Estudo dialógico-discursivo da canção popular brasileira – CARETTA (B-RED)
CARETTA, Álvaro Antônio. Estudo dialógico-discursivo da canção popular brasileira. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2013. 217 p. Resenha de: MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.2 São Paulo July/Dec. 2014
O livro de Álvaro Antônio Caretta resulta de seus estudos de doutoramento e apresenta inegável contribuição em, pelo menos, dois domínios: teórico-metodológico e histórico-cultural. Tais domínios estão inter-relacionados em sua discussão, portanto, os destaques ora feitos não devem ser lidos como eixos estanques, mas interdependentes, para garantia de compreensão da originalidade do estudo.
O título da obra – Estudo dialógico-discursivo da canção brasileira – dispensa subtítulo e indica metonimicamente aquilo que é tratado e desenvolvido ao longo dos cinco capítulos, além da Introdução e da Conclusão. Acrescentem-se, ainda, uma trajetória bibliográfica listada ao final, bem como uma preciosa relação das 55 canções citadas no estudo, ambas sinalizando, por um lado, a responsabilidade acadêmica de investigação e, por outro, o valor histórico e cultural daquilo que é tomado como objeto de estudo: a canção popular brasileira.
Como o autor pontua logo na Introdução, em variadas esferas ao longo do século XX, a canção popular brasileira foi valorada diferentemente, sendo, por vezes, cotejada como manifestação estética não padrão, por vezes, reconhecida como gênero de excelência na esfera musical. De qualquer modo, a despeito do juízo que a ela se tenha atribuído e para além de seu caráter prosaico evidente por sua circulação no cotidiano brasileiro, músicos, poetas e mesmo acadêmicos têm dirigido sua atenção para aquilo que se consolida indubitavelmente como um fenômeno estético relevante na construção de identidades brasileiras. Sim, identidades, e não identidade, já que, como bem argumenta o autor ao longo do livro, os movimentos discursivos que dão vida às canções participam de processos variegados e, por isso, refletem a diversidade do que pulula no universo cultural brasileiro e refratam valores de diferentes orientações ideológicas.
No primeiro capítulo, O gênero canção popular brasileira, o autor pondera acerca da construção da canção como gênero discursivo. Com a consolidação das cidades, as manifestações musicais vão se transformando até que se distinguisse a canção popular urbana da folclórica. Assim, a segunda metade do século XV marca o início de um cantar amoroso que se vulgarizaria entre cancionistas populares. No cenário brasileiro, especialmente nos três primeiros séculos de colonização portuguesa, as manifestações indígenas e de escravos africanos misturam-se com as cantigas europeias dos colonizadores, estabelecendo um contexto de fronteiras e de interação estética que propiciam a gênese do que hoje se reconhece como canção popular brasileira. Decisivo para esse acabamento estético é a chegada do gramofone. Como destaca o autor, a “relação entre os músicos populares e a nova tecnologia é condição sine qua non para o estabelecimento da canção popular no início do século” (p.43).
No segundo capítulo, O dialogismo na canção popular brasileira, o autor promove uma importante e original discussão teórica interdisciplinar, articulando os estudos bakhtinianos, que no Brasil têm consolidado uma vertente de análise discursiva intitulada Análise Dialógica do Discurso, a Análise do Discurso de base enunciativa, especialmente aquela desenvolvida pelo linguista Dominique Maingueneau, e a Semiótica de base greimasiana, em particular os estudos brasileiros voltados para textos sincréticos, como aqueles desenvolvidos pelo professor e pesquisador Luiz Augusto de Moraes Tatit. E por que mobilizar diferentes campos do conhecimento? O autor responde: “[esses campos do conhecimento] partem do mesmo objeto, o enunciado, particularmente o linguístico, seja ele o oral, o escrito ou aquele que é objeto de nosso estudo, o cantado” (p.15). Por essa articulação interdisciplinar, o autor não cunha os conceitos, mas constrói duas categorias descritivo-analíticas muito profícuas que são contribuição valiosa tanto para os estudos bakhtinianos, de modo geral, como para o estudo das canções, de maneira mais específica: inter e intradialogismo. No livro, este se define pelas relações dialógicas dentro de uma mesma esfera discursiva – no caso do trabalho, relações entre canções dentro da esfera musical – e aquele pelas relações que se estabelecem entre canções e gêneros de outras esferas. Apesar de serem ali mobilizados especificamente para analisar as teias discursivas e interdiscursivas das canções, os conceitos se mostram produtivos para descrição e análise do funcionamento discursivo de maneira geral, sendo relevante contribuição teórico-metodológica do estudo.
No terceiro capítulo, Letra e melodia na amplificação da canção popular brasileira, o autor demonstra como o inter e o intradialogismo se atualizam nas condições materiais da canção, que necessariamente extrapolam a dimensão verbal. Como o autor destaca, “na canção, as palavras e suas possibilidades estilísticas se voltam para a melodia” (p.122) e, ainda, “o dialogismo entre letra e música, inerente ao caráter sincrético da canção, caracteriza esse gênero discursivo” (p.122). A partir daí, o autor pondera acerca de como a canção também constitui lugar de manifestação plurilíngue, ou seja, lugar de relação entre diferentes vozes sociais, articulando não apenas elementos de língua, mas também aspectos musicais, por exemplo, e os sentidos por eles mobilizados.
No quarto capítulo, A enunciação na canção popular brasileira, os lugares sociais instaurados pelas relações intersubjetivas entretecidas nas e pelas canções são os protagonistas. A partir delas, sempre lembrando que o dizer da canção se dá por meio da articulação de elementos linguísticos e musicais, desenham-se diferentes modos de apresentação do ethos, isto é, consolidam-se imagens do enunciador, como a de malandro, por exemplo, que caracteriza os sambistas cariocas na década de 1930.
Tendo construído o objeto de estudo e desenhado um percurso descritivo-analítico, no quinto capítulo, Um caso exemplar, a canção Dá nela, de Ary Barroso, passa pelo escrutínio de um estudo dialógico-discursivo. Evidentemente não é a única canção analisada no livro. Toda a discussão é recheada de análises e exemplos que pontuam e dão concretude à reflexão teórica empreendida. Neste último capítulo, porém, a canção selecionada é pormenorizadamente analisada, com especial destaque para relações intradialógicas estabelecidas intertextual e interdiscursivamente com o samba Dá nele, do sambista e compositor Sinhô.O caso exemplar funciona, então, como um estudo metonímico da proposta construída.
A maneira como o autor mobiliza a noção bakhtiniana de gênero discursivo e articula com os consolidados estudos em semiótica da canção, em especial da canção popular brasileira, bem como com os estudos em Análise do Discurso de base enunciativa, deixa evidente a originalidade da reflexão teórica e do tratamento metodológico dado à canção popular brasileira. Entretanto, como já pontuado aqui, não é apenas esta a contribuição do estudo. As canções mencionadas e as análises desenvolvidas também convocam uma memória cultural importante para a construção identitária brasileira. Não se trata da memória subjetiva de indivíduos particulares ou de personagens célebres, mas da memória que funciona como um thesaurus brasileiro e que fomenta o conjunto de vetores dos discursos de brasilidade.
Menções à Tia Ciata, Donga, Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa, Vicente Paiva e Jararaca, entre tantos outros, permeiam o livro e destacam personagens memoráveis da história da canção popular brasileira. Semelhantemente, as canções propriamente ditas habitam o estudo, trazendo a ele um caráter também documental de fragmentos da história cultural-musical brasileira. Assim, os versos do samba Camisa listrada, de Assis Valente, da marchinha Jardineira, de Benedito Lacerda e Orlando Porto, por exemplo, deixam entrever não apenas lampejos de uma época como também uma memória brasileira que se constitui na articulação da poesia com a arte melódica. A polêmica que encadeia Feitiço da Vila, Conversa fiada, Palpite infeliz, Frankenstein da Vila e Terra de cego faz saltar ao leitor um agitado diálogo – no sentido bakhtiniano, que recupera tanto a dimensão prosaica do funcionamento discursivo quanto o plano teórico conceitual refinado – de modo a tornar o leitor uma espécie de testemunha das relações interdiscursivas e intertextuais vetores de sentido. Nesse contexto, a análise linguístico-melódica da marchinha Mamãe eu quero não deve surpreender pela apresentação retórica, mas pela articulação teoria-metodologia-história, que afasta uma leitura enfadonha em prol de uma agradável aula acerca das linguagens que, por um lado, mobilizamos e que, por outro, nos constroem na esfera musical.
Em poucas palavras, é possível afirmar que Estudo dialógico-discursivo da canção popular brasileira figura como relevante investigação acerca das relações de linguagem constitutivas de um fenômeno ou, de outro ponto de vista teórico preciso, de um gênero discursivo de destaque na construção da ideia de brasilidade. Sem abrir mão da linguagem acadêmica e do rigor conceitual e metodológico de um estudo responsável e ético, o livro parece travar uma conversa por meio da qual discorrem personagens marcantes e canções inestimáveis. Assim, o leitor poderá aprender sobre este importante ingrediente da historicização brasileira – a saber: a canção popular – e, de lambuja, retornar à infância, lembrar velhos tempos, reviver o que já passou e ressignificar vivências e épocas. Tudo isso a um só tempo pelas lentes desse Estudo.
Anderson Salvaterra Magalhães – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Guarulhos, São Paulo, Brasil; asmagalhaes@unifesp.br.