Nosso feminismo é vivencial.
A cada onze minutos uma mulher é estuprada no Brasil (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2016). Muitas sofrem “estupro corretivo” por sentirem desejo sexual por outras mulheres. A cada dia, acontecem sete feminicídios (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2015). Dois terços deles tiram a vida de mulheres negras. O número de homicídios de mulheres brancas diminuiu quase 10% entre 2003 e 2013 (idem).
Valdecir Nascimento. Sônia Guajajara. Nilce de Souza Magalhães. Carolina Maria de Jesus. Clarice Lispector. Ochy Curiel. Angela Davis. Sampat Pal Devi. Amelia Mary Earhart. Shahla Sherkat. Simone de Beauvoir. Maria Galindo. Betty Davis. Chimamanda Ngozi Adichie. Virginia Wolf. Leila Khaled. Dandara dos Santos1. O feminismo é nossa resposta aos constantes massacres, abusos e distorções que acometem nossas sociedades. Mas, o que posso eu2 – mulher branca, trabalhadora, acadêmica, de classe média, bissexual, com filhx, falante da língua do colonizador – escrever sobre uma realidade de opressões da qual percebo apenas os fragmentos?
Para harmonizar-me com a inspiração, afinal, é uma grande responsabilidade redigir as primeiras palavras de um documento que reúne as vozes dissonantes das Relações Internacionais (RI) – uma área tão jovem, mas tão conservadora –, acesso uma agenda não convencional. Nela não estão inscritos os temas “quentes”, mas a ação coletiva de mulheres índias, putas e lésbicas no ano de 2014: uma agenda feminista, não apenas um conjunto de pautas, mas uma agenda impressa e ilustrada (a começar por um calendário menstrual), distribuída como meio de arrecadar fundos para o movimento Mujeres Creando. Um instrumento de luta, para nos lembrar que não estamos sozinhas, “que somos muitas as loucas que juntas queremos reinventar o mundo…”.
Em uma página de setembro – data que esperamos ansiosamente em mais de um ano de preparação até concluir e divulgar o Dossiê “Feminismos, Gênero e Relações Internacionais” –, Karina Aranda escreve: “Nosso feminismo é vivencial”. Isso acende uma fagulha…. Leio uma, duas, três, dez vezes: Nosso feminismo é vivencial. Nosso feminismo é vivencial. Nosso feminismo é vivencial! Vi…ven…ci…al… Continua: “o construímos dia-a-dia mulheres rebeldes e heterogêneas que criamos e recuperamos nossos conhecimentos; que revalorizamos a natureza e a defendemos; que buscamos a transformação da sociedade a partir de uma perspectiva holística, profunda e libertadora”.
Intensas palavras de uma mulher que provavelmente pouco ou nenhum significado teria entre aqueles que se distinguem como teóricos, muito menos entre os pertencentes ao seleto grupo das RI – a ciência dos civilizados ou, melhor, que estuda os povos suficientemente civilizados para se constituírem na forma de estados, na compreensão de Beier (2005) e Urt (2016). A frase me toma, fica vagando pela minha mente… o feminismo… é… vivencial. Logo, imagino que ele se alimenta das nossas experiências e da nossa relação com a vida, com as pessoas que vieram antes e virão depois de nós: ocupando as ruas, resistindo no cotidiano, insistindo nos seus desejos ou escrevendo livros. Olho os rostos das mulheres na capa do Dossiê: tanta luta… e recordo de tantas outras… fico imaginando o que viveram…
Até que me olho de dentro e relembro o conjunto de opressões que se amontoam sobre esse corpo que se convencionou chamar de mulher: as muitas vezes em que fui silenciada – cortada, mesmo – por falas de homens em reuniões e nas mais diferentes atividades acadêmicas; as milhares de outras situações em que sugeriram que eu cuidasse da secretaria, fazendo atas, relatórios técnicos e outras ações que exigem organização, empenho e pouco pensamento; a exigência velada de perfeição em todas as esferas da vida; a desconfiança permanente e ilimitada de minha incapacidade física e intelectual; as piadas machistas, heteronormativas e a difamação sobre o meu comportamento, as minhas roupas, a minha sexualidade e tantas outras performances que dizem respeito ao meu direito de decidir sobre o corpo que habito; os anos a fio que carrego como bulímica; os jantares de trabalho, que terminam em “dorme comigo?”; a carreira atrapalhada pela imposição de um “companheiro”; a necessidade de incorporar muitas das características atribuídas ao masculino a fim de transitar no espaço universitário; o sorriso amarelo que disfarçou as cantadas de corredor e a raiva abafada; o desprestígio por pesquisar um “tema de mulheres”; as jornadas triplas e em mais de um trabalho para pagar as contas, somadas ao desafio de ser uma educadora em um país periférico; o burocratismo que legitimou a permanência de uma bibliografia masculina e masculinizante em cursos de graduação; a crueza com ares de gentileza que abafou meu desejo de mudança em infinitos momentos; o programa de pós-graduação que acredita ser privilégio o direito à licença-maternidade; os quilos de remédios entorpecentes que tive que tomar para abafar a cólica em um dia de aula ou apresentação de trabalho em eventos; as exigências por seguir um padrão de produtividade criado à imagem e semelhança do homem, independentemente do meu estado, da minha estafa ou puerpério; a maneira dissimulada em que os colegas me deram os pêsames quando decidi adiar a pós-graduação por motivos pessoais, como uma gestação; os baixos salários “de mulher” que, afinal, “não precisa sustentar uma casa”, mesmo que dependa apenas de mim a sua manutenção…
…e, entre as muitas outras vivências que me relembram sobre o quanto o feminismo é importante, a mais recente é também a mais incômoda e urgente: a maternidade. Sinto como se as mães fossem invisibilizadas na universidade. Lembro da ideia sobre como as RI silenciam as temáticas de gênero, como se elas não existissem… Algo parecido se passa com a relação entre maternidade e academia. São muitos os não-ditos e as opressões persistem: meu peito, por exemplo, virou piada – o fato de amamentar em público diante de colegas e estudantes, ou o vazamento do leite que deixa marquinhas na blusa, fez de mim “a mulher dos seios públicos”. Apesar de todos enxergarem muito bem meus peitos, ninguém viu minhas olheiras pelos mais de 365 dias dormindo duas, três horas contínuas por noite. As agências de fomento também não quiseram apostar em meus projetos de pesquisa. Assim, a escolha de ser mãe é tida como um atraso na academia e na vida. Orientadorxs esperam a mesma velocidade e profundidade teórica de antes. “Se vire com sua escolha”, ouço nas entrelinhas. A despeito de todas as mudanças físicas, emocionais, hormonais e espirituais que a presença de umx filhx encerra, continuamos a ser convidadas a cumprir prazos, produzir mais e “não deixar a nota do programa cair”. Pouco importa se, para responder a tais expectativas, você terá que submeter um bebê ou uma criança a um regime fascista que afasta mães e filhxs, inibe a lactação, estimula o consumo e deteriora qualquer possibilidade de criação saudável e prazerosa dos novos seres sociais – que paradoxalmente espera-se que sejam mais libertários, sustentáveis e inteligentes que nós! Ah sim, haverá a crueza do acusamento de mãe ruim por ser feminista e muitas são as outras vozes que julgam, reverberando modelos de maternidade impostos e cobrados, os quais não estou disposta a seguir. Mães invisíveis, filhxs que choram… eis aí mais uma situação em que o feminismo é necessário.
Que feminismo? Aquele que nasce das “mulheres pensando e sentindo a nós mesmas e pensando e sentindo os outros e as outras, e também a natureza”, diria Julieta Paredes (2006, p.65). Quais mulheres? Meus peitos seriam mais feministas que os de uma mulher trans? Não! Esperamos que “nunca mais as tetas de uma bio-mulher sejam mais feministas que as tetas siliconadas das trans!” (CUCHA O’LAUCHA apud BARRIENTOS, 2011, p.37). Se adoto o gênero como uma construção social de controle que atravessa os corpos, não posso naturalizar a mulher: é preciso pensar a partir de um feminismo proposto não apenas por (bio)mulheres, mas por todas as que se identificam como tal e talvez muito em breve não o façam mais.
Cada uma dessas vivências – tão particulares e situadas, mas também reconhecidas por tantas outras mulheres3 – é marcada por uma estrutura de dominação e exploração que insiste em subalternizar a força, o poder e a experiência de uma parcela significativa da sociedade que foge à norma e é tida como Outra. Essa estrutura de opressões é vulgarmente qualificada como machista e patriarcal. Essas acepções – machismo e patriarcalismo, exatamente por sua amplitude – podem ser de difícil mensuração na literatura científica, mas estão presentes no cotidiano, possuem materialidade, deixam marcas no corpo que se convencionou chamar de mulher. Diante de tantas lembranças e inquietações, sou tomada por mais uma frase de Julieta Paredes4, que tanto inspirou e contribuiu com o movimento Mujeres Creando: O feminismo nasce da rebelião das mulheres contra o patriarcalismo! (2006, p.62).
Começo a sentir que tenho algo a dizer… Ainda que minhas palavras sejam limitadas e circunscritas, incapazes de representar as experiências da maioria das pessoas que constituem a humanidade – afinal, os feminismos são tão numerosos quanto as formas existentes de construção política das mulheres (CELENTANI, 2014) –, também sinto a necessidade de me rebelar contra as grades que me oprimem. Espero fazer isso a partir do feminismo, aquele que, nos dizeres do movimento Mujeres Creando, “é uma luta, uma forma de vida, uma decisão que nos une e nos converte em cúmplices, para enfrentar todos os dias o machismo que quer nos calar e nos submeter”. Por ora, a tarefa que assumi – pequena diante da vida das mulheres e seus fazeres políticos – é apresentar o Dossiê “Feminismos, Gênero e Relações Internacionais”.
Primeiramente, é preciso dizer que esse Dossiê representa o espírito do tempo. Há alguns anos sabia da possibilidade de organizar um número especial da revista Monções. Mas o lançamento da chamada para publicações aconteceu no fim de 2016, exatamente no mesmo ano que um grupo de mulheres começou a se organizar na academia brasileira de Relações Internacionais: as MulheRIs. Esse grupo ganhou força e canalizou as vozes de muitas acadêmicas incomodadas com o malestream5. Entre as muitas iniciativas do grupo, do qual honrosamente me sinto parte, estão a realização da mesa “Feminismos e Mulheres nas Relações Internacionais”, durante o 6º Encontro Nacional da ABRI, a elaboração de um questionário para mapear a situação das mulheres na área de RI no Brasil e a organização de livros e revistas sobre gênero e feminismo nas RI, como a chamada da revista Cadernos de RI “Gênero e Sexualidade nas Relações Internacionais”, voltada para a publicação de graduandxs. Parece, portanto, que não há nenhum ineditismo na publicação deste Dossiê – ainda que eu
não tenha encontrado na academia brasileira nenhum esforço semelhante no passado –, mas apenas mais uma manifestação de um momento muito particular de profusão: a virada feminista das Relações Internacionais no Brasil. Trata-se da organização das mulheres nesse campo com o objetivo de disseminar a centralidade do gênero nos estudos das relações sociais e humanas, abordar as opressões sofridas diariamente no âmbito do trabalho e propor formas de convivência que respeitem as múltiplas performatividades sexuais e de gênero. Espero que lance muitas sementes.
Ao propor a denominação virada feminista, dois esclarecimentos são necessários: o primeiro refere-se ao feminismo que queremos e o segundo ao que entendemos por gênero. Sugerimos que o feminismo diz respeito à “busca concreta das mulheres por bem-estar, que por meio do diálogo entre si buscam meios de desestabilizar os símbolos e as práticas sociais que as colocam em posição secundária, com menos direitos e valor que os homens” (CELENTANI, 2014, p.11) – cabendo, neste espaço, a luta das mulheres nas RI e também fora dela, no espaço da vida. Pois, partindo da premissa de que nosso feminismo é vivencial, parece coerente buscar uma definição de feminismo que supere a noção meramente teórica e liberal que afirma que o feminismo busca a igualdade entre homens e mulheres, dando ênfase à inserção delas na economia de mercado. É preciso acessar a diversidade das mulheres e de suas lutas (idem).
No que se refere ao gênero, parece óbvio pensá-lo como uma construção social – como, em alguma medida, declara Ann Tickner na entrevista concedida para esse número. No entanto, se amontoam pesquisas e publicações que restringem a categoria a mulheres, como se políticas de gênero fossem políticas para mulheres – o que demonstra que o determinismo biológico de fundo binário ainda não foi superado. É preciso, então, reforçar que o gênero é uma construção social que disciplina, naturaliza e normatiza corpos, comportamentos, subjetividades e padrões de conduta. Assim como a mulher, o homem também é uma invenção social que se materializa e ganha vida própria. Há entre esses binários hierarquicamente criados uma infinidade de seres que não cabem na norma e não querem ser enquadrados como isso ou aquilo, o que nos leva a refletir que ambas as construções precisam ser superadas em prol da despatriarcalização da vida. É preciso, nas palavras de Francisca Barrientos A., hackear o gênero e subverter a ordem (2011, p.34). No entanto, pelo significado social que possuem e as consequências de carne e osso que assumem, as denominações homem e mulher ainda não podem ser abandonadas. Elas precisam ser adotadas de forma crítica, assumindo sua precariedade e vislumbrando um mundo no qual cada pessoa “possa fazer uso do lugar onde a situem suas próprias necessidades e interesses políticos” (BARRIENTOS, 2011, p.34).
São muitas as jovens pesquisadoras que criam e recriam seus conhecimentos, que constroem um ambiente de trabalho mais igualitário e respeitoso e uma produção acadêmica centrada nas análises de gênero. A quantidade de artigos recebidos para essa publicação, a maioria dos quais escrito em co-autoria, é um exemplo disso: foram mais de 40 manuscritos recebidos, avaliados por pareceristas de todas as partes do Brasil e também por pesquisadoras brasileiras fora do país. Vale destacar que por volta de 90% das pareceristas foram mulheres. Houve uma preocupação deliberada para que todas as regiões brasileiras tivessem representantes e que uma variedade significativa de temas fossem contemplados. Nenhum dos artigos é assinado unicamente por alguém auto-identificado por homem cisgênero. Esse conjunto de características do dossiê dá uma noção de que sim, existem mulheres estudando e pesquisando sobre gênero e feminismo nas RI do Brasil, ainda que as tiragens de livros e revistas especializadas não representem essa diversidade.
Há trinta anos esse movimento deu seus primeiros passos. Entre as acadêmicas do Norte global, Tickner se perguntava onde estavam as mulheres e Enloe procurava por essas vozes. Com o intuito de valorizar as mulheres que chegaram antes de nós e muito fizeram para transformar o estudo do internacional é que entrevistamos a pesquisadora Ann Tickner. Considerada uma das pioneiras nos estudos feministas nas RI, a autora descreve sua trajetória, faz um balanço sobre a produção feminista nas RI, fala dos retrocessos para a vida das mulheres com a presidência de Trump, ressalta a importância dos feminismos do Sul Global e finaliza: “Há muito a se celebrar com relação aos progressos que os movimentos de mulheres fizeram, mas ainda há muito a ser feito. (…) Tornar o mundo seguro para as mulheres faria o mundo mais seguro para todas as pessoas.”
À luz de um debate feminista crescente nas RI, a primeira seção de artigos começa com Raissa Wihby Ventura e Raquel Kritsch: Relações Internacionais, teorias feministas e produção de conhecimento: um balanço das contribuições recentes, demonstrando como perspectivas epistemológicas do fim do século XX foram inseridas nos debates em RI. Na sequência, são delineadas as perspectivas de feministas islâmicas a respeito dos estudos feministas tradicionais no manuscrito. Por uma virada pós-secular: o feminismo islâmico e os desafios aos feminismos (seculares) em Relações Internacionais, de Ana Paula Maielo Silva, Monique de Medeiros Linhares e Rachel Emanuelle Lima Farias de Melo. Em seguida, Elena de Oliveira Schuck questiona as redes tradicionalmente estabelecidas de saber, ao demonstrar fluxos não unilaterais de circulação do conhecimento feminista no artigo Feminismos em trânsito internacional: a circulação do conhecimento entre Brasil e França. Por fim, com o ensejo de questionar as RI e propor outras concepções feministas, Júlia Machado Dias e Élton Mello Arcângelo apresentam o texto Feminismo decolonial e teoria queer: limites e possibilidades de diálogo nas Relações Internacionais.
Direitos Humanos das Mulheres: uma análise sobre as recomendações do comitê CEDAW/ONU ao Estado Brasileiro, de Claudia Santos e Alexsandro Eugenio Pereira, sinaliza os desafios brasileiros para a efetivação de compromissos internacionais ligados a esses direitos. Uma visão intraorganizacional é oferecida por Manuella Riane Azevedo Donato, em Mensurando Empoderamento: uma análise dos índices de desigualdade de gênero propostos pelo programa das Nações Unidas para o desenvolvimento. A autora busca desvendar como a concepção de empoderamento é entendida e mensurada pela organização intergovernamental. Outra perspectiva intraorganizacional é oferecida por Patrícia Nabuco Martuscelli e Augusto Leal Rinaldo, agora sobre abusos de exploração sexual e formas institucionais de lidar com o problema em Evitando que “protetores se tornem predadores”: a ONU pode impedir a prática de abuso e exploração sexual por membros de missões de paz das Nações Unidas?
As experiências e desafios de gênero na diplomacia do Brasil são abordadas no artigo As mulheres na carreira diplomática brasileira: considerações sobre admissão, hierarquia e ascensão profissional por Mariana Cockles e Andrea Quirino Steiner. Ainda sobre esse tema, demarcando como o Itamaraty tornou-se um espaço de poder masculinizado, apresenta-se As mulheres no Itamaraty: as reformas do Ministério das Relações Exteriores à luz da teoria feminista, pelxs autorxs Luciana Brandão, Ticiana Amaral, Douglas Fabian Euzebio e Airton Gregório.
Rompendo com os estudos tradicionais de segurança, o artigo Mulheres guerreiras: questões de gênero e participação feminina nas FARC e sua influência nas negociações de paz na Colômbia, de Xaman Minillo, Bianca Mendes, Luiza Bandeira e Rebeca Lages, aborda as ambivalências do ponto de vista do gênero em relação às mulheres que participam das FARC, sinalizando também as possibilidades de construção de uma paz positiva.
Como última peça do Dossiê, apresenta-se o texto traduzido de Manuela Lavinas Picq, Visões indígenas desafiando o global: mulheres kichwa pluralizando a soberania. Originalmente trata-se de um capítulo do livro organizado por Arlene B. Tickner e David L. Blaney, Claiming the International, de 2013, que destaca outras formas de conceber o internacional, com vistas a superar a hegemonia explicativa do Ocidente. Picq apresenta, de forma original e instigante, como as formas tradicionais de estado e sua vertente ocular, a soberania, são questionados por mulheres indígenas. Os mecanismos democráticos e reivindicatórios por elas construídos são concebidos como formas alternativas de construção das relações internacionais. Esse texto, é, portanto, um convite para ampliarmos nossos olhares e acessarmos outras formas de enunciação feminista, no caso, desde as mulheres indígenas do Sul Global. É também um horizonte de possibilidades que nos inspira a aproximar o saber acadêmico da vivência das mulheres, a partir de uma globalização “desde baixo”.
Parece um avanço a coleção destes dez artigos sobre gênero e feminismos nas RI. Saudamos xs autorxs e suas publicações. No entanto, o objetivo inicial de receber reflexões acadêmicas e também ativistas, de modo a promover a interação entre o mundo da vida, as múltiplas formas de saber e as distintas áreas do conhecimento científico foi atingido apenas em parte. A capa do Dossiê ilustra essa percepção: são muitas as vozes das mulheres pelo mundo, mas em nosso campo do conhecimento, as RI, ainda não viramos o mapa de ponta cabeça. Seguimos surdxs diante da vida ao redor: acessando um saber eurocentrado e definindo temas de estudo com base em modismos acadêmicos. Contar uma outra estória,
Implica partir do reconhecimento que o movimento feminista hegemônico contribuiu e contribui com a colonialidade de gênero, ignorando o racismo, a pobreza, a destituição, a desumanização das mulheres indígenas, afro e não brancas em geral. Assim, devemos criticar suas apostas políticas, suas agendas, com o fim de produzir nossa leitura, que surja de nossas experiências e nossas interpretações como mulheres não brancas de Abya Yala, pertencentes a determinadas comunidades submetidas a processos de racialização e empobrecimento. Devemos submeter a luta contra a opressão de gênero ao mesmo processo de desmistificação das verdades produzidas e assumidas que se faz em nível geral. Se trata de produzir, com diálogo e com revisão crítica dos consensos sobre o dimorfismo sexual e os arranjos hierárquicos de gênero, novas formas de interpretação, de resistência e de transformação que surjam desde as/os/xs debaixo (ESPINOSA; LUGONES; GÓMEZ; OCHOA, 2013, p.413).
No decorrer da organização do Dossiê, observou-se que muitos dos artigos recebidos tratavam do “estado da arte”, da caracterização dos feminismos nas RI; pouquíssimos tinham por objetivo o estudo de temas circunscritos à nossa realidade e/ou a partir de uma bibliografia que vai além das produções estadunidenses e europeias. Além disso, parece que a utilização do gênero como categoria analítica concentra-se em áreas mais tradicionais do campo, como estudos de segurança, diplomacia e organizações internacionais e, por vezes, é reducionista, silenciando a construção social do gênero e a interseccionalidade das opressões. Vale destacar a atuação de jovens pesquisadorxs: embora, muitxs não tenham tido seus artigos aprovados, é notável como estimularam o corpo editorial e pareceristas, dada uma maior ênfase e preocupação por descentralizar e desestabilizar os estudos de RI.
Como afirma Mohanty (2008), são duas as tarefas das feministas do Sul Global6: a primeira envolve a leitura crítica dos textos ocidentais e a segunda a construção de um pensamento próprio, a partir da nossa realidade. Apesar de seguirem incompletas, parece urgente declarar que essa última tarefa segue inacabada. É preciso acessar a radicalidade do feminismo como luta social, estreitar laços com as subjetividades coletivas e fazer do saber teórico uma ferramenta para contribuir com a vida das mulheres. Só assim caminharemos rumo à descentralização, à desorientação e à indisciplina, em um constante esforço de autocrítica e superação das amarras coloniais que nos impedem de olhar e interpretar a nossa realidade… Afinal, nosso Feminismo é vivencial!
Em nossa experiência como organizadoras do Dossiê “Feminismos, Gênero e Relações Internacionais”, reconhecemos que nosso trabalho representa um mosaico composto por muitas pessoas maravilhosas, sem as quais não teríamos condições de publicar esse documento. Dedicamos um espaço destacado da nossa gratidão para a Sarah Reis, pelo apoio na concepção desse Dossiê. Também agradecemos todxs xs pareceristas, pelo esforço de altíssima qualidade na avaliação dos artigos. Reforçamos, através do contato direto com o trabalho das pareceristas, nossa admiração às mulheres e ao seu minucioso e dedicado trabalho. Contamos com acadêmicas que fizeram dos pareceres verdadeiros projetos feministas e todas tiveram paciência para trabalhar sobre o mesmo manuscrito mais de uma vez. Tivemos a honra de contar com o trabalho de duas brilhantes tradutoras: Xaman Minillo Korai e Renata Preturlan, que pronta e pontualmente responderam ao nosso chamado. Muito obrigada! Agradecemos também a gentileza e a presteza com que as professoras Ann Tickner e Manuela Levinas Picq nos responderam e nos encorajaram a publicar suas contribuições. Agradecemos também a artista sul-matogrossense Maíra Espíndola, que elaborou a capa do Dossiê, e à Gracia Lee, pela revisão final da arte. Nosso salve às mulheres do Projeto Ação Contra o Tráfico de Mulheres, vinculado à UFGD, em especial à Maryel Pedreira, que nos ofertaram braços e corações para custear os gastos desse número. Também saudamos nossa companheira de Faculdade, professora Simone Becker, por todo o aprendizado compartilhado. Agradecemos a amizade e a animação com que as MulheRIs receberam essa proposta, e nos ajudaram a seguir em frente, entre elas Ana Mauad, Lara Sélis, Luiza Mateo e Natália Félix. Existem também alguns homens que se esforçam para reconhecer seus privilégios e merecem nossa gratidão: João Urt, pela colaboração em muitos âmbitos da vida, os editores Bruno Bernardi e Matheus Hernandez, e Paulo Martins, pela edição final. Por último, mas não menos importante, agradecemos às mulheres das margens: negras, trabalhadoras (do sexo ou de qualquer outra profissão), quilombolas, índias, transexuais, bissexuais, lésbicas, queer, latinas, africanas, asiáticas, gordas, com deficiência… Agradecemos a todas essas mulheres – que vieram antes de nós, que (r)existem e que são o devir de nossas gerações – por oferecerem-nos a receita da revolta.
Boa leitura!
Notas
¹ Dandara dos Santos é o nome do coletivo de gênero da Faculdade de Direito e Relações Internacionais, ligado à Universidade Federal da Grande Dourados (FADIR-UFGD). O nome uma homenagem e chamado à justiça pela pessoa violentamente morta por crime de transfobia e faz alusão à quilombola de Palmares.
2 A escolha pelo uso da primeira pessoa do singular representa um desejo de transgredir a impessoalidade dos escritos científicos, bem como a divisão moderna e colonial entre razão e emoção.
3 O uso da palavra mulher nesse texto refere-se ao conjunto de pessoas que se identificam ou são identificadas como mulheres, incluídas, portanto, as mulheres transexuais.
4 Membra do movimento Mujeres Creando Comunidad.
5 Malestream é um termo inglês que, conforme meu entendimento, pressupõe que, a exemplo de outras áreas de saber-poder, os espaços acadêmicos e educacionais também são refletidos à imagem e semelhança de homens e, por esse motivo, tornam-se igualmente espaços hegemônicos de paradigmas, visões de mundo, constructos ideológicos, epistemológicos, ontológicos e hermenêuticos ligados ao gênero masculino. Como todo espaço de saber-poder, refletem-se em outros espaços de disciplina dos corpos: o saber acadêmicos em muito informa decisões judiciais, intervenções médicas e decisões em política externa, para citar alguns exemplos. Para mais informações ver Tickner (1997).
6 Originalmente a autora usa a denominação Terceiro Mundo, no entanto, a faz de maneira provisória o que nos concede a oportunidade de optar pela expressão mais recente. Essa diz respeito às vozes dissonantes ao eurocentrismo, ao capitalismo, à modernidade e tantas outras formas de opressão ocidental.
Referências
BARRIENTOS, Francisca.La mujer como piedra de tope: Una mirada frente al fracaso del feminismo. In: Coordinadora Universitaria por la Disidencia Sexual. Por un Feminismo sin Mujeres. Santiago de Chile: ALFABETA, 2011
BEIER, J. Marshall. International Relations in Uncommon Places: Indigeneity, Cosmology, and the Limits of International Theory. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
CELENTANI, Francesca Gargallo. Feminismos desde Abya Yala. Ciudad de México: Editorial, 2014.
ESPINOSA, Yuderkys; LUGONES, María; GÓMEZ, Diana; OCHOA, Karina. Reflexiones Pedagógicas en torno al Feminismo Decolonial:: Una conversa en cuatro voces. In: WALSH, Catherine. Pedagogias Decoloniales: práticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Bogotá: Abya-Yala/UPS Publicaciones, 2013.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016. Disponível em: https://www.forumseguranca.org.br/storage/10_anuario_site_18-11-2016-retificado.pdf. Acessado em 04 de setembro de 2016.
MAPA DA VIOLÊNCIA 2015. Homicídio de mulheres no Brasil. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf . Acessado em 04 de setembro de 2016.
MUJERES CREANDO. Agenda Feminista 2014.
MOHANTY, Chandra. Bajo los Ojos de Occidente: Feminismo Académico y Discursos Coloniales. In: NAVAZ, Liliana Suárez; CASTILLO, Rosalva Aída Hernandez (Org). Descolonizando el Feminismo: Teorías y Prácticas desde los Márgenes. Madrid: ed. Cátedra, 2008.
PAREDES, Julieta. Para que el sol vuelva a calentar. IN: PÉRES, Elizabeth Monasterios. No pudieron con nosotras: el desafío del feminismo autónomo de Mujeres Creando.
Pittsburgh University-Plural editores: La Paz, 2006. URT, João Nackle. How Western Sovereignty Occludes Indigenous Governance: the Guarani and Kaiowa Peoples in Brazil. Rio de janeiro: Contexto Internacional, v. 38, n. 3, p. 865-886, 2016.
TICKNER, J. Ann. You just don’t understand: troubled engagements between feminists and IR theorists. International Studies Quarterly, v. 41, n. 4, p. 611- 632, 1997.
TICKNER, Arlene B.; BLANEY, David. L. (eds.). Claiming the International. London; New York: Routledge, 2013.
Organizadores
Katiuscia Moreno Galhera – Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas e professora voluntária do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados.
Tchella Maso – Mestra em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados.
Referências desta apresentação
GALHERA, Katiuscia Moreno; MASO, Tchella. Apresentação. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.6, n.11, p.1-14, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]
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