Pienso en dónde guardaré los quioscos,
los faroles, los transeúntes, que se
me entran por las pupilas.
Oliverio Girondo
O livro Fervor das vanguardas: arte e literatura na América Latina (Companhia das Letras, 2013, 312 páginas) explora de maneira interdisciplinar aspectos emblemáticos da produção plástica e literária da América Latina, inseridos no contexto das transformações incitadas pelo modernismo, na primeira metade do século XX.
Com a circunspecção de quem se dedica ao estudo das vanguardas numa trajetória acadêmica longa, Jorge Schwartz – doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1979), docente de literatura hispano-americana na mesma universidade e diretor do Museu Lasar Segall, em São Paulo – pesquisou, nos últimos anos, os diálogos entre os países americanos e os centros internacionais, as contradições e reformulações que incitaram a construção de novos projetos em literatura e artes plásticas no cenário conturbado do modernismo latino-americano.
O livro é composto de 14 ensaios, escritos em diferentes momentos do fluxo intelectual do autor, majoritariamente vinculados ao seu doutoramento, sob a orientação de Antonio Candido, cuja pesquisa foi sistematizada em Vanguarda e cosmopolitismo na década de 20: Oliverio Girondo e Oswald de Andrade, livro publicado pela editora Perspectiva em 1983.
A compilação de textos tem como um de seus méritos o preenchimento da lacuna historiográfica referente às controvérsias e formulações experimentais e vanguardistas realizadas na América Latina, sobretudo, nas décadas de 1920 e 1930.
Horacio Cappola, Oswald de Andrade, Xul Solar, Joaquín Torres García, Lasar Segall e Oliverio Girondo, são alguns dos protagonistas que calcaram o percurso modernista nas análises do autor, construindo, em meio a propósitos estético-filosóficos enunciados e projetos pessoais de expressividade, parte importante do imaginário nacionalista brasileiro, uruguaio e argentino.
É com o ensaio “Tarsila e Oswald na sábia preguiça solar” que o autor inicia a compilação de textos. O casal condensa produções clássicas e norteadoras das vanguardas plásticas e literárias brasileiras, apresentando algumas das problemáticas recorrentes nas pesquisas modernistas, tais como os projetos emancipadores das formas simbólicas, as aproximações e distanciamentos entre o rural e o urbano, as afirmações de nacionalidades variadas e fragmentadas. Na produção de ambos, existe a presença da paubrasilidade e o diálogo da obra poética de Oswald com a plástica de Tarsila.
Schwartz é enfático ao afirmar que a “Antropofagia foi a revolução estético-ideológica mais original das vanguardas latino-americanas daquela época” (p. 33). Decorre daí a justificativa para a introdução dos textos sobre um dos períodos mais experimentais da cultura brasileira, de 1922 a 1929. Seria o movimento, uma forma “indireta de se emancipar da metrópole, a utopia mais original” (p. 33); metafórico a toda experiência construída no esteio do que denomina-se moderno.
As “artes primeiras” como inspiração para elaboração do repertório moderno foram introduzidas desde a conhecida visita de Pablo Picasso e companheiros a exposição de arte africana, no Museu do Homem de Paris, em 1905. De fonte similar abasteceram-se os intelectuais americanos. Entre eles, Vicente do Rego Monteiro, cuja obra é problematizada no segundo ensaio do livro, sobre a perspectiva de seus vínculos com a Antropofagia. Para Schwartz, cabe a ele o mérito de ter sido o “único artista brasileiro capaz de produzir uma linguagem indianista de vanguarda” (p.41), voltada para o grafismo expresso na tradição cerâmica dos nativos da ilha de Marajó.
Rego Monteiro é apresentado entre as letras e as tintas. Não somente como um intérprete da iconografia indígena, ornamental e ritualística, mas como conhecedor de relatos dos europeus que percorreram e/ou representaram o Brasil Colônia – de Montaigne a Theodore de Bry -, amalgamando os conhecimentos teóricos à multiplicidade de linguagens poéticas que desenvolveu, dos poemas e ilustrações ao teatro. Sem deixar de citar, no entanto, a questão da reivindicação histórica de suas colaborações para formulação do “Manifesto Antropófago” e o distanciamento do grupo, apesar de participar – com obras e não pessoalmente – da Semana de 22.
Algumas questões pontuais tecem a função didática do livro. Estão evidentes nas atribuições de incitação à linguagem modernista europeia. Segundo o autor, coube a Monteiro a introdução da abstração geométrica na arte brasileira. O cubismo e o expressionismo chegaram com as obras de Lasar Segall, Anita Malfatti e, sobretudo, de Tarsila do Amaral. Quanto à presença “surrealista” no Brasil, Benjamin Péret foi um influenciador notável, ao visitar e viver no Rio de Janeiro e São Paulo, entre 1929-31. Este poeta, parceiro de André Breton, já possuía quase dez anos de envolvimento com o grupo fundador do surrealismo na França quando chegou as terras tupiniquins e imediatamente se conectou ao projeto antropofágico.
Citando a Ismael Nery, Cícero dias, Vicente do Rego Monteiro, Flávio de Carvalho e Tarsila do Amaral, Schwartz faz a ressalva que nenhum deles foi exclusivamente surrealista; no entanto, produziram obras que podem ser inseridas no movimento. Distante da tendência modernista, Ismael Nery manteve-se afastado das propostas de afirmação nacional. Sua obra esta “impregnada de uma vertente metafísica e visionária” (p. 51) devedora da influência de Marc Chagall, contrastante ao surrealismo lírico de Cícero Dias.
Três ensaios debruçam-se sobre aspectos da biografia e produção artística de Lasar Segall. Com a erudição de quem dirige o museu que abriga as produções do artista desde 2008, Schwartz contextualiza a ambiência literária e plástica de sua obra, argumentando a brasilidade de suas representações, apesar de sua origem lituana. Entre os elos da temática negrista das pinturas de Segall e seus referentes literários, é em Poemas negros (1947), de Jorge Lima, que se enlaçam as letras e os traços. O suporte iconográfico aos poemas foi as ilustrações à nanquim de Segall. No entanto, é ao porto-riquenho Luis Palés Matos que o autor atribui as contribuições mais relevantes da poesia afrodescendente latino-americana.
O mapeamento dos projetos plásticos afro-americanos perpassa a produção de pintores rio-platenses. Nesse diálogo, o escritor de Fervor das vanguardas expande a análise dos movimentos de vanguarda, abrangendo Torres Garcia, Xul Solar e Pedro Figari e suas especificidades de temática negrista.
Não negra, mas crioula é a matriz do último dos – igualmente três – textos dedicados ao fotógrafo argentino Horácio Cappola. Interessará ao leitor brasileiro o “Copolla, entre Bandeira e Aleijadinho”, que versa sobre o olhar do fotógrafo sobre as obras do escultor mineiro. Ainda que o texto de Schwartz trate mais sobre a viagem para Minas Gerais do que sobre a produção fotográfica, incita a investigação pessoal.
Os poemas de Oliverio Girondo são analisados a partir do caráter visual da palavra. Contextualizando a maturidade da obra do artista na interface da estrutura, do sentido e do movimento textual. Constitui um dos pontos nodais do livro a análise de Espantapájaros, livro-experimento de Girondo, com as formas do caligrama e do poema em prosa.
Xul Solar segue a lista dos artistas mais explorados em Fervor das Vanguarda. O ímpeto precursor do pintor argentino é reconhecido por Jorge Schwartz:
Dez anos antes das propostas da Antropofagia de Oswald de Andrade e várias décadas antes do universalismo construtivo de Torres Garcia, Xul rejeita o ‘europeu civilizado’ e imagina uma solução local ou, mais do que isso, mental (p. 152).
O universo, “como série permutável de signos” é a síntese atribuída às compilações plásticas e linguísticas de Xul Solar, carregada da complexidade e dos paradoxos presentes nas formulações do neocriollo, oscilantes entre o “referencial do ‘além’ e o poético do ‘aquém’.” (p. 176).
Foi com fervor que as vanguardas plásticas e literárias calcaram seu movimento na América Latina. A seleção de textos de Schwartz torna visíveis as ligações e diferenças entre os movimentos artísticos no conturbado contexto de representação das identidades nacionais e exploração de linguagens alternativas ao ranço academicista vigente desde o início do século XIX.
Apesar de constituir uma seleção de textos – alguns escritos para catálogos de exposições e apresentações de livros -, o conjunto não caracteriza uma obra somente informativa. Argumentos de caráter analítico são alternados com informações pontuais, com o uso de metáforas, comparações e sinestesias, sem o rigor das pesquisas direcionadas ao público acadêmico especializado.
O leitor poderá observar algumas notas consonantes entre as inquietações intelectuais latino-americanas, cujas reflexões encontram ecos no imaginário contemporâneo.
Resenhista
Jacqueline Ahlert – Doutora em História (PUCRS) e Professora da UPF.
Referências desta Resenha
SCHWARTZ, Jorge. Fervor das vanguardas: arte e literatura na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Resenha de: AHLERT, Jacqueline. Diálogos entre a palavra e a imagem. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.2, n.9, p. 269-272, 2013. Acessar publicação original [DR]
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