CESCON, Everaldo (Org). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: DALSOTTO, Lucas Mateus. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 1, p.171-177, jan./jun., 2018.
Para todos aqueles que anseiam aprofundar seus conhecimentos a respeito da fenomenologia e, em especial, da relação desta com a ética, há pouco tempo foi publicado no Brasil um livro de imprescindível leitura, a saber: Ética e Subjetividade, organizado pelo competente e destacado professor Everaldo Cescon (Vozes, 2016, 314 p.). Note-se que a força e relevância do texto não decorrem apenas do fato dele fornecer uma ampla e apropriada abordagem a respeito da fenomenologia e, por conseguinte, de alguns de seus principais teóricos, tais como Edmund Husserl, Emmanuel Levinas, Edith Stein, Michel Henry, entre outros, mas especialmente por chamar a atenção do leitor a temas fenomenológicos que nos permitem falar diretamente da ética. Ainda que a obra resguarde uma homogeneidade no que diz respeito ao estilo e à forma de como cada autor estabelece sua discussão, isto não exclui em nada a riqueza de ca da um dos textos. Em linguagem acessível e com interpretações e análises acuradas, o livro conta com a contribuição de uma vasta gama de reconhecidos especialistas brasileiros e internacionais (i.e., Argentina, Colômbia, Portugal, Espanha e Itália) na área.
Ao considerar que a ética contemporânea desenvolve-se num vazio de sentido, na medida em que as bases ontológicas e metafísicas para a reflexão desta foram removidas, o escopo do presente livro reside em apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir. O trabalho de fundamentação de nossas escolhas morais continua sendo um problema fundamental e indispensável no domínio da ética, o qual não se restringe em ser um problema meramente teórico, mas, tanto mais, um problema prático. Assim, é somente reivindicando a exigência do valor e refundando as crenças morais que será possível enfrentar uma sociedade cada vez mais atrelada à necessidade, à instrumentalidade e à utilidade do valor.
A fim de levar a cabo tal proposta, Ética e Subjetividade está dividida em cinco seções, cada uma delas cumprindo uma função especial no objetivo geral da obra. Partindo do processo metodológico de constituição da fenomenologia e perpassando pelo pensamento ético husserliano, as análises dirigem-se às mais variadas abordagens e desenvolvimentos éticos que surgiram a partir dessa corrente teórica. Estas seções são ainda precedidas por uma breve e oportuna introdução, a qual, nas palavras de Cescon, visa apresentar a eminente necessidade de repensarmos a ética no sentido de “permitir ao indivíduo constituir-se enquanto pessoa autor-responsável, livre, solidária e aberta” (p. 9).
Considerando o fato de que Husserl era entendido como um filósofo teórico e que, portanto, a ética sempre foi um dos temas que menos recebeu atenção por parte de seus estudiosos, a primeira seção do texto tem por finalidade principal expor a concepção de racionalidade prática que parece emergir de sua fenomenologia. Neste contexto, são apresentadas duas fases principais da obra husserliana no tocante à reflexão ética, uma de tipo lógico centrada na crítica e na teoria do conhecimento, e outra centrada na subjetividade humana e na noção de dever no sentido da vocação/missão. Na sequência, defende-se que em ambas as fases o objetivo de toda a fundamentação fenomenológica de Husserl foi sempre salvaguardar a objetividade, tanto das proposições teóricas quanto dos valores e das proposições éticas. Então, busca-se analisar o excurso Natur und Geist nas Lições de Ética, de 1920 a 1924, a fim de esclarecer o “âmbito do humano espiritual para, assim, saber ao que exatamente a ética se refere” (p. 68). Por fim, é avaliado se a ética de Husserl obtém sucesso em reivindicar que juízos de valor possuem uma validade que independe das particularidade dos agentes que os emitem e em defender que há alguma coisa como uma obrigação moral absoluta que vincula incondicionalmente a vontade dos agentes à ação.
Diferentemente da primeira seção, onde a reflexão estava centrada na noção de racionalidade prática e de objetividade moral na ética husserliana, a segunda seção visa discutir a questão da subjetividade ética e mostrar a influência de Husserl sobre outros autores. Partindo deste último, inicialmente é mostrado que a intencionalidade da consciência permite aos agentes perceber que os valores lhes são dados do mesmo modo como os objetos da intuição sensível o são e que, desse modo, a esfera afetiva – subjetiva – dos agentes faz parte do âmbito da moralidade. Num segundo momento, busca-se evidenciar a herança de Husserl na antropologia de Edith Stein, especialmente no que diz respeito ao método, uma vez que esta última incorpora integralmente em sua proposta a ideia de epoché daquele. No que se segue, discute-se a transcendência ética em Levinas no sentido de que a razão é incapaz de captar o outro sem reduzi-lo ou objetificá-lo e que, por isso, ela é incapaz de reconhecer a radicalidade do chamado do outro. A resposta a este chamado produz um “transbordamento da intencionalidade” (p. 156), o qual é impossível de ser capturado pela consciência intencional do agente.
Em continuidade à anterior, a terceira seção aborda a questão da subjetividade ética e o problema do corpo a partir da contribuição de alguns autores filiados – de alguma forma – à tradição fenomenológica. Primeiramente, avalia-se a possibilidade de uma fenomenologia da individuação a partir do conceito de encarnação de Michel Henry. O ponto central é que aquilo a que fazemos referência – noema – em nossa experiência intencional, dando-lhe sentido – noesis –, implica, em alguma medida, torná-lo carne, especificamente “carne de minha carne” (p. 164). Em seguida, o pensamento de Michael Henry é apresentado como estando vinculado a um tipo de fenomenologia do corpo – da subjetividade – segundo o qual a ética se dá no cuidado da vida e, nesse caso, na não-instrumentalização do corpo de cada indivíduo. Ao final dessa seção é exposta a posição Nicolai Hartmann, que, pensando a partir da fenomenologia, realizou uma vigorosa crítica à metafísica, tanto antiga quanto moderna, no sentido de chamar atenção à pluralidade e complexidade dos valores que afetam a vida dos agentes.
Na quarta seção, a questão da subjetividade ética ainda permanece no foco das discussões, mas agora atrelada ao problema da ação e sob o viés de outros autores. O ponto de partida de Ética e Subjetividade aqui é mostrar o esforço de Paul Ricouer em conciliar a teleologia aristotélica e a deontologia kantiana e, ao mesmo tempo, eliminar o problema – atinente a ambas as teorias – da exclusão da alteridade e da reciprocidade nas relações interpessoais. Posteriormente, expõe-se a teoria de Xavier Zubiri com vistas a sugerir que a reflexão moral não é uma questão de descobrir a que normas se está obrigado a cumprir, mas, ao contrário, de descobrir quais são as estruturas e características próprias de organização, solidariedade e corporeidade do ser humano. Finalizando a seção, o fenômeno da hospitalidade é analisado como uma forma de agir passivo em que há, nos termos de Levinas, um ‘transbordamento’ – as bordas de um fenômeno transbordado nunca poderão ser evidentes –, o qual, por sua vez, torna a apreciação conceitual uma tarefa delicada e complexa. A impossibilidade de tal apreciação deve converter a hospitalidade numa espécie de transgressão cujo resultado será a acolhida do hóspede, do estrangeiro ou de qualquer um outro.
Na última seção, as análises concentram-se na compreensão da relação existente entre subjetividade pessoal e comunidade ética. Num primeiro momento, o trabalho de Edith Stein é tomado em questão para evidenciar que a realização do ser humano como pessoa reside no encontro deste com o outro no interior de uma comunidade, onde esta comunidade é fonte de força vital e espiritual para os agen-tes na medida em que ela gera um sentido de pertença entre todos eles. A seguir, retorna-se a Husserl para mostrar que, embora a personalidade dos agentes seja regida por normas racionais que se ajustam ao telos próprio de cada um deles, é impossível imaginar que o ideal ético pessoal seja realizável sem abertura aos outros. Por fim, faz-se uma interpretação do fato da irrupção dos pobres – termo cunhado pelo teólogo Gustavo Gutiérrez ao se referir ao crescente número de marginalizados existentes nas grandes e pequenas cidades – na América Latina a partir do conceito de Jean-Luc Marion de fenômeno saturado – fenômeno que ultrapassa todas as significações conceituais e horizontes prévios de compreensão.
Para concluir, é importante chamar atenção para o fato de que, além de muito bem escrito, Ética e Subjetividade oferece uma segura síntese a respeito do atual estado da arte entre fenomenologia e ética. Apesar de toda a complexidade dos temas e análises realizadas nos textos, o livro é de fácil e acessível leitura, mesmo para aqueles que não estão familiarizados com os autores ou com os principais tópicos da discussão. Ainda que alguns temas pareçam carecer de maiores explicitações e, talvez, merecessem até uma exposição mais detida e minuciosa, é possível afirmar que o livro cumpre plenamente sua função, a saber: apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir ético. Portanto, Ética e Subjetividade é uma das mais importantes contribuições editoriais no domínio da fenomenologia realizadas no Brasil nos últimos anos e, por conseguinte, é imprescindível sua leitura e discussão nos mais diversos ambientes da academia filosófica de nosso país.
Referências
CESCON, Everaldo (Org.). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016.
Lucas Mateus Dalsotto – Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: lmdalsotto@hotmail.com
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