Estudos de Historiografia Brasileira revela o sentido histórico e plural da produção historiográfica no Brasil. Trata-se de uma competente avaliação de percursos, teorias, métodos e autores que, no conjunto, fornece um panorama variado sobre as nossas formas de interrogar as relações dos homens no tempo.
A coletânea, afinal, resulta do I Seminário Nacional da História da Historiografia Brasileira, realizado no IFCH/UERJ em 2008. Neste evento, ficou claro aos participantes que as reflexões sobre a temática cresceram muito nos últimos anos, e que, além disso, fazem parte de um campo de conhecimento específico: a história da História. O livro – organizado por Lucia Maria Bastos Pereira das Neves, (PUC-RJ), Lucia Maria Paschoal Guimarães (UERJ), Marcia de Almeida Gonçalves (UERJ/PUC-RJ) e Rebeca Gontijo (UFRJ) – traduz, portanto, um diálogo instigante entre historiadores de várias gerações e quadrantes brasileiros que se dedicam a pensar a história de seu próprio ofício.
A primeira parte da obra, ao focar nos aspectos teórico-metodológicos da historiografia, constata justamente a história da História como área de pesquisa; que, como tal, passa a ser objeto de crítica e revisão em razão da sua própria historicidade.
Para Lucia Maria Paschoal Guimarães, autora do artigo “Sobre a historiografia brasileira como campo de estudos e reflexões”, a área ganhou mais fôlego e autonomia no Brasil por volta da segunda metade do século XX com trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e Francisco Iglésias, “os exemplos mais representativos de sínteses evolutivas da história da história do Brasil” (2011, p. 22). Hoje, a história da historiografia sinaliza uma evolução progressiva com a multiplicação de publicações, eventos e pesquisadores que não raro têm adentrado algumas questões ainda obscuras para nós.
Os outros artigos desta parte, aliás, se aventuram por uma delas: a hermenêutica. Sobre este tema, vale lembrar o diálogo estabelecido entre “História e hermenêutica: uma questão de método?”, de Guilherme Pereira das Neves e “Entre as madalenas de Proust e o riso sob o guarda-chuva de Bataille: breve reflexão sobre a relação entre história e hermenêutica”, de Verena Alberti: no primeiro caso são desvendadas as dimensões conceituais e epistemológicas da ‘arte da interpretação’, ou daquilo que, segundo o autor, se pode denominar de “experiência hermenêutica”; no segundo são mostradas as relações entre a forma desta experiência com algumas tradições do pensamento moderno. Ao final, a conversa apresenta ao leitor o rendimento historiográfico de métodos e teorias que, à primeira vista, mais pereceriam reservadas a filósofos.
Apesar dos contornos recentes da disciplina, as reflexões sobre a escrita da história no Brasil se originam no século XIX e perduram com fôlego no início do século passado. Historiadores dessa época também pensavam sobre o próprio ofício, e isso pode ser percebido em livros, artigos, inventários, correspondências e memoriais da época que, com o tempo, foram se firmando como referências historiográficas no país. Deste modo, a segunda parte da coletânea propõe uma releitura de autores fundamentais da história da historiografia brasileira. Não, claro, para glorificar o atual “estado da arte”, mas para rever o papel de escritores em certos contextos de produção intelectual.
Valdei Lopes Araujo, por exemplo, analisa no artigo “Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (1808-1830)”, a obra do Deputado José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, indo de encontro aos críticos que relegaram este personagem ao baixo escalão da historiografia nacional: “[Cairu] levantou, coligiu e avaliou todos os relatos de história do Brasil de que tinha notícia, produzindo o que pode ser considerado o primeiro esboço de uma história da historiografia brasileira” (2011, p. 77). Para Temístocles Cezar, autor do texto “Lições sobre a escrita da história: as primeiras escolhas do IHGB. A historiografia brasileira entre os antigos e os modernos”, Cairu, entre outros, foram alvo de historiadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que no caso buscavam “modernizar” a prática da história, pondo-a a serviço, segundo eles, de uma invenção do Brasil; e que, por isso, passaram a se considerar como que precursores de uma “nova” historiografia.
É interessante notar que esses historiadores despertaram interesse nas gerações subsequentes: a começar por Capistrano de Abreu, que segundo o texto de Fernando Amed “Ser historiador no Brasil: João Capistrano de Abreu e a anotação da História Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen”, lia historiadores do Império para entender os afazeres de ofício. Ora, o historiador paraibano, de uma forma ou de outra, era cativado pelo positivismo e pelo historicismo, metodologias típicas do século XIX – como aliás mostra, desde o título, o artigo de Francisco José Calazans Falcon “Capistrano de Abreu e a historiografia positivista: entre o positivismo e o historicismo”.
Portanto, esta série de textos ensina que o diálogo entre essas obras, autores e abordagens inaugura, sobretudo, a diversidade de paradigmas em nossa historiografia, que deve ser levada em conta no âmbito da análise. A despeito da arrogância de grupos e vanguardas que historicamente dominaram os quadros de profissionalização do ofício de historiador.
A terceira parte chama a atenção dos usos sociais das escritas da história, percorrendo o diálogo entre elas com a língua, a etnografia e as identidades no Brasil.
No plano linguístico, Ivana Stolze Lima lembra em “História nacional, língua nacional e ‘povo mesclado e heterogêneo’”, primeiro artigo da série, que após a Independência “a tarefa da constituição de uma história do Brasil tocou em muitos aspectos o desejo de entender o país como unificado pela língua” (2011, p. 169). O historiador do IHGB Januário da Cunha Barbosa, por exemplo, foi um dos redatores da famosa Lei de 15 de outubro de 1827, que aprovou a criação das escolas de primeiras letras e o ensino da língua portuguesa.
Nesta mesma época, etnógrafos – vinculados, quase todos, ao Museu Nacional do Rio de Janeiro – promoveram a secularização do pensamento antropológico no Brasil. Rodrigo Turim, autor do texto “‘Tipos’, ‘primitivos’, ‘decadentes’: escrita etnográfica, secularização e tempo histórico no Museu Nacional”, afirma que essa mudança no paradigma se articulou a uma ampla percepção científica dos aspectos laicos, presentes tanto nas ações humanas como no tempo histórico.
Os estudos de identidade, por sua vez, focam o Brasil dos anos 1950 e 60, sendo tratados por Rui Aniceto Nascimento Fernandes, no texto “‘Estudos fluminenses: a Faculdade Fluminense de Filosofia e a identidade regional”, e por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, no texto “Operando o Nordeste: da região que tem um flagelo a ser extirpado no diagnóstico do discurso da seca à região como uma estrutura estagnada no diagnóstico do discurso do planejamento”. O primeiro apresenta uma reflexão sobre a ‘missão’ dos docentes da Faculdade Fluminense de Filosofia, que nesta época tentavam buscar uma tradição local no passado carioca para “reafirmar valores tidos como vocacionais do estado, aqueles ‘sólidos’ caminhos para o desenvolvimento da região” (2011, p. 218). O seguinte se envereda pela compreensão intelectual e política de Celso Furtado do nordeste brasileiro pelas suas obras, produzidas também nos anos 1950 e 60.
A quarta parte da coletânea, parecida com a anterior, prossegue destacando o papel de percursos autorais, espaços institucionais e construções de suas respectivas memórias e histórias na formação da moderna historiografia brasileira. Marieta de Moraes Ferreira, em “A trajetória de Henri Hauser: um elo entre gerações”, dessa feita, relembra a carreira deste historiador francês, que, influenciado pela “escola metódica” e pela revista dos Annales, desembarcou no Rio de Janeiro, em 1935, para estruturar os cursos de história na recém-criada Universidade do Distrito Federal (UDF).
O artigo seguinte, “A década de 1930: entre a memória e a história da historiografia brasileira”, de Fabio Franzini, põe em xeque a exclusividade de certos cânones da história da História do século passado – Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Para ele, esses autores não eram os únicos no complexo “cenário historiográfico nacional na década de 1930, cuja configuração, em suas linhas mestras, estende-se pelo menos até fins dos anos 1950” (2011, p. 272). Desse modo, pode-se dizer que a reflexão de Franzini dialoga com o artigo “José Honório Rodrigues e a invenção de uma moderna tradição”, de Rebeca Gontijo, que encerra esta parte analisando um caso peculiar das relações entre história e memória: o esforço de José Honório Rodrigues em canonizar a produção intelectual de Capistrano de Abreu.
Neste percurso sugestivo, finalmente, os sete artigos deixam claro que a diversidade do pensamento historiográfico resulta inclusive das condições sociais e políticas do trabalho intelectual; afinal, sabe-se que historiadores nunca foram ‘puros’, mas sempre aliaram profissão com interlocuções, demandas e preferências as mais diversas.
A última parte do livro traz uma interessante reflexão sobre a biografia histórica, sublinhando que o gênero é produzido por historiadores no século XX e XXI de forma renovada, isto é, distanciada da fórmula descritiva da historiografia política oitocentista.
O texto “Em tempos de epidemia biográfica: Octávio Tarquínio de Souza e sua busca por homens históricos”, de Marcia de Almeida Gonçalves, adentra a produção bibliográfica do jornalista que dá nome ao artigo. Bernardo Pereira de Vasconcelos, Evaristo da Veiga, Diogo Antonio Feijó e muitos outros são então descritos por ela como personagens que faziam parte de uma realidade histórica mais ampla, ajudando, deste modo, a melhor entendê-la.
Já no artigo “A biografia de d. João VI: implicações teóricas e metodológicas”, Lucia Maria Bastos Pereira das Neves compartilha seus dilemas e estratégias para elaborar biografias sob o ponto de vista historiográfico. E Benito Bisso Schmidt fecha o livro com o artigo “Os muitos tempos de Gilda: sobre a biografia e estratos do tempo”, discutindo as múltiplas temporalidades da experiência de vida da jornalista Gilda Zamorano Marinho.
De forma geral, a coletânea oferece um contraponto às várias análises teleológicas que ainda hoje apreciam somente as fórmulas atuais e dominantes da escrita da história. Sobretudo porque a história da historiografia não corresponde propriamente à substituição de abordagens ‘velhas’ por ‘novas’, mas ao jogo sempre complexo de aliança e divórcio entre elas. Por isso, Varnhagen lia Cairu, Capistrano lia Varnhagen, Sérgio Buarque lia Capistrano e hoje, buscando-se acolher ou arrenegar, todos eles são lidos.
Daí a força de Estudos de Historiografia Brasileira.
Resenhista
Renato Martins – Doutorando em História pela USP, São Paulo, Brasil. E-mail: renato.a.mrtns@gmail.com
Referências desta Resenha
NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira; GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal; GONÇALVES, Marcia de Almeida; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Estudos de Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. Resenha de: MARTINS, Renato. Historiografia Brasileira no Plural. Diálogos. Maringá, v.16, n.1, 347-353, jan./abr. 2012. Acessar publicação original [DR]
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