Inicio esta resenha apresentando brevemente o seguimento doutrinário – o Espiritismo – que fundamenta o gênero literário (romance) da obra “Estrela de Luz”, bem como um sucinto histórico deste livro e dos seus autores, Izoldino Resende e Ismael, visando à assimilação do contexto geral da elaboração do manuscrito para, posteriormente, explanar o teor dos escritos.
O Espiritismo se notabilizou por ser conceituado como uma ideologia pautada na religião, na filosofia e na ciência, disseminando seus princípios especialmente pela literatura, por vezes, entendida como ficção. Nesses termos, parece contraditório à academia estudar obras de cunho Espírita, uma vez que o ceticismo acadêmico pode questionar a relevância literária dessas publicações, sobretudo, das produções obtidas por meio do mecanismo da mediunidade1, ou seja, pelo intercâmbio entre o plano espiritual e o plano físico, que elimina as fronteiras entre os “vivos” e os “mortos”2.
Porém, desde o início do século XX, o Espiritismo brasileiro ascendeu em gradativa adesão até a atualidade, e surgiram livros romanceados que intencionam desmistificar as representações que envolvem o bem e o mal. Através de protagonistas e antagonistas espelhados nas civilizações materiais ou etéreas, os acontecimentos são descritos e os créditos são atribuídos a todos os envolvidos na composição, constando tanto o nome do medianeiro como o nome do missivista espiritual – reconhecido pelos espíritas como o real autor dos escritos.
Estrela de Luz não se apresenta diferente da historiografia literária Espírita, visto que é assinada pelo médium Izoldino Resende e pelo espírito Ismael. A obra foi lançada em agosto de 2021 na versão Premium, sendo a 13ª edição que, até a publicação anterior, atingiu o montante demais de 100.000 cópias. A primeira tiragem ocorreu no ano de 2015. E, por conta da soma de exemplares lidos, infere-se ter despertado o interesse de espíritas e/ou a curiosidade dos simpatizantes.
Resende – o autor físico, declarado e reconhecidamente analfabeto – parece contradizer os preceitos de letramento e incentivo ao estudo por meio da leitura que estão fortemente incutidos no Espiritismo, uma vez que se valeu da própria faculdade mediúnica para trazer as narrativas interdimensionais. Tal intercâmbio ocorreu por meio da psicofonia, tipologia mediúnica que se faz por meio da verbalização do que é ouvido e/ou visualizado. Desta forma, o mesmo registrou os relatos em gravações de áudios que, posteriormente, foram transcritos por terceiros para o formato texto, construindo, assim, a “literatura psicofônica”.
À vista disto, Ismael – o autor espiritual – alerta que teve dificuldades para transmitir as mensagens ao medianeiro em função das suas limitações para escrever e ler, embora isso não tenha configurado como empecilho para a comunicação do essencial3. O espírito arauto se apresenta como seguidor contemporâneo de Jesus, não tendo em seu nome a mesma evidência dada a tantos personagens que integram os registros bíblicos. Este dado coaduna com a afirmação de que “nem todos os autores espirituais são figuras conhecidas. Muitos deles são espíritos historicamente anônimos, […] são protetores espirituais que permitiram aos médiuns chegar a essa forma de criatividade literária.”4
Sobre o conteúdo da obra, esta remete à preparação do planeta Terra para a chegada de Cristo neste orbe. As informações contidas guardam detalhes sobre as questões extraordinárias que envolveram este insigne momento para a humanidade correligionária do Cristianismo. O enredo não segue uma cronologia exata, dando saltos que levam ao retrocesso histórico da vida de Jesus e seus seguidores, enquanto encarnados e como espíritos. A trama trafega por dois planos: o espiritual, um mundo denominado Estrela de Luz, que dá título ao livro; e o mundo material terrestre, na antiga Palestina.
Contendo 48 capítulos, principia elucidando uma das mais conhecidas e questionadas passagens da Bíblia, a transformação (ou magnetização) da água em vinho, solicitada por Maria ao Seu filho Jesus no evento das Bodas de Caná5. No decorrer, Ismael depõe sobre o que vivenciou ao transitar entre os planetas Terra e Estrela de Luz – componente do Sistema Estelar de Capela – em realidades diversas como pessoa física efêmera, e em existência única como espírito eterno. Traz à tona relevantes pilares do Espiritismo, tendo em conta a pluralidade dos mundos habitados, a reencarnação, a imortalidade da alma e a comunicabilidade dos espíritos.
Temas exaustivamente discutidos pelos Espíritas são amplamente abordados, a exemplo das revelações: a primeira, a Lei Mosaica; a segunda, o Cristianismo; e, singularmente, a terceira, a Boa Nova. Esta última é considerada referencial para a Doutrina Espírita que tem como pedra angular o cientificismo albergado nas cinco obras de Allan Kardec – pseudônimo de Hippolite Leon Denizard Rivail (1804-1869), professor e pesquisador francês apregoado como codificador da Doutrina Espírita em suas obras O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Infernos e A Gênese.
Para além, tópicos de alta complexidade também são elencados, como os processos de cura das enfermidades; a evolução dos seres elementais da natureza; a caracterização das zonas umbralinas e seus passantes, incluindo a figura de Judas; os encontros e desencontros entre almas afins; o trabalho incessante para a evolução moral das civilizações, os processos de refazimento e reajustes para a ocorrência do ciclo de encarnações. Ícones do Evangelho, tais quais: João, Lucas e Paulo, dentre outros, conhecidos pelos cristãos ou até então ignotos, integram as referências. Estas também incluem personalidades históricas comumente presentes e consagradas no cenário Católico, a exemplo do anjo Gabriel e de São Francisco de Assis, demonstrando a ecleticidade do registro literário, não obstante a presença deliberada da vertente Espírita em toda a alegação.
A versão Premium foi assim denominada por se estendida, assomando acrescida de comentários que abarcam um panorama geral a respeito da exposição. Desta forma, toda a obra expressa este ineditismo que busca nortear a leitura cogitando o exercício do pensamento crítico-reflexivo. Para cumprir este propósito, uma palavra-chave intitula o final de cada capítulo, remetendo e argumentando sobre o assunto tratado no discurso que a precede, transpondo para a atualidade explanações relacionadas aos expostos de Resende e Ismael.
Estrela de Luz – Edição Premium/comentada – impressiona não somente pela inusitada história que permeia a concepção da obra, mas também pela coerência e coesão de conteúdo do manuscrito, partindo do pressuposto do iletramento de Resende em parceria com Ismael (em espírito). Embora o burilamento no processo editorial de textos seja uma prática vigente, eticamente deve ser isento da iminência de alterar a acepção do constructo, devendo manter a autoralidade. Para além, complementando as chamadas contidas na temática central do romance, os comentários expostos de forma pragmática ampliam o potencial de entendimento e o caráter de autoajuda, auxiliando, assim, na intenção de provocar a evolução do comportamento humano – notadamente incutida na explanação.
Notas
1 Silva; Silva, Quem lê livros espíritas?, p. 3.
2 Aubrée, Entre história e mito: a dinâmica da literatura espírita no brasil, p. 147.
3 Resende; Ismael, Estrela de Luz, p. 466.
4 Aubrée, Entre história e mito: a dinâmica da literatura espírita no brasil, p. 150.
5 Resende; Ismael. Estrela de Luz, p. 24.
Resenhista
Márden Cardoso Miranda Hott – Universidade Federal de Minas Gerais. http://orcid.org/0000-0002-2791-8677
Referências desta Resenha
RESENDE, Izoldino, ISMAEL. Estrela de Luz. Santa Luzia: Chico Xavier, 2021. Resenha de: HOTT, Márden Cardoso Miranda. Fulguras de um áster. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia. Morrinhos, v. 14, p. 183-186, fev./jul. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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