Feminismo para os 99%: Um Manifesto | Cinzia Arruzza, Thithi Bhattacharya e Nancy Fraser

Não se deve julgar um livro pela capa, mas no caso da edição brasileira de Feminismo para os 99%, a diagramação e as ilustrações tornam a leitura ainda mais prazerosa, enriquecendo assim a experiência da leitora. A edição brasileira também nos presenteia com o prefácio escrito pela deputada federal, professora e ativista política Talíria Petrone. Prefácio que começa com uma epígrafe do Quarto de Despejo de Carolina de Jesus, mulher negra, favelada, mãe de três filhos e uma das maiores escritoras de nosso país.

A partir de Carolina, Talíria nos mostra a urgência dos feminismos no mundo, mas sem deixar de lado o contexto brasileiro, país em que a colonialidade forjou desigualdades sociais, étnico-raciais e de gênero, que até hoje estão presentes e moldam nosso cotidiano. Em um momento em que o capitalismo está em crise, que a extrema direita sobe ao poder em diversos lugares e os discursos de ódio tomam espaço no cenário político, o prefácio de Talíria homenageia Marielle Franco:

se estivesse viva, a feminista e vereadora do Rio de Janeiro, mulher, negra, socialista, que amava mulheres, favelada, que carregava no seu corpo esse feminismo que queremos e estamos construindo, seria, certamente, parte, com entusiasmo, deste documento (Petrone, 2019:21).

O corpo de Marielle foi morto, mas não seu espírito de luta.

“Mulheres do mundo todo, uni-vos!”

O texto do livro foi proposto por um coletivo de proeminentes feministas estadunidenses, construído a partir das mobilizações da Marcha das Mulheres de janeiro de 2017 e publicado inicialmente em fevereiro do mesmo ano na Viewpoint Magazine . O manifesto parte de um vasto legado intelectual de diversas vertentes dos movimentos feministas que têm como base a ideia de que a opressão de gênero não é causada por um único fator, sendo um produto multifacetado das interseções entre sexismo, racismo, colonialismo e capitalismo. Assinado por nomes como Angela Davis, Barbara Ransby, Cinzia Arruzza, Keeanga-Yamahtta Taylor, Linda Martin Alcoff, Nancy Fraser, Rasmea Yousef Odeh e Tithi Bhattacharya, a edição em livro foi encabeçada pela filósofa e professora da New York School, Cinzia Arruzza, pela crítica feminista e também professora da New York School, Nancy Fraser e pela teórica marxista feminista e professora da Universidade Purdue, Tithi Bhattacharya. Foi publicado mundialmente no Dia Internacional da Mulher, 8 de março de 2019.

O livro é escrito em forma de manifesto, ou seja, um texto de natureza dissertativa e persuasiva em forma de declaração pública. Este gênero textual marcou a forma de escrita dos movimentos de esquerda, desde o tradicional “ Manifesto do Partido Comunista ”, escrito durante o período conhecido como Primavera dos Povos, em plena Revolução Industrial e publicado em 21 de março de 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels. Tal modo de escrita também foi importante na construção do pensamento feminista, como, por exemplo, quando Valerie Solanas escreve o “ Manifesto Scum ”, manifesto feminista radical publicado em 1967 que de forma satírica propunha a eliminação do sexo masculino. Assim como, a célebre obra de Donna Haraway, “ Manifesto Ciborgue ”, publicado em 1985 que repensa a “política da identidade” dentro dos movimentos feministas a partir de uma ruptura com a noção de “essência” transformando-a em algo que autora chama de “política de afinidades”, repensando assim, gênero, sexualidade, raça e tecnociência. Portanto, o Manifesto para os 99% é herdeiro de uma longa história de discursos com cunho político, integrando a luta anticapitalista com os movimentos feministas.

Uma encruzilhada no movimento

Segundo o livro-manifesto, o movimento feminista encontra-se cindido em duas vertentes opostas e irreconciliáveis. De um lado, o feminismo liberal o qual não percebe uma oposição entre feminismo e capitalismo; do outro, um feminismo que percebe uma relação intrínseca entre capitalismo e opressão de gênero e que entende que a libertação das mulheres passaria assim pela destruição deste sistema. Para as autoras, diante desta encruzilhada, temos dois caminhos distintos. Um que conduz à um planeta arrasado e a extinção da vida humana; outro que aponta para um mundo mais justo e igualitário. “Sob tais condições, o tempo de ficar em cima do muro passou, e as feministas devem assumir uma posição: continuaremos a buscar ‘oportunidades iguais de dominação’ enquanto o planeta queima?” (Arruzza; Bhattacharya; Fraser, 2019:27). Novamente o manifesto é atual, principalmente no contexto nacional, enquanto nosso maior patrimônio, a maior floresta tropical do mundo arde em chamas provocando uma crise internacional, devemos nos perguntar se nosso feminismo é cumplice deste sistema que nos explora e destrói ecossistemas, vidas e a própria possibilidade de vida em nosso planeta. As autoras são enfáticas: “o que nos dá coragem para embarcar neste projeto é a nova onda de ativismo feminista combativo” (Arruzza; Bhattacharya; Fraser, 2019:29). E é a partir deste ativismo feminista combativo que seguirão as 11 teses presentes no manifesto.

O feminismo reivindicado no livro-manifesto é este que vêm reinventando a greve, tomando novamente as ruas como espaço do político, recuperando as raízes históricas pelos direitos da classe trabalhadora e pela justiça social, reanimando, revivendo e reinventando o espírito combativo, unindo mulheres e dando novo significado ao lema: “solidariedade é nossa arma”. Estes novos movimentos sociais e populares têm as mulheres como suas protagonistas. “A nova onda de ativismo feminista combativo está redescobrindo a ideia do impossível” (Arruzza; Bhattacharya; Fraser, 2019:36) ao trazer os afetos, as emoções ao campo da luta política, um feminismo que luta por “pão” e “rosas”, o pão que nutre nossos corpos e foi durante anos tirado de nossas mesas, mas também a beleza que nutre nossas almas.

Em sua segunda tese, o manifesto afirma a falência do feminismo liberal, este que não visa a igualdade, mas sim possui suas bases na meritocracia. Um feminismo que não busca abolir a hierarquia social, mas acirrá-la. Abrindo espaço para a terceira tese, um feminismo anticapitalista, ou seja, um feminismo para os 99%.

O feminismo para os 99% não se limita apenas às mulheres, defendendo todas as pessoas que são exploradas, dominadas e oprimidas, tendo como objetivo se tornar uma fonte de esperança para a humanidade. Assim, este feminismo rejeita sua captação pelo sistema neoliberal que remodela a opressão de gênero. Este sistema que cria leis que criminalizam a violência de gênero, mas que, ao mesmo tempo, faz vista grossa ao sexismo e ao racismo dos sistemas de justiça criminal. Desta maneira, o feminismo para os 99% busca uma transformação social profunda e de longo alcance, dando voz e visibilidade a todos aqueles que sempre viveram às margens do sistema capitalista.

O sistema capitalista é a causa originária de uma crise na sociedade como um todo, uma crise que vai além da economia, sendo uma crise da ecologia, da política e do “cuidado”. Assim, caracterizando-se como uma crise generalizada que se dá pela forma predatória deste sistema. É ele que está na origem da sociedade de classes, mas também está na origem da opressão de gênero. Talvez o capitalismo não tenha inventado a subordinação de gênero, mas certamente a ampliou, estabelecendo um novo modelo ao expropriar o lucro do trabalho feminino. Destinando às mulheres o trabalho de produção de pessoas, de criação de novas gerações de massas trabalhadoras. Esta atividade vital as autoras vão chamar de “reprodução social”. Assim, o feminismo deve entender a reprodução social como algo que engloba todos os eixos da dominação. O cunho de manifesto, porém, deixa lacunas importantes no texto. Se entendemos que é preciso superar o capitalismo e as formas de subordinação do trabalho das mulheres baseada em hierarquias de gênero e exploradas pelo capitalismo, isso não faz com que sejam prescindíveis políticas públicas e outras formas de lidar com essa subordinação no cotidiano das mulheres no aqui e agora. O que implica, muitas vezes, em políticas que podem ser lidas como “liberais” ou conciliatórias.

Dentro do sistema capitalista, a violência de gênero assume diversas formas, estando a violência enraizada na estrutura institucional básica da sociedade capitalista. Como resposta a esta violência o feminismo convencional busca a criminalização e a punição, forma esta que o feminismo para os 99% considera inadequada, sendo apenas um “feminismo carcerário”. No sistema capitalista, a violência de gênero não é uma ruptura com a ordem regular das coisas, mas uma condição do próprio sistema, sendo parte integrante do funcionamento cotidiano da sociedade capitalista. Mais uma vez, encontra-se o limite de um texto-manifesto, pois se queremos combater a violência de gênero de uma maneira muito mais ampla, isso não pode afetar a importância de leis como a Lei Maria da Penha, no Brasil, que proporciona para muitas mulheres a possibilidade da denúncia e criminalização de seus algozes, ao mesmo tempo em que propõe medidas educativas, as quais, diga-se de passagem, tem sido difíceis de implementar

O mesmo sistema capitalista busca regular as sexualidades, regulação recorrentemente revestida pelas “máscaras de aceitação”. O feminismo para os 99% busca libertar as sexualidades, revivendo o espírito de Stonewall, criando uma sociedade em que as sexualidades sejam realmente livres e não apenas mais um produto dentro do regime capitalista. Sistema que nasceu da violência racista e colonial, desta maneira, o feminismo para os 99% é antirracista e anti-imperialista, pois o racismo, o imperialismo e o etnonacionalismo são partes integrantes da misoginia generalizada e do controle dos corpos de todas as mulheres, assim é papel do feminismo combatê-los. O feminismo para os 99% também é ecossocialista e luta para reverter a destruição da Terra pelo capital, portanto, a libertação das mulheres e a preservação do nosso planeta contra o desastre ecológico são lutas que andam juntas e, só se darão, com a superação do capitalismo. Capitalismo este que é incompatível com a democracia e a paz, assim, o feminismo pra os 99% é internacionalista, buscando romper as barreiras dos estados-nação que afetam a vida de milhões de mulheres ao redor do mundo, estas que são as primeiras vítimas da ocupação colonial e da guerra. O feminismo para os 99% é para todos aqueles que são explorados pelo sistema capitalista, buscando a união dos movimentos em uma insurgência global contra este sistema que cada vez gera mais vítimas.

A edição brasileira do Feminismo para os 99% conta ainda com as orelhas escritas por Joênia Wapichana, mulher, indígena, deputada federal, que recebeu em 2018 o Prêmio das Nações Unidas de Direitos Humanos. Wapichana nos coloca diante do fato de que nem as esquerdas ou a direita respondem ao desafio das diversidades, desta forma precisamos rever, subverter e transformar as relações de poder, tanto entre homens e mulheres, mas também entre seres humanos de culturas e origens diferentes, entre os humanos e o planeta… O manifesto é um grito feminista libertário, anticapitalista e em construção constante.

Ao mesmo tempo, precisamos alertar para seus limites, dados pelo próprio gênero manifesto: são intenções, bandeiras, palavras de ordem (ou de desordem como dizem as novas marchas feministas), princípios para serem debatidos, mas precisam também ser confrontados com o cotidiano, as lutas, os trabalhos, e as relações vividas pelas mulheres nos seus lugares e nas suas condições particulares. Nesse confronto, muitas vezes as alianças de corpos, como diz Judith Butler (2018), podem ser fundamentais para a sobrevivência e para a continuidade da luta e, eventualmente, essa aliança se dá contornando radicalidades, flexibilizando noções, e negociando soluções imediatas e provisórias.

O manifesto do feminismo para os 99% é um novo sopro de fôlego aos movimentos feministas, abraçando a interseccionalidade e unindo todos aqueles que fazem parte dos 99% da população mundial contra um sistema que coloca 50% de toda a riqueza do planeta na mão de apenas 1% da população. Riqueza esta que cada vez mais se acumula, acirrando os abismos entre ricos e pobres. Um sistema em que 62 pessoas possuem mais riquezas que os 50% mais pobres, ou seja, um sistema onde 62 pessoas concentram mais riquezas do que as 3,75 bilhões de pessoas mais pobres do planeta. Por fim, retomamos as palavras de Wapichana: “para criarmos um presente e um futuro livres e acolhedores para todos os seres vivos, o século XXI deve ser feminino e feminista” (2019, orelha)

Referências

Butler, Judith. Corpos em aliança e política das ruas: Notas de uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018.

Haraway, Donna. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Tadeu, Tomaz (Org.). Antropologia do Ciborgue: As vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte, Autêntica, 2009, p.33-118.

Marx, Karl; Engels, Friedrich. O manifesto comunista. 13. ed. São Paulo, Paz e Terra, 2004.

Petrone, Talíria. Prefácio à edição brasileira. In: Arruzza, Cinzia; Bhattacharya, Thithi; Fraser, Nancy. Feminismo para os 99%: Um Manifesto. São Paulo, Boitempo, 2019, p.11-22.

Solanas, Valerie. Scum Manifesto. Curitiba, Herética Edições Lesbofeministas Independentes, 2014.

Wapichana, Joênia. Orelha. In: Arruzza, Cinzia; Bhattacharya, Thithi; Fraser, Nancy. Feminismo para os 99%: Um Manifesto. São Paulo, Boitempo, 2019, p.11-22.


Resenhistas

Mateus Coelho – Doutorando no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: mateusgusco@gmail.com  https://orcid.org/0000-0002-6580-9279

Cristina Wolf – Professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: cristiwolff@gmail.com  http://orcid.org/0000-0002-7315-1112


Referências desta Resenha

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Thithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: Um Manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019. Resenha de: COELHO, Mateus; WOLF, Cristina. O feminismo no cerne da crise capitalista. Cadernos Pagu. Campinas, n.58, 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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