Exposições de Arte & História | ArtCultura | 2013
Eleger obras e dispô-las segundo um ordenamento é um ato que produz significações e narrativas que podem ou não se confirmar aos olhos do público. Como instância de legitimação da arte, como estrutura social que traça a fronteira entre arte e não arte, como local de inscrição de debates que se relacionam com o que Rancière designou “partilha do sensível” – que envolve as disputas em torno das significações e lugares sociais –, a exposição se tornou, mais recentemente, um importante objeto de estudos da disciplina histórica.
Os textos aqui reunidos problematizam algumas exposições de arte, a partir de metodologias e perspectivas teóricas próprias, como instâncias de práticas políticas e, portanto, de interesse da pesquisa historiográfica.
Dois artigos versam sobre a exposição como mecanismo de construção de uma determinada percepção do Outro. Luciene Lehmkuhl aborda a Exposition Coloniale Internationale et des Pays d’ Outre-mer (Exposição Colonial Internacional e dos Países d’ Além-mar), ocorrida na Paris de 1931. Nesta exposição, não é a oposição e marcação da irremediável diferença entre civilizado e selvagem que sobressai, mas o processo gradual civilizacional que o europeu pode, por intermédio da colonização, propiciar, não mais ao selvagem, mas ao indígena, aquele que se encontra em uma fase anterior de desenvolvimento. Conforme a autora, a exposição enseja ao cidadão a participação na “aventura colonial”.
Francielly Rocha Dossin, por sua vez, enfoca duas exposições, Magiciens de la terre (1989) e Africa remix (2005), cujos objetos giram em torno da África, e pondera acerca da problemática da constituição do Outro, desta vez, o Outro africano. Ambas foram realizadas em Paris, se bem que a segunda foi itinerante por outros continentes. Num período de globalização acentuada, de inserção de países periféricos no mercado mundial e dos estudos pós-coloniais e multiculturalismo, a Europa novamente se vê em contato com um Outro de que é preciso dar conta (e, talvez, prestar contas). A despeito das diferenças entre as duas estratégias expositivas, e mesmo das fricções internas a cada uma delas, fica patente, como nos alerta a autora, que a admissão da arte africana como Arte (com A maiúsculo) interroga a linearidade evolutiva (cujo ápice era a arte europeia) que a história da arte uma vez aventou. Quiçá essa história da arte, embora já não hegemônica, ainda seja a matriz inconsciente da nossa valoração artística, visto que não se fazem exposições de “arte europeia”, e esta é denominada apenas Arte, sem necessidade de um adjetivo que a qualifique.
Na exposição comemorativa de dupla efeméride – os 180 anos de nascimento de Victor Meirelles e os 60 anos da inauguração do Museu ho – mônimo dedicado à obra do artista – a instituição propôs a seu visitante um plano de viagem para problematizar a história da arte referenciada pelos acontecimentos estéticos europeus. Tratava-se de deslocar a pretensão de recepção de uma cultura em sua completude, bem como da constituição unívoca do Outro ou do Mesmo (a chamada arte brasileira), por meio da associação entre viagem e exposição, explorando os percalços e os desvios das narrativas dos viajantes em oposição à linearidade e teleologia de algumas narrativas expositivas.
Ana Tavares Cavalcanti tem por foco o salão parisiense de 1861, tomando por base as críticas publicadas em periódicos de época, nas quais se observa o declínio da pintura de história e a ascensão da pintura de gênero, ao gosto de uma burguesia abastada. É interessante notar que, enquanto o texto de Lehmkuhl destaca o público-cidadão, aquele ao qual se solicita a participação na empresa colonial na medida em que é “povo” e, portanto, elemento constituinte de uma nação, Cavalcanti põe em evidencia um público-mercado (comprador de obra de arte). De um modo e de outro, é a exposição que confere certo caráter ao público; ou seja, a exposição produz seu público, a partir de seus objetivos e estratégias expositivas, discursos.
Já Ana Lucia Vilela examina algumas obras de arte contemporâneas que, ao mesmo tempo em que são destinadas ao espaço expositivo – sem o qual sequer existiriam como arte –, opõem-se à forma de visibilidade que a institucionalidade encarnada nesses lugares supõem. Ao recorrer a Agamben, a autora mostra exemplos de obras que produzem a potência de não: sem se ausentar da exposição, a obra de arte resiste à sua máquina legitimadora e, de alguma maneira, alimenta-se de sua energia para manter a potência.
Por último, como parte de sua pesquisa sobre patrimonialização e inserção museal do briganti, Vincenzo Padiglione interroga as significações tramadas em torno dele. O briganti era uma figura que configurava a ilegalidade surgida no corpo social da Itália pré-unitária, cuja existência persistiu entre os séculos XVIII e XIX. O fenômeno que Padiglione estuda sugere a passagem do insurreto a ser exterminado à representação pitoresca em diversos meios, tais como escultura, pintura a óleo ou aquarela, gravuras, desenhos, que penetraram fartamente, em suas variadas expressões , nos lares italianos no século XIX e chegaram aos museus.
As exposições são matéria fértil para a disciplina História. Elas tecem discursos que acabam por expor a si mesmas como mecanismos de eleição, demarcação, significação, objetivação. O resto da exposição, aquilo que não pode e não deve ser visto, é relegado à sombra. Mas, justo o contrário, houve e há exposições que produzem visibilidade daquilo que é socialmente recalcado. São precisamente os jogos entre sombra e luz, bem como sua lógica, que as histórias da arte que ora se apresentam buscam apreender.
Organizadores
Maria Bernardete Ramos Flores – Professora do Programa de Pós-graduação em História da UFSC, pesquisadora do CNPq e integrante do conselho editorial da revista ArtCultura.
Ana Lucia Vilela – Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG). Curadora e crítica de arte. Coorganizadora do livro Encantos da imagem: estâncias para a prática historiográfica – entre história e arte. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010. E-mail: analuciavilela@ufg.br
Referências desta apresentação
FLORES, Maria Bernardete Ramos; VILELA, Ana Lucia. Exposições: jogos de luz e sombra. ArtCultura. Uberlândia, v. 15, n. 26, p. 29-30, jan./jun. 2013. Acessar publicação original [DR]