Euro: e se a Alemanha sair primeiro? | António Goucha Soares
Em sua mais recente obra, António Goucha Soares1, ao longo de seis capítulos, discorre – com linguagem de fácil acesso mesmo aos não iniciados nas discussões de política econômica ou relações do direito internacional – a respeito de temas que tangenciam a História, a Economia e o Direito. Dessa forma torna a narrativa objetiva em seu conteúdo e rica pelas estratégias argumentativas que são empregadas. Com emprego da metodologia da História Social que visa rastrear os agentes e dar nome aos atores protagonistas dos eventos aqui desenrolados, e com o intuito de dar um sentindo humano às ações, não naturalizando os processos, Soares apresenta-se enquanto um fiel defensor da crítica às versões “oficiais” dos acontecimentos históricos. É nesse sentido que se projeta a sua argumentação, visando um deslocamento ou minimamente uma exposição acerca do protagonismo atribuído à Alemanha nos processos de condução à união econômica e monetária à qual os países da Europa Ocidental se submeteram a partir do tratado de Maastricht em 1992.
O autor busca compreender o processo de superação dos antagonismos ancestrais protagonizados pelas potências do antigo continente pensando o processo de construção da União Europeia como a instituição de uma ideia de cidadania comum do individuo europeu, este, não deveria mais se ver como um cidadão unicamente nacional, mas como um cidadão europeu, transcendente das barreiras regionais delimitadoras do âmbito espacial. Desta forma, o “espírito” unificador europeu aparece como uma tentativa de recuperação da concepção da antiguidade clássica grega da “koinonia politiké”, a integração comunitária, a busca por um futuro comum.
No entanto, este projeto de construção europeia se daria, no nível interno, como um processo cravejado de espinhos, com sucessivas crises econômicas, políticas, e até mesmo, existenciais e identitárias.
Nesse escopo, o foco analítico empregado se refere à crise do euro iniciada a partir de 2008 com a crise da dívida soberana grega. O desenvolvimento dessa crise evidencia que a União esteve à beira de um colapso e que as seis décadas de integração se fundamentaram em bases não sólidas.
As várias tentativas de integração de um regime cambial para o mercado comum europeu já estavam sendo ensaiadas desde a década de 1970 e 1980 com o fim de Bretton Woods. Tais estratégias são apontadas como movimentos genitivos que seguiam um sentido único de formação de uma política econômica comum que teve a sua certidão de nascimento assinada a partir dos acordos de Maastricht em 1992. Mas ao longo do caminho foi se evidenciando que a União Europeia estava assentada em bases fragmentadas e nada equivalentes.
A união monetária se tornou aspecto de discussão apenas em âmbito da disputa por poder nos projetos de uma Europa “unificada” nesse sentido, o projeto que se apresentou como hegemônico, foi o alemão.
Ao longo da obra, Soares busca elucidar os aspectos mais opacos do processo da crise do euro, e evidencia que as lutas de poder e projetos condutivos para a gestão da crise comprovam o protagonismo de um país que empregou o discurso de “risco moral”, ou de culpabilidade do “desleixo” orçamentário de economias mais fragilizadas que compunham a zona do euro, para justificar medidas centralistas em um espaço de construções que deveria priorizar o “bem-estar” comum dos cidadãos europeus.
A essência de tal discurso seria uma construção comunitária cada vez mais alinhada, fraterna e próspera, o que se revelou como uma falácia no âmbito das relações de subjugação protagonizadas pela Alemanha em relação à Grécia.
A Alemanha, por sua vez, atuou com grande reserva ao processo de criação da união econômica e monetária desde o início do processo. Nesse sentido, a sua estratégia foi a busca pela determinação dos contornos fundamentais do funcionamento da moeda única.
Em “Euro: e se a Alemanha sair primeiro?”, a verdade é explicada como produto de várias coerções causadoras de efeitos regulamentados de poder. Essa “verdade” é produzida com interesses de dominação, seja por projetos de nação ou através de práticas políticas e econômicas em uma sociedade capitalista, como Foucalt explica na coletânea de seus textos em 1979, “A Microfísica do poder”.
Desse modo, Soares mostra que o jogo de poder entre os principais atores políticos que fizeram parte da integração europeia (França e Alemanha) se balizou numa busca de salvaguardar nos interesses comuns da zona do euro, os seus próprios interesses. Assim sendo, a ortodoxia germânica, em sua abordagem da crise, foi definida como a linha mestra de direcionamento a ser seguida pelo processo de ajuste dos demais Estados-membros da União Europeia, independentemente das características únicas de cada um.
Essa abordagem causou o efeito de divisão simbólica entre países credores e países devedores, cuja antítese está no condicionamento de que um conjunto de Estados a uma posição subalterna face aos seus homólogos.
O mecanismo de confronto verbal em âmbito nacional retomou antagonismos entre os países integrantes ao bloco e reabriu feridas antigas. Assim, por exemplo, os cidadãos gregos foram imputados com uma imagem de esbanjadores, enquanto ao povo alemão teria um status de laborioso e comedido em seus gastos. A máxima do discurso empregado pela elite política alemã, tida como discurso oficial, é que a situação de crise do euro se desenvolveu pelo descuido das leis orçamentais e violações às regras do Pacto de Estabilidade, o que por si só não explica os repetidos descumprimentos de tal Pacto por parte da maioria dos Estados membros, inclusive a própria Alemanha.
Na verdade, tal discurso aponta que a debilidade da união monetária já se demonstrava no seu início. A profunda crise do euro não foi capaz de reconhecer essa fragilidade. Os desequilíbrios macroeconômicos entre as nações componentes foram amplamente “esquecidos”. A busca pela ampliação do mercado não veio acompanhada de uma estrutura de mecanismos de estabilização.
Em resumo, Soares coloca que “[…] a Alemanha foi capaz de impor a sua versão da crise do euro ao conjunto da União, ao longo de todo o tempo. Como se uma mentira, mil vezes repetida, pudesse virar verdade.”, logo na sua introdução, estabelecendo a linha que a obra seguiria dali por diante.
O discurso de prevenção ao risco moral e o perigo da união monetária se transformar em uma união de transferências no âmbito da recuperação de países que sofressem de choques assimétricos pelo processo de substituição das suas moedas nacionais foram bandeiras empregadas pela Alemanha no processo de gestão de crise.
Há de se esmiuçar essa assertiva do autor. A Alemanha trocou o marco, uma moeda forte e estável, pela sua reunificação nacional. Este foi o único país que foi coagido a adotar o euro como moeda nacional, condição proposta pela França como tentativa de frear o poder de condução alemão.
No entanto, a estabilidade da Alemanha dependia de que esta fosse vitoriosa no seu projeto de condução da política de recuperação do euro a qualquer custo, por isso a versão alemã da crise prioriza os pacotes de austeridade como medida de ação a serem empregadas em economias que, supostamente, por culpa das suas ações displicentes culminaram em situação de insolvência do próprio Estado, sem permitir abertura para qualquer outro tipo de explicação.
O discurso aparente de salvamento do euro com o intuito de normalização do mercado comum, visando evitar os possíveis contágios pela crise das dívidas soberanas se deu, segundo Soares, por um processo de centralização do projeto europeu na versão da ortodoxia germânica. Tal se concretizou através da chamada reforma de Governança Econômica empregada pelos Six Pack, pelo Pacto Orçamental, e pelo Two Pack, o que se apresenta como um dos maiores fenômenos centralizadores de competência no processo da construção da unificação europeia.
Deste modo, Soares busca em seu livro demonstrar uma visão contrária ao discurso oficial vinculado amplamente, seja pela mídia, em textos de opinião, ou mesmo trabalhos científicos. Ao mérito do autor atribui-se ainda, o rigor acadêmico no tratamento de um assunto que ilustra um processo doloroso de recuperação de economias devastadas, processo esse que implicava sofrimento dos supostos “infratores”, obrigando-os a cortes orçamentários e, até mesmo, na definição de uma situação de insolvência. Tais acusações culminariam no questionamento da origem dessas dívidas soberanas em 2015 pelo governo grego, ato que levou ao processo de quase expulsão do país da zona do euro.
Em síntese, “Euro: e se a Alemanha sair primeiro?” questiona a possibilidade de reprodução desse sistema que em tese busca um pacto de crescimento harmônico e conjunto de seus integrantes, sendo leitura atual de bastante interesse, fácil entendimento mas que não perde com isso em densidade de informações.
Nota
1. António Goucha Soares (1962, Lisboa), doutorou-se pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, após seus estudos na Faculdade de Direito de Lisboa e no Colégio da Europa, em Brugues. Atualmente, é professor no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, sendo titular da cátedra Jean Monnet. Foi professor visitante na Universidade de Brown, em Providence, Estados Unidos. É autor de vasta bibliografia, sendo sua obra mais atual o livro “Euro: e se a Alemanha sair primeiro?” de 2016. Versando sobre as áreas do direito comunitário, integração europeia, política de concorrência e instituições internacionais.
Resenhista
Talysson Benison Gonçalves Bastos – Historiador. Mestrando em Desenvolvimento Socioeconômico pela Universidade Federal do Maranhão.
Referências desta Resenha
SOARES, António Goucha. Euro: e se a Alemanha sair primeiro? Lisboa: Temas e Debates, 2016. Resenha de: BASTOS, Talysson Benison Gonçalves. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 13, n. 39, p. 190-193, dezembro, 2017. Acessar publicação original [DR]