Os homens e as mulheres que trabalham no setor têxtil de vestuário jeans em Toritama (PE) se ocupam de quase todas as etapas de produção: carregam e transportam peças; cortam, costuram e tingem; inventam estilos e vendem sua produção na feira local, por vezes manequins do próprio trabalho. As pequenas oficinas improvisadas nas próprias casas estão dispersas pela cidade inteira: todos trabalham muito e pouquíssimos conseguem “luxar”. Máquinas de costura permanecem ligadas por dez, doze horas diárias e quem não tem uma “facção”, nome dado às oficinas, trabalha na dos outros para um dia poder ter a própria. Eles decidem sobre sua jornada; fazem pausas como querem e não prestam contas sobre a quantidade de peças que confeccionam, já que recebem por produção. Alguns sequer usam camisas, uma solução paliativa contra o calor e ocasião para exibição de corpos: em terra onde falta tempo para o lazer, as linguagens da paquera podem se adaptar às longas horas do serviço. Crianças, gatos, cachorros, periquitos e galinhas transitam pelas facções – às vezes, em convivência harmoniosa; outras, enxotados. O estrepitoso ruído do maquinário compete com trilhas sonoras ecléticas: de ritmos nordestinos ao rap de protesto ou gospel, que às 18 horas toma o lugar da Ave Maria. E se todo o esforço desses sujeitos permite uma única pausa festiva anual, há uma celebração diária e compartilhada por todos: ali ninguém tem patrão. Esse é o atual retrato da produção de jeans na cidade de Toritama, no agreste pernambucano, tão bem pintado em Estou me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar. 1
O documentário é a expressão flagrante de um mundo do trabalho em intenso processo de transformação e mostra como as escolhas desses trabalhadores são acompanhadas de altos custos, pelos quais empenham o que podem e o que não poderiam empenhar: objetos de valor material, como geladeiras ou aparelhos de TV, ou o próprio futuro, que não lhes oferece promessa de direitos, nem garantias na velhice. Para esses trabalhadores, a falta do emprego com carteira assinada, desaparecido de Toritama e em crescente extinção Brasil afora, é anestesiada pelo sentimento de não viverem submetidos ao rigor de patrões – rejeitados como símbolo de arbítrio e exploração. Controlando o próprio tempo de trabalho e dispondo de alguma autonomia sobre o que produzem, eles se percebem como senhores de si: sem patrões para personificar a exploração, eles não se queixam dela, apesar de reconhecerem que o retorno de tanto esforço é reduzido e, às vezes, insuficiente. No exemplo hodierno que vem de Toritama, não há espaço para uma romantização da vida de “trabalhadores sem patrões”; entretanto, é possível extrair dele muitos fios e tramas para compor uma pujante e necessária História Social do Trabalho. O que há de melhor nesse campo ensina, há tempos, não haver amor sem amantes, assim como, portanto, nem exploração sem exploradores e explorados.
Em Toritama, como igualmente em muitas outras paragens do Brasil de hoje, onde pululam as relações de trabalho uberizadas, não há patrões para serem atacados. A tecnologia, por seu lado, se torna uma tábua de salvação sustentada por aplicativos ao alcance das mãos – e das pernas, no caso dos trabalhadores que pedalam para garantir entregas. Os trabalhadores do polo têxtil que se ergueu no agreste pernambucano não atacam as máquinas e seus proprietários, como os têxteis que inspiraram E. P. Thompson, porque suas estratégias de sobrevivência se adaptaram às condições em que eles vivem e às ferramentas ao seu alcance, às vezes com mais, às vezes com pouquíssimos direitos: uma realidade que demanda constante renovação de perspectivas para se compreender a história dos trabalhadores. A atualidade da denúncia expressa no filme, que escancara a precariedade nas relações de trabalho no Brasil de hoje, abre portas para a compreensão deste importante setor da economia brasileira – historicamente, um de seus mais importantes.
Este dossiê se apresenta como uma contribuição ao desafio de entender as características cumulativas e processuais da formação das classes trabalhadoras e da riqueza de suas formas de responder à exploração. Os artigos aqui reunidos oferecem contribuições que convidam os leitores a visitar o passado à luz de toda a fragilidade que se anuncia no presente. Eles estão unidos por uma fibra forte: uma perspectiva de análise que não menospreza nem superestima as ações dos sujeitos analisados.
No artigo de Isabelle Pires e Paulo Fontes, os leitores verão um gerente de fábrica que se deleitava com a capacidade de crianças mal-alimentadas “brincarem” durante o serviço e talvez se surpreendam com a notícia de que essas mesmas crianças, além de trabalhar e brincar, também sabiam reivindicar alguns de seus direitos – especialmente porque os direitos que não as alcançavam não descrevem uma situação de um passado distante e superado. Jormana Araújo mostra que, no Ceará, tecelãs assinaram uma carta em que denunciavam um capataz que as perseguia para agradar aos patrões (“Sua especialidade é roubar nossos salários”) e que, em vez de fazer corpo mole ou recusar o controle patronal, elas brigavam para ter sua produção devidamente computada pela fábrica como prova de sua dedicação. Retadas, essas mulheres também ameaçavam: “Nós estamos dispostas a dar uma lição a esses canalhas”, referindo-se aos mestres que as perseguiam.
Por outro lado, verão que trabalhadores têxteis de Blumenau conviviam com um padrão de “bom trabalhador”, por eles absorvido e que reproduziam com limites. Na falta de outras perspectivas, esses homens e mulheres aceitavam que seus filhos fossem prematuramente introduzidos no trabalho porque precisavam complementar a exígua renda familiar e porque o consideravam legítimo – ainda assim, sempre se lamentavam por precisar interromper a formação escolar dos filhos. Além de reconhecerem que os estudos são uma ferramenta de mobilidade social, esses mesmos trabalhadores não abriam mão das festas juninas. Dentro e fora das fábricas, nas horas de lazer e de serviço, inventavam estratégias criativas de sobrevivência, sem necessariamente causar tensões abertas, como mostra o artigo tão bem costurado de Cristina Ferreira.
O artigo de Cecília Sardenberg sobre o trabalho feminino na fábrica São Braz, em Plataforma, subúrbio de Salvador, apresenta uma pesquisa pioneira sobre as trabalhadoras na Bahia. A autora oferece boas reflexões sobre os vínculos entre gênero e geração nas relações de trabalho e do quanto o fechamento da fábrica no final do século XX afetou toda a comunidade.
O artigo de Marcelo Góes Tavares sobre Fernão Velho, em Alagoas, detalha o funcionamento da fábrica Carmen, cada setor de produção, suas atribuições, as condições de trabalho e tensões entre operários e administração fabril. O autor, a partir de variadas fontes documentais, ressalta o impacto das transformações “modernizantes” na empresa e as variadas formas de resistência desses trabalhadores têxteis, oferecendo um rico estudo de caso.
Este número de Tempo & Argumento oferece uma visão ampla e rica dos mundos do trabalho no Brasil ao longo do século XX, seja pela variedade das realidades regionais estudadas, seja pela amplitude das fontes pesquisadas, que incluem depoimentos, revistas de empresas, jornais de partidos e sindicatos, processos judiciais, entre outras, seja, enfim, pelos diálogos empreendidos por autores igualmente diversos: James Scott, Michel de Certeau, Hanna Arendt, Boris Fausto, Philipe Ariés e E. P. Thompson. A riqueza do compilado de artigos nele encartados é ampliada pela entrevista com o antropólogo José Sérgio Leite Lopes, cuja obra inspira muitas das pesquisas que abastecem o dossiê, além de outras tantas. Numa instigante conversa, Leite Lopes explica como sua agenda atual de pesquisador se conecta com a de seus trabalhos anteriores, e ainda sugere desdobramentos a partir do diálogo com os estudos sobre as relações de trabalho atuais. Apresenta, além disso, importantes argumentos que fomentaram uma premissa cada vez mais estabelecida no campo das ciências humanas: a necessidade de se romper com dicotomias que separam a história em fases ou categorias desconectadas, como as que distinguem o trabalho assalariado do escravo e o trabalho urbano do rural.
Por fim, os organizadores registram que todo o trabalho que resulta neste dossiê foi facilitado pelo apoio diligente da equipe de Tempo & Argumento: o diálogo fluido e profissional, intermediado por Anderson Mendes, foi um grande suporte. Esperamos que, ao final deste dossiê, o leitor compartilhe conosco da percepção do vigor e da atualidade da História Social do Trabalho para compreender as mudanças em curso no Brasil contemporâneo e para uma mais lúcida participação como cidadãos, cidadãs, estudantes e trabalhadores. Uma boa leitura!
Nota
1 GOMES, Marcelo (diretor). Estou me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar. Documentário, 2019.
Murilo Leal Pereira Neto – Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Osasco, SP. lattes.cnpq.br / 2117921097498002. E-mail: mlealpereira@terra.com.br orcid.org / 0000-0001-8013-8007
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro – Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Parnaíba, PI. lattes.cnpq.br / 6163520222612305. E-mail: feliperibeiro@phb.uespi.br orcid.org / 0000-0002-1258-6550
Lucas Porto Marchesini Torres – Doutorando em História Social na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Visiting Scholar na Duke University (Carolina do Norte, EUA). Campinas, SP. lattes.cnpq.br / 6603638109968384. E-mail: lucaspmt@hotmail.com orcid.org / 0000-0003-3352-7434
Organizadores
PEREIRA, Murilo Leal; RIBEIRO, Felipe Augusto dos Santos; TORRES, Lucas Porto Marchesini. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.12, n.30, 2020. Acessar publicação original [DR]
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