao longo das observações realizadas durante os anos de estudo.

Completam ainda o dossiê um ensaio visual, intitulado “Vaqueiros, devoção e memória na Cavalgada dos Festejos de São Bernardo, Maranhão”, dos autores Clodomir Cordeiro de Matos Júnior, João Pedro de Santiago Neto, Janaina Edwiges de Oliveira Pereira e Camila Maria Nobre Andrade; e uma resenha, “Representações das festas juninas no Recife – entre letrados, expressões culturais e a formação da identidade nacional”, do autor Glauber Paiva da Silva, derivada da leitura da obra “Noites Festivas de Junhos: História e Representações do São João no Recife (1910-1970)”, de Mário Ribeiro dos Santos.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: UNB, 1987.

GODINHO, Paula. Agir, actuar, exibir. Antropologia e performance, uma introdução. In: GODINHO, Paula. (Coord.) Antropologia e performance: agir, atuar, exibir. Castro Verde: 100Luz, 2014.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HOBSBAWM, E; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

PRATS, Llorenç. El concepto de patrimonio cultural. In: Politica y Sociedad, v.27, 1983.

TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications, 1988.


Organizadores

Paula Godinho

Eduardo Roberto Jordão Knack


Referências desta apresentação

GODINHO, Paula; KNACK, Eduardo Roberto Jordão. Editorial. Memória em Rede. Pelotas, v.12, n.22, p.1-5, jan./Jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

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