Eterna Vigilância, escrito por Edward Snowden, é um livro autobiográfico que narra o percurso que levou o ex-agente da Agência Central de Inteligência (CIA) e da Agência Nacional de Segurança (NSA) americanas a se transformar num dos mais emblemáticos whistleblowers do século XXI. Lançado em 2019, manteve-se durante semanas como um dos mais vendidos em diversos países, impulsionado pelo próprio governo americano ao anunciar que seria recolhido na tentativa de impedir a divulgação de dados sigilosos. Todavia, o livro não apresenta revelações que já não tenham sido publicadas pela imprensa. A grande novidade da obra em si é o esforço para ordenar e justificar, na forma autobiográfica, as ações de Snowden ao longo de uma trajetória de vida.
Organizado em três partes, o livro conta ainda com prefácio, agradecimentos e uma breve biografia do autor. Snowden justifica a autobiografia como uma resposta à ascensão de um sistema de vigilância da internet que se teria expandido no refluxo do ataque às Torres Gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Em decorrência desse novo contexto político, também teria sido permitido que jovens trabalhadores terceirizados da área de tecnologia, como o próprio Snowden, fossem alocados para atuar nesse sistema de vigilância. O texto detalha o entrelaçamento desse processo institucional com a própria experiência de trabalho de Snowden na CIA e na NSA.
A primeira parte da autobiografia abarca as memórias de infância e adolescência de Snowden e constrói a imagem de que, ainda muito jovem, ele já estaria destinado a se transformar em um hacker. Contudo, o que se destaca mesmo na narrativa desse período da juventude é sua resposta pessoal ao chamado patriótico no imediato pós-11 de setembro, que o teria motivado a se alistar no exército para combater o terrorismo. Snowden estabelece ainda um paralelo entre suas memórias e o processo tecnológico que rapidamente impulsionou o desenvolvimento da internet na década de 1990 e que “alterou irrevogavelmente o curso da minha vida” (p. 40). Dessa forma, situa a si mesmo num período de transição do mundo analógico para o mundo digital, que também viria a reconfigurar os sistemas de espionagem que vigoravam desde a Guerra Fria.
Há um esforço visível de Edward Snowden para estabelecer uma longa linha genealógica da presença da sua família em território americano. Com ares de patriotismo, afirma que sua família teria participado dos momentos mais marcantes da história americana, incluindo a Revolução Americana, a Guerra Civil e as duas guerras mundiais: “minha família sempre cumpriu o seu dever” (p. 23). Esse patriotismo familiar é por ele realçado num esforço para, de certo modo, rebater as acusações de que seria um traidor, um agente duplo ou mesmo antipatriótico, pelo fato de ter entregado ao jornalista Glenn Greenwald documentos secretos das agências de inteligência americanas. Esses documentos foram divulgados com imenso destaque ao longo de 2013, por meio de uma série de publicações do jornal britânico The Guardian e de diversos outros jornais do mundo todo.
Na segunda parte do livro é que encontramos as informações acerca das práticas de vigilância da internet. Não há grandes revelações. Contudo, Snowden apresenta detalhes muito relevantes sobre do funcionamento dos serviços de inteligência dos EUA. Atesta, por exemplo, que boa parcela da inteligência americana está nas mãos de empresas terceirizadas, que, por intermédio dos seus funcionários, possuem acesso completo e irrestrito aos dados privados de milhões de pessoas mundo afora. Em alguns casos, esses terceirizados possuem mais acesso que os próprios funcionários do governo, como era o caso do próprio Snowden. Ainda nesse capítulo, descreve sua rotina de trabalho na CIA e seu treinamento para atuar como adido nas embaixadas americanas.
O ponto de inflexão em sua carreira, conforme ele mesmo destaca, ocorreu no momento em que foi enviado para a cidade de Genebra, na Suíça, e, a partir daí, temos o relato de sua experiência num contexto em que a espionagem digital começava a se sobrepor à espionagem convencional, visto que era mais segura e ágil do ponto de vista operacional. Mas seria no ano de 2009, quando Snowden foi para o Japão, que começaria a colaborar diretamente com a NSA e, paralelamente, a ver com certa preocupação o modo como se desenvolvia o seu trabalho: “foi quando percebi para onde essas novas tecnologias se dirigiam, e que se minha geração não interviesse, a escalada só continuaria” (p. 161). Quando do seu retorno aos EUA, e com permissão de acesso irrestrito às informações, Snowden afirma que começou a pesquisar no sistema da NSA e a se deparar com documentos que detalhavam as práticas de vigilância da internet.
Snowden discorre também acerca do percurso e de alguns dos procedimentos por ele empregados para encontrar e copiar os documentos secretos da NSA. Tais documentos comprovavam que a agência de inteligência realizava a coleta maciça e indiscriminada de informações privadas dos cidadãos por todo o mundo. Após coletados, os dados permaneciam armazenados ad aeternum em gigantescos data centers, podendo ser acessados conforme as demandas do sistema de inteligência americano. Ao constatar que a NSA conseguia obter e utilizar esses dados privados, Snowden afirma ter se aprofundado ainda mais nas pesquisas para entender como o mecanismo funcionava: “eu queria saber exatamente qual era a capacidade de vigilância da NSA” e “como esses sistemas funcionavam tanto técnica quanto institucionalmente” (p. 185).
Nesse capítulo, há também um destaque para dois programas de vigilância: Prism e Upstream Collection. O primeiro coleta dados dos usuários de empresas como Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, Paltalk, YouTube, Skype, AOL e Apple. E não são apenas metadados, mas também e-mails, fotos, conversas de bate-papo (áudio e vídeo), além do histórico de navegação e até mesmo as consultas aos mecanismos de buscas. Por sua vez, o Upstream Collection vai além e captura quaisquer dados diretamente da infraestrutura da rede de internet.
A incapacidade legislativa e judicial americana para barrar essas ilegalidades das agências de inteligência é duramente criticada por Snowden. Como resultado de uma interpretação equivocada das leis, ele afirma que se permitiu a existência até mesmo de “um tribunal secreto que mantinha programas secretos, reinterpretando sigilosamente a legislação federal” conforme as demandas da política americana ou simplesmente para vigiar os seus próprios cidadãos e os de países estrangeiros (p. 198).
Em vista da descoberta dessas informações no sistema da NSA, Snowden faz, em retrospectiva, uma reflexão acerca dos caminhos que deveria seguir para disponibilizar ao público os documentos secretos. Relata em detalhes as estratégias que empregou para contactar os jornalistas que poderiam aceitar o desafio de trabalhar na divulgação desses documentos. A narrativa reforça ainda a ideia de que ele teria agido o tempo todo completamente sozinho e que seu exílio na Rússia não havia sido previamente planejado.
Dentre todos os documentos entregues e já divulgados pela imprensa, Snowden cita mais uma vez o XKEYSCORE, a saber, “um mecanismo de busca que permite que um analista pesquise todos os registros de nossa vida. Imagine um tipo de Google que em vez de mostrar páginas da internet pública, devolve resultados de seu e-mail privado, de suas conversas particulares, seus arquivos particulares, tudo” (p. 235). Esse talvez seja um dos mais invasivos programas de vigilância por ele revelado, pois adentra sem limites a privacidade de todos os usuários da internet. Ademais, é um programa de interesse especial para historiadores e arquivistas, visto que estabelece um novo paradigma no processo de coleta, armazenamento e acesso aos dados em larga escala do passado. Num futuro próximo, virão tais dados a ser legalmente disponibilizados ou “vazados”? Se sim, quais serão as implicações éticas em relação ao uso desses dados por parte dos pesquisadores?
O vazamento de dados promovido por Snowden acelerou a criação da General Data Protection Regulation (GDPR) da União Europeia, que, por sua vez, fez com que o Brasil elaborasse a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ambas são políticas públicas que visam proteger os usuários e minimizar o impacto diante do uso indevido de dados privados. Embora as regulações sejam eficazes para o aprimoramento da governança de dados por parte de empresas e instituições públicas, ainda se faz necessário ampliar o debate e as ações com respeito à forma pela qual as grandes empresas de tecnologia conseguem coletar, extrair e analisar os dados gerados pelos usuários da internet.
Biografias e autobiografias são unilaterais por natureza. A coesão que tais textos operam é sempre incompleta e parcial, por mais que a narrativa possa induzir o leitor ao inverso disso (Bourdieu, 1998). Nesta autobiografia, no entanto, uma leitura que se oriente pelo tema da vigilância digital conseguirá encontrar importantes informações, não tanto sobre o autobiografado propriamente dito, mas sobretudo acerca das políticas do governo americano, que sorrateiramente infringem a privacidade dos usuários da internet e de cidadãos ao redor do mundo. O próprio Snowden tem consciência dos problemas inerentes ao processo de escrever sobre si mesmo, e nesse sentido, como um ex-agente da inteligência americana, sempre se viu obrigado a esconder de todos o que realmente fazia. Com uma autobiografia não seria diferente. Nessa perspectiva, o livro também permite que se coteje a narrativa autobiográfica com um vasto conjunto de publicações jornalísticas que esmiuçaram a vida de Snowden no intuito de encontrar vestígios que explicassem as suas ações.
Em certa medida, Eterna vigilância dá continuidade a Citizenfour, o documentário de Laura Poitras agraciado com o Oscar em 2015.1 Por sua vez, o livro permite ao leitor acessar, em detalhes, o contexto e as circunstâncias que teriam motivado Snowden a compartilhar com o mundo os documentos secretos da NSA. Essas revelações são uma pequena amostra da reconfiguração que o acesso e armazenamento de dados sofrerá num futuro muito próximo. E não seria despropósito afirmar que até mesmo a forma como olhamos para o passado sofrerá uma profunda transformação.
Nota
1 O documentário dirigido por Laura Poitras está disponível em: https://citizenfourfilm.com . Acesso em: 27 dez. 2020.
Referências
BOURDIEU. Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998. p. 183-191.
SNOWDEN, Edward. Eterna vigilância: como montei e desvendei o maior sistema de espionagem do mundo. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019. 288p.
Resenhista
Fabricio Souza – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Brasil. E-mail: contato@fabriciosouza.net
Referências desta Resenha
SNOWDEN, Edward. Eterna vigilância: como montei e desvendei o maior sistema de espionagem do mundo. Trad. Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019. Resenha de: SOUZA, Fabricio. Snowden: da internet livre ao passado vigiado. Acervo. Rio de Janeiro, v. 34, n. 3, p. 1-5, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR/JF]
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