A publicação de quatro novos volumes da série “Estudios Básicos de Derechos Humanos” dá seqüência ao trabalho iniciado com a publicação, também pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), dos três primeiros em 1994 e 1995 (ver: BELLI, Benoni. “As duas dimensões da promoção dos direitos humanos”, Revista Brasileira de Política Internacional, 39 nº 1, p. 164-171, 1996). Tendo em vista o grande número de artigos que compõem os volumes que acabam de ser lançados, esta resenha mencionará os principais temas tratados e escolherá um ou dois estudos de cada volume para uma apresentação mais detida.
Os quatro volumes publicados em 1996 seguem o mesmo formato dos anteriores, compilando artigos e conferências de especialistas, acadêmicos e “práticos” que atuam na área. O volume IV dedica-se totalmente à reflexão sobre os direitos humanos das mulheres e inclui artigos que discutem diferentes aspectos dessa temática, tais como a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995), o significado da categoria de gênero, os direitos reprodutivos, a participação política e a discriminação contra as mulheres. Sobre os direitos reprodutivos, o artigo de Sonia Montaño (“Los derechos reproductivos de la mujer”) fornece um balanço dos avanços obtidos na Conferência de Pequim e descreve seus pressupostos e limites. A autora enfatiza o papel desempenhado pelos movimentos das mulheres na mudança do valor social conferido à sexualidade e à reprodução. Este seria um dos panos de fundo dos avanços da Conferência e que poderia ser resumido numa fórmula: a separação entre erotismo e fertilidade. Com efeito, a Plataforma de Ação de Pequim reconhece os direitos das mulheres como parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos. Também consagra o direito das mulheres em controlar todos os aspectos de sua saúde, em particular sua própria fecundidade.
O principal avanço apontado pela autora diz respeito à nova perspectiva de direitos reprodutivos: “(…) al haberse adoptado un enfoque de derechos humanos, se supera de manera significativa el reduccionismo demografista o reproductivista que ha caracterizado el debate” (p. 182). Mas os progressos não foram automáticos, como demonstram as dificuldades nas discussões sobre o conceito de família, o reconhecimento das opções sexuais, a questão do aborto, entre outros. A oposição às inovações foi representada pela aliança dos participantes confessionais, sobretudo a Santa Sé, países católicos mais conservadores e países islâmicos. Embora a perspectiva teológica dessa “santa aliança” tenha sido responsável por grande parte das ambigüidades de determinados trechos do documento final, Sonia Montaño avalia que prevaleceu a dimensão laica e, poder-se-ia acrescentar, iluminista, da noção da saúde reprodutiva como parte integrante dos direitos humanos universais.
O volume V abrange assuntos diversos: os direitos econômicos, sociais e culturais; os mecanismos de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas e do sistema interamericano; o direito humanitário e os refugiados; os direitos dos indígenas; etc. O texto de Roberto Garretón, advogado chileno e Relator Especial das Nações Unidas para a situação dos direitos humanos no ex-Zaire (atual República Democrática do Congo), intitulado “La sociedade civil como agente de promoción de los derechos económicos, sociales y culturales”, reconstitui o debate sobre a natureza dos chamados direitos de segunda geração, percebidos por muitos como não merecedores da denominação “direitos”. Garretón tenta demonstrar a superação dessa fase do debate, a partir da constatação de que também os direitos econômicos, sociais e culturais estão consagrados nos documentos internacionais como verdadeiros direitos, ou seja, emanam da dignidade da pessoa humana e são exigíveis perante o Estado. De acordo com o autor, a diferença entre os direitos civis e políticos, de um lado, e direitos econômicos sociais e culturais, de outro, “no es una diferencia de jerarquía o importancia, sino simplesmente de precisión de la tipificación, de la naturaleza de las obligaciones impuestas a los Estados, de coercibilidad y de verificación internacional” (p. 57).
À introdução conceitual, o autor agrega uma discussão sobre a participação da sociedade civil na conquista dos direitos econômicos, sociais e culturais. Durante as ditaduras militares que assolaram a América Latina em anos recentes, as organizações não-governamentais acostumaram-se a exercer o papel de críticas, o que implicava em reduzir suas ações a denúncias e demandas contra o Estado. Num contexto de restauração da democracia representativa em praticamente todo o continente, o autor defende uma nova postura para as ONGs. O campo dos direitos econômicos, sociais e culturais seria particularmente propício para um trabalho conjunto entre Estado e sociedade civil, desde que as ONGs mantenham a independência e evitem os riscos de paternalismo e cooptação. A luta pela superação da pobreza e pelo desenvolvimento sustentado dependeria da contribuição direta da sociedade civil aos esforços despendidos pelo Estado, pressupondo assim a ampliação do papel tradicional que as ONGs desempenharam ao longo da luta pelos direitos civis e políticos sob regimes ditatoriais.
Ainda no volume V, destaca-se o artigo de Fabián Omar Salvioli (“Los desafíos del sistema interamericano de protección de los derechos humanos”). O autor identifica os aspectos do sistema interamericano de direitos humanos que merecem ser mantidos e reforçados e aqueles que necessitam ser criados. O primeiro aspecto a ser mantido é o próprio sistema, que correria riscos em função de seu bom funcionamento, ou seja, sempre há a possibilidade de que determinados Estados procurem esvaziar o sistema para evitar condenações por violações de direitos humanos. Os outros aspectos a manter estão intimamente relacionados com o primeiro: as faculdades da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o valor jurídico da Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem, o acesso ao sistema interamericano, a uniformidade dos órgãos e procedimentos de proteção, as opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as medidas cautelares.
Quanto às faculdades da CIDH, o autor ressalta a importância de garantir suas atividades de proteção e seu status de órgão principal da OEA, mantendo prerrogativas como a elaboração de relatórios sobre países e a possibilidade de realizar visitas in loco para avaliar situações. O trabalho da CIDH, que compreende as violações ocorridas em todos os países membros da OEA, depende da manutenção da obrigatoriedade da Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem. Trata-se do único instrumento que vincula os Estados que não ratificaram nenhum tratado de direitos humanos no âmbito da OEA. Outra característica importante a preservar é o grau de acesso ao sistema de proteção por intermédio de petições dirigidas à CIDH. Enquanto no sistema europeu o peticionário precisa ser a vítima ou seu representante, no marco da OEA qualquer pessoa, grupo de pessoas ou ONG legalmente reconhecida pode apresentar petições individuais sobre casos de violações. Diferentemente do que ocorre no sistema da ONU, a existência de órgãos centrais uniformiza os procedimentos e impede a duplicação de esforços, contribuindo para uma maior eficácia dos mecanismos de proteção. A jurisprudência formada pelas opiniões consultivas da Corte, por sua vez, tem possibilitado uma interpretação segura dos instrumentos de direitos humanos da OEA, o que sem dúvida fortalece a segurança jurídica do sistema. O último aspecto a ser mantido, e se possível reforçado, são as chamadas medidas cautelares para proteger indivíduos que enfrentam perigo iminente de terem seus direitos violados.
Os aspectos que estão a exigir mudanças urgentes também receberam a atenção de Salvioli. O primeiro deles é o fato de que importantes países da região ainda não ratificaram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José), como é o caso dos Estados Unidos e do Canadá. Outro defeito do sistema, segundo o autor, é que a vítima de violações não tem acesso direto à Corte Interamericana, a qual só analisa casos trazidos à consideração pelos Estados e pela CIDH. O terceiro aspecto a melhorar diz respeito ao papel das ONGs, cuja participação tem lugar sem que haja uma atribuição de status consultivo, a exemplo do que ocorre na ONU. Também mereceria ser modificado o papel da Assembléia Geral da OEA, que desde 1980 não condena países específicos, limitando-se a fazer referências gerais à existência de violações na região. Uma maior visibilidade das questões de direitos humanos na Assembléia Geral deveria ser acompanhada de outra mudança fundamental no sentido de conferir à CIDH e à Corte os meios materiais, técnicos e econômicos para realizar a contento seu trabalho. A última recomendação do autor refere-se à necessidade de ampliar a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, a partir da ratificação do Protocolo de São Salvador.
O volume VI é o mais extenso da série e entre os temas analisados destacam-se os seguintes: direitos não suscetíveis de suspensão na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça; direitos trabalhistas; trabalho infantil; refugiados e deslocados internos; administração da justiça; sistema africano de proteção dos direitos humanos; educação em direitos humanos; direitos humanos e diversidade cultural na América Latina.
O estudo do Professor Antônio Augusto Cançado Trindade, que abre o volume VI, trata dos direitos não suscetíveis de suspensão e a jurisprudência da Corte Internacional de Justiça. Longe de interessar tão-somente aos iniciados em direito internacional, o artigo é útil a todos que querem entender um pouco mais sobre a consolidação, e possível ampliação, do chamado common hard core, ou núcleo duro comum, de direitos básicos que não podem ser suspensos, independentemente das circunstâncias. Como aponta o autor, este núcleo encontrou expressão em alguns tratados de direito humanitário e de direitos humanos e tem-se fortalecido pela prática e jurisprudência de órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos. Mas o que muitos não sabem é que a Corte Internacional de Justiça, não obstante algumas limitações, contribuiu, com suas decisões, para a afirmação deste núcleo básico inderrogável. Sem entrar nos meandros dos casos citados pelo autor, bastaria assinalar os seguintes temas tratados pela Corte e que possuem clara repercussão sobre a constituição do núcleo de direitos não suscetíveis de suspensão: contribuição para a cristalização da capacidade processual do indivíduo em direito internacional; reconhecimento de que certos direitos humanos básicos podem integrar o direito internacional geral; a prevalência dos princípios gerais do direito internacional humanitário; preparação do terreno para o reconhecimento de obrigações erga omnes em matéria de direitos humanos.
O artigo de Jaime Ordóñez (“Administración de justicia, gobernabilidad y derechos humanos en América Latina”), também integrante do volume VI, avalia os novos dilemas do processo democrático na América Latina. Uma vez criadas ou restauradas as instituições da democracia representativa, um novo desafio precisa ser enfrentado: o da governabilidade e da legitimação cidadã do sistema. A governabilidade e a legitimidade estariam diretamente ligadas à efetividade social do sistema. O autor ressalta a importância da administração da justiça para a consolidação democrática, visto que um poder judiciário independente, capaz de conferir à cidadania a percepção de plena vigência e realização de seus direitos, eleva a autoestima das pessoas e sua identificação com o sistema democrático. Para Ordóñez, o fortalecimento do poder judiciário e a consolidação de seu papel como garante da governabilidade democrática passa pelos seguintes requisitos: processo de revisão de direitos e garantias na legislação interna quando necessário; modernização da estrutura, organização e funcionamento do poder judiciário; desenvolvimento de meios de informação que ajudem a elevar o nível profissional e a consciência jurídica dos operadores do sistema; capacitação para os organismos da sociedade civil e outros agentes privados e estatais relacionados com a administração da justiça.
O último volume, apesar de conter número menor de textos, cobre igualmente grande variedade de temas, entre os quais destacam-se os seguintes: os desafios do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos; o desaparecimento forçado de pessoas na América Latina; a agenda social da ONU; o direito à informação; direitos das populações indígenas. Sem desmerecer os outros artigos e reflexões, o texto extremamente original de José Augusto Lindgren Alves (“La agenda social de la ONU y la desrazón posmoderna”) por si só justificaria a aquisição do volume VII.
Com base em sua experiência como coordenador da participação brasileira nas principais conferências da década de 90 realizadas sob a égide das Nações Unidas, o autor não apenas fornece dados e informações valiosas sobre o processo negociador dessas conferências, como logra dar sentido a seus principais dilemas e resultados. O ponto de partida é uma análise pouco comum entre aqueles que se ocupam de relações internacionais, mas nem por isso menos valiosa. Nas palavras do autor: “En el período que vivimos, la idea de una ‘posmodernidad’ parece haber extrabasado los campos de la filosofía y de la interpretación sociológica para manifestarse amplia y sólidamente en los fenómenos concretos de la realidad histórica” (p. 168). Mas o autor não compra a idéia segundo a qual o mundo se encontra completamente perdido em meio a um turbilhão capaz de engolir qualquer esperança de atribuir um mínimo de razão às ações humanas. Em vez de adotar uma postura irracionalista, Lindgren procura diferenciar a desrazão presente na realidade contemporânea do sistema de valores que devem orientar a intervenção humana na história. Nesse sentido, sem desconhecer a importância da contribuição dos chamados filósofos pós-modernistas na crítica à utilização da razão para fins de dominação, o autor acredita na atualidade do projeto iluminista de uma razão libertadora, como se o fim da Guerra Fria e a aparente superação das Grandes Narrativas advogada por Lyotard apenas servisse para descortinar a existência de um projeto inacabado: o da modernidade.
No campo das relações internacionais, a agenda social da ONU, com seu conjunto de grandes conferências, ofereceria uma alternativa racional e viável “(…) a los particularismos retrógrados y a las tendencias centrífugas de la ‘posmodernidad’, tratando de conferir un sentido humanístico (…) a las tendencias globalizantes de la época contemporánea” (p. 170). Compõem a agenda social: a Rio-92 sobre meio ambiente e desenvolvimento; Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993); Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994); Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995); IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995); Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos Habitat II (Istambul, 1996). A Rio-92 teria sido uma das mais complexas em virtude da variedade dos temas discutidos e de seu caráter muitas vezes eminentemente técnico. Seu principal avanço foi a consagração da idéia de desenvolvimento sustentável e a contribuição à noção de direitos humano a um meio ambiente saudável. A reunião de maior influência da agenda foi a de Viena, que apesar das ameaças concretas de retrocesso, conseguiu adotar consensualmente um documento que consagrou vários avanços, entre eles a reafirmação da universalidade dos direitos humanos, o reconhecimento da legitimidade do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o reconhecimento do direito ao desenvolvimento, e o estabelecimento da inter-relação entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos. A Conferência do Cairo, por sua vez, teve seus resultados ofuscados pelos embates entre religiosos e laicos. De acordo com o autor, enquanto as divergências da Rio-92 se situavam no contexto Norte-Sul e as de Viena no “conflito de civilizações”, a conferência do Cairo foi palco da disputa entre o sagrado e o profano, ou melhor, entre o antigo e o moderno. De qualquer modo, a conferência reconheceu a realização dos direitos humanos, em geral, e da mulher, em particular, como único meio válido e eficaz para controlar o crescimento populacional. O resultado mais importante da Cúpula de Copenhague foi o estabelecimento da inter-relação entre paz, desenvolvimento social e justiça social. A conferência de Pequim, finalmente, pois o artigo foi escrito antes da realização da conferência de Istambul sobre assentamentos humanos, consolidou conquistas anteriores das mulheres, inclusive em temas sensíveis como educação, participação no poder público, direitos sucessórios, e práticas agressivas à integridade física e à liberdade pessoal.
A conclusão do artigo de Lindgren Alves oferece uma advertência quanto à ascensão de diferentes tipos de fundamentalismos: “Diante del carácter ‘fundamentalista’ del liberalismo capitalista vigente, donde lo rico es asimilado a lo bueno y lo pobre a lo malo, no causa sorpresa la proliferación, tanto en el mundo en desarrollo como en la orilla y en el seno de las sociedades afluentes, de otros fundamentalismos (…). Todos son equiparables en el desprecio por los derechos ajenos y por los ideales ilustrados de la modernidad occidental, jamás implementados con consistencia universal por el mismo Occidente” (pp. 199-200). Não seria exagero afirmar que esta conclusão sintetiza o sentido das outras contribuições dos quatro volumes aqui resenhados, visto que todas, cada uma a sua maneira, refletem a busca pela realização dos ideais universais dos direitos humanos como antídoto contra o espectro dos fundamentalismos que insiste em assombrar a humanidade neste fim de milênio.
Resenhista
Benoni Belli
Referências desta Resenha
STEIN, Laura Guzmán; OREAMUNO, Gilda Pacheco (compiladores). Estudios Básicos de Derechos Humanos IV. San José: IIDH, 1996. PICADO, Sonia; CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; CUÉLLAR, Roberto (compiladores). Estudios Básicos de Derechos Humanos V. San José: IIDH, 1996. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; MOYER, Charles; ZELEDÓN, Cristina (compiladores). Estudos Básicos de Derechos Humanos VI. San José: IIDH, 1996. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto et allii (compiladores). Estudios Básicos de Derechos Humanos VII. San José: IIDH, 1996. Resenha de: BELLI, Benoni. Direitos Humanos e desafios contemporâneos. Revista Brasileira de Política Internacional, v.40, n.1, 1997. Acessar publicação original [DR]
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