Não há dúvidas de que atualmente a micro-história desfruta de grande ressonância no âmbito historiográfico brasileiro. Contudo, o sucesso desta perspectiva metodológica carrega consigo uma considerável dose de incompreensão. Para grande parte dos acadêmicos brasileiros o termo “micro-história” esteve (ou ainda está) se tornando sinônimo da figura de Carlo Ginzburg, ou da figura de Menocchio, moleiro do século XVI estudado pelo proeminente historiador italiano em seu livro O queijo e os vermes. No Brasil, muitas vezes tomada como teoria, a micro-história também é freqüentemente confundida com a história das mentalidades praticada, sobretudo, pelos franceses dos Annales.
Todas estas confusões são, em grande medida, frutos do percurso trilhado pela historiografia brasileira nos últimos trinta anos. Com a crescente ampliação do público acadêmico consumidor, durante a década de 1980 um amplo conjunto de leituras historiográficas estrangeiras foram traduzidas quase que simultaneamente para o português. Entre as principais traduções podemos citar: a historiografia produzida pelo grupo dos Annales, especialmente autores como Jacques Le Goff, Georges Duby e Michel Vovelle; os historiadores ingleses e anglo-americanos, como Edward P. Thompson, Natalie Zemon Davis e Eugene Genovese; discussões que surgiam do âmbito filosófico e sociológico francês, como Michel Foucault e Pierre Bourdieu; além dos frutos da micro-história italiana, quase que exclusivamente com Carlo Ginzburg. Portanto, a recepção desta massa de textos, idéias e sugestões de pesquisa (que não raramente caminham em direções divergentes, claro sintoma do desmoronamento dos paradigmas estruturalista e marxista) foi mediada – como talvez não pudesse deixar de ser – por leituras parciais e apressadas.
Neste sentido, os textos reunidos pelas professoras Mônica Ribeiro de Oliveira e Carla Maria Carvalho de Almeida, ambas vinculadas ao departamento de história da UFJF, em muito colaboram para um maior entendimento do assunto. Sendo dividido em três partes, trazem as organizadoras, na primeira parte, textos produzidos na virada da década de 1970 para a de 1980 traduzidos para o português de dois grandes ícones da micro-história italiana: Edoardo Grendi e Giovanni Levi, representantes de uma prática historiográfica de micro-análise social.
Em sua segunda parte, obra também traz consigo interessantes artigos de caráter assumidamente historiográficos dos professores Cássio da Silva Fernandes (assim como as organizadoras, professor adjunto do departamento de história da UFJF) e Henrique Espada Lima (certamente um dos maiores especialistas em micro-história italiana no Brasil, além de professor adjunto da UFSC). O primeiro buscou salientar, a partir da importância de Delio Cantimori na formação acadêmica de Ginzburg, como a perspectiva micro-histórica possui íntima ligação com uma longa tradição histórico-cultural italiana. Tradição esta que havia concebido a biografia como forma primordial de compreensão da ação humana, que havia sido praticada também por grandes autores como Jacob Burckhardt, Johan Huizinga, Aby Warbug e Werner Kaegi. O segundo procurou inserir o debate da micro-história no contexto da história social entre a década de 1970 e os anos mais recentes ao destacar como esta perspectiva metodológica respondeu as transformações da própria trajetória do debate, assim como refletir a respeito da recepção seletiva da micro-história no debate intelectual brasileiro da década de 1980 até os dias de hoje.
Já na terceira e última parte da obra encontra-se uma série de “exercícios de micro-história”, estudos empíricos (a exemplo dos estudos de Giovanni Levi, fundamentalmente) que almejam, a partir da redução da escala de análise e do acompanhamento da trajetória de indivíduos, revelar a forma como homens do passado organizavam suas vidas, assim como quais eram os significado e sentidos da vida para estes. Desta forma, João Fragoso (UFRJ) procurou contribuir para maior compreensão da lógica de funcionamento das empresas açucareiras coloniais lusitanos do século XVIII; Mônica Ribeiro de Oliveira resgatar o universo cultural de agrupamentos sociais que compunham as matrizes culturais da América portuguesa dos séculos XVIII e XIX; Renato Pinto Venâncio (UFOP) reafimar o quanto as redes de compadrio de membros da elite de Vila Rica permitiram a criação de um capital relacional de enorme importância durante o século XVIII; e, finalmente, Cristina Mazzeo de Vivo (professora de história da América da Pontifícia Universidade Católica do Peru) contrapor a historiografia tradicional peruana ao salientar que nem todos os comerciantes que estavam ligados ao monopólio comercial espanhol foram prejudicados com medidas bourbônicas como a abertura comercial de 1778.
Em suma, os textos reunidos nesta obra auxiliam imensamente os leitores brasileiros a realizar uma desvinculação da micro-história como sinônimo da obra de Carlo Ginzburg, demonstrando as divergências entre seus praticantes, reafirmando seu caráter fundamentalmente experimental, e salientando como o programa original micro-histórico foi também se modificando e tornando-se mais complexo com o passar do tempo. Também nos mostram como esta perspectiva metodológica pode ser rica e elucidativa quanto a temas nacionais ou da América Latina.
Contudo, os “exercícios de micro-história” que se encontram nessa obra deveriam atentar para algumas ressalvas salientadas por Keith Thomas. O autor afirma que: “Já li, no entanto, um grande número de livros enfadonhos nessa linha, pois, mesmo deixando de lado a necessidade de um toque de gênio, não é qualquer assunto que serve para esse tipo de história”2. Deve-se lembrar que uma das características fundamentais que a prática micro-histórica carrega consigo é uma forte preocupação com a narrativa e a forma de apresentação de seus trabalhos. Também, não podemos esquecer que esta perspectiva foi fundamentalmente fruto de seu tempo, quando se buscava a necessidade de ampliação do terreno do historiador em uma época que urgia pela 3 transferência de fenômenos considerados periféricos para o centro de discussão. Embora esta abordagem historiográfica traga resultados novos na historiografia brasileira – e também peruana, como no último caso apresentado pela professora Cristina Mazzeo de Vivó – ela pode representar uma falta de originalidade historiográfica, uma adesão a slogams, que agora se encontram “na moda”. Neste sentido, sobre a perspectiva metodológica da micro-historia, escreve Ginzburg: “Muito cedo percebi que aquilo não era suficiente. Em outras palavras, senti que, tendo insistido neste ponto, era preciso ir adiante, tendo a batalha sido ganha, o problema era evitar clichês”
Notas
2. PALLARES-BURKE. Maria Lucia. As muitas faces da história. São Paulo : UNESP, 2000. pp. 148- 149.
3. Idem, p. 288.
Referências
ALMEIDA, Carla M. C., OLIVEIRA, Mônica R. (orgs.) Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009
PALLARES-BURKE. Maria Lucia. As muitas faces da história. São Paulo: UNESP, 2000
Resenhista
Jose Adil Blanco de Lima – Mestrando em história pela UFJF.
Referências desta Resenha
ALMEIDA, Carla M. C., OLIVEIRA, Mônica R. (Orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009. Resenha de: LIMA, Jose Adil Blanco de. Intellèctus. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, 2010. Acessar publicação original [DR]
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