O objetivo da obra Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos está claramente exposto:
[…] é encontrar uma nova base de mudança necessária. Essa base deveria apoiar-se em algo que fosse realmente comum e global, de fácil compreensão e realmente viável. Partimos da hipótese de que essa base deve ser ética, de uma ética mínima, a partir da qual se abririam possibilidades de solução e de salvação da Terra, da humanidade e dos desempregados estruturais (BOFF, 2000, p. 19).
Tendo em mente esse pressuposto, o autor parte do princípio de que há “três problemas que suscitam a urgência de uma ética mundial: a crise social, a crisde do sistema de trabalho e a crise ecológica, todas de dimensões planetárias” (BOFF, 2000, p. 13).
Ele propõe uma possível definição de ethos:
[…] entendemos o conjunto das inspirações, dos valores e dos princípios que orientarão as relações humanas para com a natureza, para com a sociedade, para com as alteridades, para consigo mesmo e para com o sentido transcendente da existência: Deus (BOFF, 2000, p. 20).
A partir da sua definição, procura apresentar a irrupção da consciência da terra como pátria e mátria comuns de todos os seres, fundando o novo patamar da realização da história e do próprio Planeta. Ora, se a Terra é algo comum ao ser humano, devem-se buscar soluções globais e uma ética planetária, pois “para uma realidade global, importa também uma ética global” (BOFF, 2000, p. 26).
Para que ocorra a ética planetária, precisam ser criados certos consensos, coordenar certas ações, coibir certas práticas e elaborar expectativas e projetos coletivos. Surge então a questão da validade de uma referência ética e moral comum que possa congregar a todos. Resta perguntar: como criar um consenso mínimo sobre valores éticos, válidos para todos os humanos, que possam ajudar a debelar três questões globais: a social, a do desemprego estrutural e a ecológica?
O autor apresenta seis formas principais de argumentação, que por sua vez, oferece uma eventual base para uma ética planetária.
Uma sociedade moderna e democrática se constrói na medida em que vive uma prática de comunicação permanente e alcança seus consensos mediante o diálogo generalizado e o discurso razonado. Esta tendência ética e moral se baseia na confiança na razão e na capacidade de argumentação e de convencimento (BOFF, 2000, p. 59).
Nesse modelo ético, mostra-se um esforço construtivista notável, quer dizer, a preocupação de somar perspectivas, elaborar consensos, estabelecer diretrizes de coordenação de interesses e regras do jogo ético-social.
Há, todavia, um limite no projeto emancipatório de Habermas, que atinge a questão ecológica, o reducionismo antropocêntrico. “Na verdade, no seu projeto, a natureza não entra no novo pacto social mundial, porquanto ela e os demais seres são considerados como meros objetos da atividade e da discursividade humana” (BOFF, 2000, p. 61).
O fato é que para Boff, ao propor “um pacto social universal”, de salvação à Terra ameaçada, compreende que a natureza, os animais, as plantas e outros organismos vivos são vistos como novos cidadãos que compõe a sociabilidade humana ampliada. “Somente compreendendo assim a natureza, associada ao ser humano e à sociedade, poder-se-á pensar numa salvaguarda da Terra e da biosfera” (BOFF, 2000, p. 62).
Outra dificuldade, encontrada no projeto de Habermas, diz respeito à abstração em demasia. Habermas não leva em consideração as grandes maiorias, apenas propõe um processo de dialogação global entre os blocos norte-sul, entre os continentes, nações e etnias, religiões e filosofias, no sentido de garantir o direito à vida a cada cidadão terrestre.
Além disso, devemos notar outros dois fatores: 1. o modelo de Habermas está assentado sobre a experiência centro-europeia de construção da ação comunicativa, não partindo de uma base mais baixa e ampla, lá onde se situam as grandes maiorias da humanidade que precisam ter garantido seu direito de ser e de se expressar. Todavia, dentro do processo geral de hominização, socialização e globalização, deve-se garantir a cada povo o direito de poder continuar a existir como povo, com sua própria cultura; 2. importa chegar a consensos mínimos com referência à satisfação das necessidades básicas de comer, de vestir, de morar, de lazer, de ter saúde, de trabalhar e de se comunicar com outros seres humanos. Disso percebe-se que a proposta de Habermas novamente apresenta dificuldade, uma vez que propõe apenas a razão como soluções para as dificuldades humanas.
O fato é que uma sociedade racionalizada comunicativamente não tem condições, pela pura razão, por mais dialógica que ela seja, de assegurar um horizonte de esperança e de confiança para a humanidade. Junto com ela, precisamos resgatar outros exercícios da razão que se abrem para uma óptica mais ampla, base para uma ética melhor fundada. Boff (2000, p. 64) aponta que o equívoco de Habermas partiu do pressuposto de que a sobrevida do planeta Terra está garantida, mas hoje, sabemos que não está.
Sendo assim, preconiza, não obstante as diferenças doutrinais e os caminhos espirituais diversos, a religiões convergem em alguns pontos, decisivos para um ethos mundial, como enfatizou Hans Küng:
Todas essas perspectivas, profundamente humanas, são elaboradas no interior das religiões e das tradições espirituais. Elas são em si mesmas práticas éticas e impregnam a consciência de motivações poderosas para que as pessoas se disponham a seguir apelos éticos, por mais onerosos que se apresentem, e conferem-lhes a satisfação interior de estar em conformidade com os apelos do coração e com as interpelações que nascem da realidade global.
Partindo dessa parte maior, podemos nos abrir a todos os demais, sentindo a urgência das mudanças necessárias, capazes de garantir uma efetiva inclusão e universalidade. Deixando-os de fora, teremos discursos éticos seletivos, encobridores, não universalizáveis e abstratos (BOFF, 2000, p. 85).
Deve-se notar que a ética possui um inegável caráter messiânico, na medida em que ela intenciona salvar vidas, a enxugar lágrimas, a despertar a compaixão e a incentivar a colaboração para que todos se sintam filhos e filhas da terra e irmãos e irmãs uns dos outros (BOFF, 2000, p. 88).
Esses são os princípios norteadores do livro de Boff. Há algumas questões que devem ser mais bem discutidas, sobretudo quando ele trata das religiões. Não pode ser esquecido que se trata de um autor influenciado pelo seguimento teológico da libertação. Consideradas essas questões, trata-se de um relevante texto nas discussões da ética, com o viés das discussões que tratam a respeito do meio ambiente, da religião, dentre outras temáticas.
Resenhista
Edson Pereira Lopes – Diretor da Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UPM. E-mail: enttlopes@gmail.com
Referências desta Resenha
BOFF, L. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasília: Letraviva, 2000. Resenha de: LOPES, Edson Pereira. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos, de Leonardo Boff. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v.9, n.2, p. 224-230, 2011. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.