Feminismos: Teorias e perspectivas / Textos de História / 2000 

Apresentação

O feminismo acabou? Importantes igualdades já não foram obtidas? Porque insistir neste termo, cujas conotações pejorativas dele afastam mulheres que se definem como “femininas”? Justamente porque denegrir o feminismo é negar a atuação das i r . ii i I mulheres que, ao risco de suas próprias vidas, de sua integridade física e moral, ousaram afirmar sua existência enquanto seres humanos, ousaram questionar e desmantelar todo um edifício teórico-filosófico patriarcal, um estado social considerado natural, cujas bases hierárquicas e assimétricas, desenhando relações de sexo, fundavam-se nas “leis da natureza”.

Falamos aqui de feminismo na recusa ao pejorativo do termo, que não passa de assujeitamento a um discurso social, negando à mulher um lugar de fala, rejeitando suas reivindicações ao domínio de histeria ou do antagonismo simplório ao masculino.

Mostrando que os papéis sociais são construídos, que o próprio discurso da “natureza” dos sexos é um artifício do poder marcado de historicidade, o feminismo vem mudando aos poucos a face do mundo.

Ilumina-se assim a ação e a presença da metade da humanidade na história, escamoteada, obscurecida e inferiorizada pelas representações definidoras do feminino, pela divisão do mundo em público e privado, pela importância dada a um detalhe biológico como definição do ser e de sua essência.

Hoje não é mais necessário apontar os discursos religiosos, filosóficos e políticos que construíram as mulheres, dotadando-as de uma essência única, fazendo delas A mulher, o Outro absoluto, oposto e negativo em relação ao masculino, criado à “imagem e semelhança”. A reflexão e análise feministas aí estão, tirando a máscara do poder que se esconde sob o discurso do “natural”, desmistificando as imagens, desfazendo as representações reivindicadoras de universalidade.

Fragilidade, irresponsabilidade, irracionalidade, passividade, incapacidade física, desregramento moral, superficialidade, estas, entre tantas outras, as características atribuídas ao feminino, ancoradas no sexo biológico, desdobrando- se em sedução, artimanhas, armadilhas para os incautos. Estas são as representações que o feminismo rejeita. Nas práticas sociais, a violência, o abuso sexual, a prostituição, reduzindo o feminino a um corpo sobre o qual não tem ingerência: esta é uma realidade que o feminismo vem tentando transformar.

Escrito na carne e traduzido em prosa e verso, o destino manisfesto, a função maior: a maternidade. No casamento e na heterossexualidade o caminho, a ordem. Contra o discurso do unívoco, o feminismo aponta para relações plurais, para corpos que, ao contrário da cristalização identitária, percorrem uma cartografia nômade do ser. Pensando o mundo, agindo contra o peso da norma, contra a violência das essências e contra as práticas de poder, os movimentos e as teorias feministas abrem passagem no traçado de um novo perfil do humano.

Mas pode-se falar de UM feminismo? Quem tem alguma familiaridade com a extensa produção teórica feminista sabe que, entre suas características, encontram-se a diversidade e o desejo de transformação. De fato, correntes e estratégias entrecruzam-se, opõem-se, negam-se ou reafirmam-se; os paradoxos e contradições muitas vezes encontrados tem servido como estímulo ao aprofundamento da reflexão e à afirmação da multiplicidade. Desvendando os mecanismos de produção e representação do mundo, os feminismos insistem que as relações e representações sociais/sexuais pedem para ser desconstruídas.

De um lugar de fala preciso, de uma subjetividade enfim encontrada, as críticas feministas do social se debruçam sobre seus próprios instrumentos de reflexão e fazem do dinamismo sua característica principal. O ec-centric subject é aquela que, inserida em um regime de circulação de verdades e evidências, atua para modificá-lo; designada enquanto “mulher”, em um sistema político de hierarquias sociais, age na direção de uma desintegração dos sentidos galvanizados em torno do binarismo sexual. Conscientes de sua incontornável experiência de ser sexuado no social, as teóricas e os movimentos feministas não cessam de aprofundar a crítica aos paradigmas, valores e normas, que fazem da sexualidade e do sexo o parâmetro maior de definição dos seres, quebrando assim, aos poucos, a iteração que faz do contingente, a essência do humano.

Feminismos: teorias e perspectivas. Este número temático em uma revista de História vem abrir aos feminismos, enquanto movimentos sociais de primeira grandeza no século XX e como crítica epistemológica aos sistemas de produção do conhecimento e do real, um espaço de visibilidade e talvez, de interlocução acadêmica. Com a participação de autoras feministas do Canadá francês (Quebec) e do Brasil, este número registra uma colaboração internacional e interdisciplinar, situando nesta História presente, análises que não fazem senão sublinhar a incontornável historicidade das relações humanas.

Na parte consagrada à teoria, Francine Descarnes (Sociologia, UQAM) faz um apanhado das diversas tendências e objetivos das correntes feministas contemporâneas; Angela Arruda (Psicologia, UFRJ) reflete sobre o encontro profícuo entre as teorias feministas e a teoria das representações sociais; Anick Druelle, por sua vez (Sociologia, UQAM) observa os movimentos sociais das mulheres como táticas de transformação identitária e reformulação do social; Marie-France Dépêche (Línguas Estrangeiras e Tradução.UnB) analisa a tradução como uma estratégia de intervenção feminista; Denyse Baillargeon (História, UdM) transita pelos estudos feministas relativos â maternidade, em suas diferentes abordagens; Tânia Navarro Swain (História, UnB) interroga os mecanismos de construção generizada em torno do sexo e da sexualidade; Colette Saint-Hilaire (Sociologia, UQAM) trabalha a questão das identidades sexuais à luz de novas visibilidades.

Perspectivas, os lugares de fala são demarcados: mulheres que fazem a história, tenham elas um nome ou surjam apenas na densidade ativa de um grupo. Margareth Rago (História, Unicamp) nos fascina com Luce Fabbri, reinventando o mundo no anarquismo; Diva do Couto Gontijo Muniz (História, UnB) aponta para a construção do binarismo sexuado nos processos de socialização escolar; Maria Izilda Matos (História, PUC/SP) fala-nos de movimentos de mulheres, de resistência e luta, que, obscurecidos pela história, desaparecem dos registros da memória.

Este número é de fato uma homenagem às feministas que mudam a história e não transigem face às “evidências” do natural, não se acovardam face ao preconceito e à surda oposição à fala das mulheres, face às tentativas de silenciamento, pela ironia, que escondem o medo da transformação. Homenagem ainda àquelas que não receiam se dizer feministas hoje, pois diante da violência material e simbólica exercida sobre as mulheres, persistem em fraturar a ordem do discurso.

Tânia Navarro Swain Brasília, 2001.

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