Estudos discursivos à brasileira: uma introdução – BARONAS (RED)

BARONAS, R. (Org.). Estudos discursivos à brasileira: uma introdução. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015. 190p. Resenha de MARCHEZAN, Renata Coelho. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2016.

Estudos discursivos à brasileira: uma introdução, organizado por Roberto Leiser Baronas, reúne, com prefácio de Diana Luz Pessoa de Barros e posfácio de Kátia Menezes de Souza, seis estudos sobre o discurso, em diferentes abordagens teóricas, praticadas por pesquisadores brasileiros: a análise do discurso e a semiótica, ambas de orientação francesa, e a análise dialógica do discurso.

O título do livro com a expressão “à brasileira” e o da introdução – “Ciências brasileiras de lingua(gem): teorias de discurso” -, assinada pelo organizador, despertam curiosidade e perplexidade, que vão se resolvendo com a leitura.

Segundo Baronas, a proposta da obra é inspirada, principalmente, no artigo de divulgação científica, Uma teoria brasileira do idioma, de Marcelo Módulo e Henrique Braga (Revista Língua Portuguesa. n. 78, 2012), que dá destaque às pesquisas de Ataliba Teixeira de Castilho, em particular sua Nova gramática do português brasileiro ( São Paulo: Editora Contexto, 2010), e na conferência de Rodolfo Ilari que, no GEL de 2013, homenageia o professor brasileiro Isaac Nicolau Salum, apreciando a originalidade de seu método de análise sintática do texto por meio de esquemas em garfos.

Considerando essas reflexões uma afirmação da “existência não só de uma linguística no Brasil, mas também de uma linguística do Brasil” (BARONAS, 2015, p.16), Baronas detém-se na área do discurso para destacar as “teorias brasílicas do discurso”.

Como se sabe, há correntes na área do discurso, de base francesa, em cuja denominação se costumou acrescentar o adjetivo pátrio como uma espécie de sobrenome que, no entanto – vale lembrar, não é atribuído pelo pai ao filho que nasce, mas a ele já em idade madura, pelo outro, que o institui e legitima. Mesmo assim, parece quase inevitável que, também no domínio do conhecimento, para não dizer da ciência, se respondesse ao chamamento, do nosso contexto atual e suas forças centrífugas, para a afirmação das identidades, das diferenças, das heterogeneidades.

O próprio Baronas reconhece o “tom de manifesto” de sua introdução, em que, fazendo referência à gramatiquinha de Mário de Andrade, defende que nas pesquisas sejamos brasileiros, sem sermos nacionalistas.

Em relação a essa brasilidade, no entanto, a primeira nota de rodapé da introdução é elucidativa e oportuna: “Quando utilizamos a designação Ciências brasileiras de lingua(gem), não o fazemos com o intuito de negar o caráter universal da ciência, mas buscamos dar destaque à singularidade das ciências desenvolvidas por pesquisadores brasileiros no âmbito da linguagem” (BARONAS, 2015, p.15).

E é esse mesmo o objetivo atingido: a compilação de trabalhos indica a singularidade de pesquisas brasileiras já consolidadas na área do discurso. Baronas convida estudiosos que trabalham, em ordem de publicação, com a Teoria do silêncio, de Eni Orlandi, a Semiótica da canção, na esteira de Luiz Tatit, a Semântica do acontecimento, formulada por Eduardo Guimarães, a Teoria dos estereótipos básicos e dos estereótipos opostos, de Sírio Possenti, a Análise dialógica do discurso verbo-visual, desenvolvida por Beth Brait, e a Abordagem foucaultiana do discurso, proposta por Maria do Rosário Gregolin e seu grupo de estudos, o GEADA (BARONAS, 2015, p.22). As reflexões, caracterizadas como introdutórias nessas teorias, oferecem também apurados desenvolvimentos, sempre acompanhados de exemplificação analítica.

O silêncio existe para poder (não) dizer, de Lucília Maria Abrahão e Sousa, assinala que, em As formas do silêncio, o movimento dos sentidos, Orlandi (Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997) abre um campo, na teoria discursiva fundada por M. Pêcheux, para problematizar e refletir sobre as formas do silêncio que operam na constituição do sujeito e do sentido. Nesse contexto teórico mais amplo, e em relação com seus conceitos, entre eles, posição-sujeito e formação discursiva, Orlandi propõe três formas de silêncio: o silêncio fundador, o silêncio constitutivo e o silêncio local. Diferentes modos de significar o silêncio, que a autora do capítulo apresenta e exemplifica.

Em Semiótica e canção: uma paixão brasileira, Flávio Henrique Moraes e Mônica Baltazar Diniz Signori consideram a semiótica da canção, desenvolvida por Tatit (cf. Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo: Escuta, 1994), “um importante e original ramo da semiótica greimasiana”, um avanço na teoria. Assim sendo, com o objetivo de expô-la, percorrem, com rigor e clareza, um caminho teórico que vai das bases da semiótica, principalmente com F. Saussure e L. Hjelmslev, à consolidação da teoria, com A. J. Greimas, às recentes contribuições da semiótica tensiva, de C. Zilberberg, até chegar à semiótica da canção, de Tatit, que, com a marca da coerência teórica, permite descrever conjuntamente a melodia e a letra da canção.

Soeli Maria Schreiber da Silva e Carolina de Paula Machado, em Semântica do acontecimento: princípios teóricos, metodológicos e análises, apresentam o percurso de constituição da Semântica do acontecimento, realizado por Guimarães (Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas, SP: Pontes, 2002), em interlocução, principalmente, com a Análise do Discurso de orientação francesa e com as teorias enunciativas de E. Benveniste e O. Ducrot. Trata-se de uma análise interpretativa dos sentidos, que tem como conceito central a enunciação, entendida como acontecimento histórico, social e político.

Fernanda Góes de Oliveira Ávila e Roberto Leiser Baronas, em Teoria dos estereótipos básicos e dos estereótipos opostos: a piada levada a sério, destacam, da ampla contribuição de Possenti para o estudo do discurso, sua formulação dos estereótipos (Humor, Língua e Discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2010), que desdobra o conceito de simulacro de Dominique Maingueneau e expõe o funcionamento do humor, da piada. Os autores do capítulo buscam explorar a teoria dos estereótipos em análises de uma série de piadas do Joãozinho, conhecido personagem de piadas que circulam entre nós.

No capítulo De presidentes a presidenciáveis: verbo-visualidade na esfera jornalística e político-partidário, Maria Helena Pistori mostra a pertinência de uma análise dialógica da verbo-visualidade. Retoma diversos trabalhos em que Brait (cf., por exemplo, Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana. Revista de estudos do discurso. São Paulo, v. 8, n. 2, p.43-66, Jul./Dez. 2013) propõe e defende essa tese, seja evidenciando a concepção ampla de linguagem do Círculo de Bakhtin, seja elencando os diversos momentos em que, aí, se considera o visual (mas não o verbo-visual), seja investigando os trabalhos bakhtinianos de temática vizinha. Pistori, engajando-se também na análise dialógica da verbo-visualidade, consegue apresentar, no espaço reduzido de um capítulo, uma densa caracterização da análise dialógica do discurso e, igualmente, mostrá-la em atividade, na análise de um objeto verbo-visual.

No último capítulo do livro, Por uma análise arquegenealógica do discurso, Pedro Navarro situa-se no domínio de pesquisa tão fomentado por Gregolin (cf., por exemplo, GREGOLIN, M. Discurso, história e a produção de identidades na mídia. In: FONSECA-SILVA, M. C.; POSSENTI, S. (org.). Mídia e rede de memória. Vitória da conquista: Edições UESB, 2007, p.39-60), o que traz as reflexões de M. Foucault para a análise do discurso. É essa mesma a proposta do texto: examinar o método arquegenealógico como uma possibilidade de estudo do discurso, e explorá-lo em análises de capas de revista. Para tanto, o autor orienta-se por obras de Foucault e expõe a relação que as reflexões estabelecem entre história e poder. Nesse caminho, detém-se em questões como o descentramento do sujeito, a consideração da história como monumento, a constituição de séries enunciativas e os processos de subjetivação.

Os capítulos reunidos na obra mostram, assim, diferentes correntes teóricas que têm o discurso como objeto. Diante dessa diversidade – também tratada, recentemente, em obra organizada por Brait e Souza-e-Silva (Texto ou discurso? São Paulo: Contexto, 2012) -, pode-se perguntar o que possibilita o reconhecimento do campo de estudo, além da unidade conferida pelo nome. Barros inicia seu prefácio refletindo sobre isso: os estudos do discurso “recuperam a instabilidade própria da linguagem”. Situam-se, assim, em um ponto de inflexão da linguística, o da problematização de seus axiomas (manifestados na eleição de um dos pares de suas dicotomias: língua vs. fala, competência vs. performance, enunciação vs. enunciado, linguístico vs. extralinguístico). Continuando a reflexão de Barros, considera-se aí também o questionamento de um nível de abstração que não mais satisfaz. O interesse pelo instável, além do estável, pelo acontecimento (termo que, aliás, está presente na configuração de todas as teorias discursivas aqui mencionadas), além da estrutura, não é, evidentemente, apanágio apenas do objeto discursivo (nem mesmo da disciplina linguística), mas, certamente, se trata de um objeto mais sujeito às instabilidades e, portanto, à necessidade de apreendê-las.

Concordando ainda com as reflexões de Barros, no prefácio (Estudos do texto e do discurso no Brasil. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada. São Paulo, v. 15 (n. especial), p.183-199, 1999), os estudos do discurso no Brasil têm raízes institucionais e retribuem, com a constante formação de profissionais, com produção de incontestável importância para o âmbito do discurso e para a teoria da linguagem, de modo geral. Ao examinar o quadro da área no Brasil, Barros ainda aponta nossa disposição para alargar os objetos construídos, para encarar novos corpora, para inovar os métodos, em outras palavras, para enfrentar as instabilidades. Entende que é assim que temos caminhado, sem criar outra teoria, outro paradigma, mantendo o rumo, em “adequada conciliação entre a novidade e a tradição”.

O conjunto de capítulos, organizados por Baronas, oferece um balanço dos estudos discursivos no Brasil, expondo teorias adotadas, suas interlocuções frutíferas com outros centros, seus desenvolvimentos e avanços. É, certamente, uma obra representativa, que merece leitura atenta dos pesquisadores da área.

Renata Coelho Marchezan – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Araraquara, São Paulo, Brasil; renata_marchezan@uol.com.br.

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