Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível | Helois Helena Meirelles dos Santos

O livro Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível, é fruto da tese de doutorado em Educação da historiadora e pedagoga Heloisa Helena Meirelles dos Santos1 , intitulada Esther Pedreira de Mello: Múltiplas faces de uma mulher (in)visível (1880-1923), defendida em 2014. Publicada em 2017, a presente obra, aqui resenhada, tem como objetivo principal dar visibilidade às múltiplas faces de uma educadora que viveu no final do século XIX e início do XX, fruto de um silenciamento na História, em especial, na historiografia da educação brasileira.

Seu nome, como destacado no título, é Esther Pedreira de Mello. Nascida em Cachoeira, no sertão da Bahia, em 1880, filha de D. Clara Pedreira de Mello e do advogado Dr. Isaias Guedes de Mello, a biografada estudou na Escola Normal, no Rio de Janeiro, em 1897 e exerceu, posteriormente, diversas atividades sociais, tais como: inspetora de ensino (1903), Diretora da Escola Normal (1920), editora de periódicos destinados ao magistério, dentre outras. Dessa maneira, como a educadora pode diferenciar-se das mulheres de seu tempo? Como a personagem narrada teria conseguido ocupar um cargo como inspetora escolar e dirigir a Escola Normal, período em que adentrar a Instrução Pública não era cabido à uma mulher, “tidas como ardilosas, perigosas até, se não demonstrassem subserviência aos homens” (SANTOS, 2017, p. 27)?

Essas foram algumas das questões pensadas por Heloisa, que, de maneira original e instigante, privilegiou os periódicos cariocas da época para contar a trajetória dessa educadora, permitindo investigar e interpretar as representações sociais de intelectualidade do magistério e religiosa visíveis no enterramento da protagonista. Vale ressaltar que a investigação do trabalho dessa historiadora está inserida em um período de grandes transformações na esfera social, política e econômica da cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, que se urbanizava, se industrializava e que pretendia civilizar-se, aos moldes de Paris, refletindo diretamente na vida profissional da protagonista.

O livro, prefaciado por Ana Chrystina V. Mignot, e com a orelha e quarta capa escritas por Lia Ciomar Macedo de Faria e Maria Helena Camara Bastos, respectivamente, encontra-se dividido em quatro capítulos, tendo a introdução nomeada “Peças esparsas no mosaico de uma vida” e a conclusão “Como concluir uma biografia?”. Como inspiração, Heloisa apropriou-se dos recursos de metalinguagem do escritor brasileiro, Machado de Assis, para narrar seu belíssimo texto. E, sem se deixar levar pelos “mitos construídos por verdades intocáveis” (SANTOS, 2017, p. 34) de suas fontes, foge de “linearidades, de cronologias e de caminhos mais usuais” (MIGNOT, 2017, p. 13), começando pela morte da biografada – como salientado pela prefaciadora.

“Quando uma lousa cai” é como se chama o primeiro capítulo, no qual a autora faz referência a um trecho do soneto do poeta português Guerra Junqueiro2, significando a “morte de uma professora que tem na lousa seu instrumento de trabalho” (SANTOS, 2017, p. 45). Esta lousa, ao cair, deixa expor “as representações sociais que [Esther] teve ao longo da vida” (SANTOS, 2017, p. 44). A educadora teve a morte publicizada pela imprensa diária carioca, demarcando a sua importância “na sociedade da cidade do Rio de Janeiro, na Instrução Pública do Distrito Federal, na família, na religião católica e no papel que assumiu no movimento emancipacionista feminino” (SANTOS, 2017, p. 44).

Foi mediante a fotografia de Esther, publicada pelo jornal Correio da Manhã, em 5 de março de 1923, que a autora interpretou as ritualidades da morte, presentes no enterro da biografada. Sendo a fotografia considerada uma das marcas da “modernidade civilizatória” (SANTOS, 2017, p. 49), achava-se que fosse possível imortalizar alguém através da imagem. Nessa perspectiva, Heloisa vai apresentando também, em quais outros momentos, eventos e rituais que a fotografia serviu para legitimar uma determinada representação cultural, social e política na historiografia. Ao longo da interpretação dos periódicos, que publicizaram a morte de Esther, a autora tece, com maestria, a narrativa biográfica de sua personagem.

No mesmo dia da morte da educadora, coincidentemente, também foi enterrado Ruy Barbosa, amigo da família e celebridade intelectual da sociedade. Por conseguinte, também havia exposto suas representações sociais nos mesmos jornais que publicavam sobre a morte de Esther. Logo, a biógrafa recorre às redes de sociabilidades de ambos, para tentar entender até que ponto os sujeitos presentes no ritual fúnebre – “velamento, missa e homenagens póstumas” (SANTOS, 2017, p. 70) – de Esther e Ruy Barbosa se entrecruzaram. A autora observou que professores, sujeitos ligados à Instrução Pública, homens e mulheres intelectuais, representantes religiosos, familiares e também sujeitos públicos – como por exemplo, o Prefeito do Distrito Federal na época, Alaôr Prata –, estavam presentes no enterro da professora biografada. Logo, pertenciam à sua rede de sociabilidade.

Além disso, Heloisa sobressaltou também as contradições a respeito das representações desta mulher. A exemplo disso, foi observado no obituário da professora que, enquanto ainda era aluna da Escola Normal, foi lhe atribuída o cargo de professora de Pedagogia desta instituição. Recorrendo as demais fontes presentes no acervo do Instituto de Educação do Rio de Janeiro (Iserj) para defrontar com o necrológico publicado no Correio da Manhã, a autora percebeu que Esther havia cumprido o currículo do curso, mas não havia prestado os exames práticos dos quais possibilitaria assumir tal cargo, segundo a lei vigente na época. Esse episódio demarcaria “o apadrinhamento da normalista pelo prefeito do Distrito Federal que dispunha de carta branca da Presidência da República para seus atos” (SANTOS, 2017, p. 60), resolvendo nomear Esther como professora sem o diploma concluído.

“Entre nuvens de azul e branco”, título do segundo capítulo, a autora nos convida a mergulhar, metaforicamente, pela sua narrativa, revelando-nos a expressão utilizada pelo jornalista que escreveu o obituário de Esther. Nele, foi destacado o grande número de alunos uniformizados, acompanhados de suas professoras, presentes no velamento e enterro da personagem. A partir desse gancho, a autora baseou-se em antropólogos, dentre eles, Van Gennep (1978) para explicar a dramatização dos ritos de passagem ao descrever e narrar o rito da formação docente de Esther.

Na época, em tais eventos de formatura, era de costume o comparecimento de “autoridades que gostavam de ligar seus nomes à educação e de aparecer em atos públicos […] de modo, talvez a ostentar laços políticos, sociais e, até, econômicos” (SANTOS, 2017, p. 119). Não teria sido diferente na formatura da biografada, que ocorrera em 1902, e contou com a presença do Presidente da República, o prefeito do Distrito Federal, do diretor da Instrução Pública, o diretor do Pedagogium, o diretor do Colégio Militar e o Chefe de Polícia. Todo este ritual é interpretado pela autora, de modo a retratar como foi este dia festivo nos seus mínimos detalhes, desde o momento da receptividade dos convites de formatura e a procura da indumentária adequada para a tão esperada data até os discursos proferidos pelas autoridades presentes.

Neste dia, também discursaram professores e alunos. Segundo o jornal Correio da Manhã, em 5 de abril de 1923, o discurso da aluna Esther teria chamado a atenção do prefeito, no qual destacou ter sido “uma obra séria, ponderada, diferente de tudo que se faz, comumente nesses discursos de despedidas, nas escolas” (SANTOS, 2017, p. 136). Dois dias depois, Esther foi nomeada inspetora escolar pelo mesmo prefeito que se impressionara com sua alocução.

Seguindo pelas linhas desta obra, são apontadas as suas atribuições no cargo ocupado, que antes dela contava com a presença exclusivamente do gênero masculino, e como foi dirigir a Escola Normal do Distrito Federal, em um período em que “poucas eram as mulheres que podiam instruir-se, porque ‘a divisão sexual do trabalho na família as limitava aos trabalhos domésticos e aos cuidados dos seus membros dependentes’” (SANTOS, 2017, p. 114). Por conseguinte, é possível perceber também a rede de sociabilidade adquirida pela biografada, que transitava nos mesmos lugares de nomes de destaque, como por exemplo, Olavo Bilac, Alfredo Cesário de Faria Alvim, Venerando da Graça Sobrinho, dentre outros. E, nesse jogo de mostrar as articulações entre a vida de Esther com tais sujeitos, Heloísa vai traçando uma incansável teia de relações sociais tecida pela inspetora.

Além dos cargos de inspetora escolar, diretora pedagógica do Instituto Feminino e diretora da Escola Normal, Esther também publicou e editou periódicos pedagógicos. Este é o tema do terceiro capítulo intitulado “Pelo firmamento da Imprensa”, no qual a autora se volta a conhecer uma das criadoras3 e editora dos impressos O Estudo (1908)4 e A Escola Primária (1916), que demonstraram ser “uma estratégia pessoal de manter-se legitimada participando de extensa e complexa rede de sociabilidade que [apoiava e financiava] suas ideias” (SANTOS, 2017, p. 195).

A educadora biografada aparece nesse momento como propagadora e difusora de suas ideias pedagógicas aos professores do Distrito Federal e para além dele. Fica evidente que, para Heloisa, isso só foi possível devido à sua legitimidade como pedagoga e de sua rede de sociabilidade já discutida nos capítulos anteriores. Os periódicos citados serviriam, também, como estratégia da intelectualidade brasileira para consolidar a República, na medida em que:

O regime acreditava que, através do professor, e principalmente das escolas, se levaria às famílias brasileiras a modernidade, a ciência, os novos valores civilizatórios. A meta republicana envolvia a educação e, era importante que os educadores levassem a bom termo sua tarefa […] ao propor-se a publicar O Estudo, para veicular seu pensamento pedagógico, o fazia em hora e lugar certo, porque se a meta republicana era preparar professores para que esses “civilizassem”, havia que formá-los e informá-los, de modo que a tarefa fosse bem feita (SANTOS, 2017, p. 204).

Na tentativa de compreender quem financiava tais periódicos, a historiadora precisou amparar-se nos demais estudos sobre revistas pedagógicas5, para interpretar os minuciosos detalhes que essas fontes apresentam: periodicidade, design, custo, assuntos, público-alvo, edições, colaboradores, dentre outros. Deste modo, a autora demonstra que O Estudo, teria uma certa credibilidade, pois, ao confrontar com outras fontes disponíveis, observou que em uma foto publicada pela revista Fon-Fon, em 1908, aparecia o Diretor da Instrução Pública na época, Leôncio Correa, ao lado de suas fundadoras, parabenizando-as pela iniciativa. A presença de tal autoridade reforçava e legitimava a criação do impresso. Quanto ao financiamento, porém, nada indicava que houvesse dinheiro de tal órgão para a revista pedagógica de Esther.

Em contrapartida, a autora vai percebendo outras possibilidades para o custeio de O Estudo, como as doações que a revista recebia de seus leitores citadas nas publicações de agradecimento das edições analisadas; ou, pelos colaboradores-articulistas, que demonstravam ser “integrantes da sociabilidade de Esther” (SANTOS, 2017, p. 211). Ao revelar os nomes que apareciam na revista e os assuntos mais relevantes que esta veiculava, Heloisa vai percebendo, porém, que alguns dos artigos não eram assinados. Seguindo pelos indícios de suas fontes, amparada pelo paradigma indiciário de Ginzburg (1990), a autora entrevê que as publicações sem autoria poderiam ser de Esther. Mesmo que estas não fossem, os artigos ali publicados dos demais articulistas demonstravam, de certa forma, os ideais pedagógicas partilhados/almejados também pela sua redatora. Esta hipótese ficaria mais evidente na interpretação do outro periódico lançado em 1916.

Para fundar A Escola Primária, Esther criou a Sociedade Anônima A Escola Primária que tinha como sócios, Afrânio Peixoto, Dr. Francisco M. Viana e aqueles que eram ou já tinham sido inspetores escolares, fazendo, certamente, parte da rede de sociabilidade de Esther no magistério. Na análise minuciosa desta revista, entrecruzando com O Estudo, a autora vai percebendo as semelhanças entre ambas revistas, que tinham como articulistas intelectuais que traziam “no texto seus ideais de civilidade ao povo por meio dos professores” (SANTOS, 2017, p. 226).

Deixando a representação de Esther no campo intelectual e cultural revelados até então, a autora caminha rumo ao quarto e último capítulo, denominado “Antes […] a oração dos mortos”, possibilitando que seu leitor conheça uma outra face da protagonista: a religiosa. Nesse momento, Esther se transmuda em Irmã Francisca Joana de Chantal, – nome escolhido pela educadora quando ingressara como Ministra na Fraternidade de Santo Antonio no Rio de Janeiro –, referindo-se à aristocrata francesa Baronesa de Chantal, que deixa filhos e marido para seguir o Bispo de Genebra, fundando em seguida a Ordem da Visitação.

Para adentrar na representação religiosa da biografada, a autora recorreu ainda ao necrológico da educadora publicado no Correio da manhã, em 5 de março de 1923, percebendo que muitos eram os representantes de associações religiosas, das quais contavam com a generosa participação de Esther Pedreira de Mello, que estiveram presentes em seu enterro. E como teria sido a sua atuação?

Para tal, Heloisa recorre novamente aos periódicos cariocas e observa que a participação da educadora esteve ligada às repartições de caridade. Esther utilizava-se das facilidades que possuía como “moça rica”, para realizar diversas doações generosas, como, por exemplo, as que enviou às casas de comércio com sede na cidade do Rio de Janeiro durante as epidemias de gripe espanhola (1918) e peste bubônica. Dessa forma, sua atuação religiosa ia de encontro ao pensamento católico da época, que tinha:

[…] no tempo de Esther, por referência das ações dos católicos, servir à Deus, tanto no culto como na pessoa dos indigentes e precisados; a Igreja católica operou em todo lugar onde esteve através de obras de assistência social, e os religiosos, eclesiásticos e leigos, dedicam o seu tempo a servir doentes, órfãos, velhos, enfim, quem precisar de amparo espiritual, moral ou material. Nas calamidades públicas, no tempo de Esther, nas diferentes epidemias que grassavam na cidade do Rio de Janeiro, não houve hesitação de nossa protagonista para buscar aliviar os males de quem precisou (SANTOS, 2017, p. 242).

Ao final, Heloisa Helena Meireles dos Santos se deparou com algumas interrogações sobre a vida de Esther e outras contradições, como a da face religiosa de sua biografada adepta à Igreja – conservadora –, que se opunha a vida agitada de Esther, historiada nos demais capítulos. Nem por isso, a autora deixou de cumprir com o seu objetivo maior da narrativa biográfica, dar à Esther Pedreira de Mello, “uma última homenagem póstuma: visibilidade e publicidade pictórica na História da Educação da cidade do Rio de Janeiro” (SANTOS, 2017, p. 286).

Por fim, o livro Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível, buscou contribuir para ampliar investigações na área da História da Educação, principalmente, no que tange a temática sobre mulheres, tão necessária e importante para se avançar na historiografia. Quem sabe assim, o livro possa estimular cada vez mais outros estudos que visibilizem sujeitos por tanto tempo silenciados ao longo da história brasileira, assim como Heloisa fizera com Esther.

Notas

1 A autora também possui pós-doutorado e mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), na linha de pesquisa “Instituição, Práticas Educativas e História”, sob a orientação da professora Doutora Ana Chrystina Venancio Mignot. Professora aposentada do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (Iserj), da rede da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), criou e coordenou, até janeiro de 2011, o Centro de Memória dessa instituição, o Cemi. Administra e escreve os blogs “Pesquisando História no Rio de Janeiro” e “Centro de Memória Institucional do Iserj”. Em 2007, recebeu “Moção de Relevantes Serviços Prestados pela Guarda da Memória do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro” pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

2 Este poema é lembrado na inauguração do retrato de Esther na escola que levou seu nome seis meses após sua morte em 1923 (SANTOS, 2017).

3 Este periódico contou com outras mulheres para sua criação, como elencado pela autora em sua obra.

4 Periódico pedagógico que circulou de 15 de agosto de 1908 a 10 de julho de 1910 (SANTOS, 2017).

5 Dentre eles, a autora destaca Catani e Bastos (2002).

Referências

CATANI, Denice Barbara; BASTOS, Maria Helena Camara. Educação em revista – a imprensa pedagógica e a história da educação. São Paulo: Escrituras, 2002.

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Prefácio. In: SANTOS, Heloisa Helena Meirelles dos. Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível. Curitiba: Appris, 2017, p. 13 – 15.

SANTOS, Heloisa Helena Meirelles dos. Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível. Curitiba: Appris, 2017.

VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. (Apresentação de Roberto da Matta). Petrópolis: Vozes, 1978.


Resenhista

Shayenne Schneider Silva – Doutoranda em Educação do Programa de Pós-graduação em Educação (ProPEd), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com bolsa financiada pela CAPES. Mestre em Educação e Pedagoga formada pela UERJ. Faz parte do Grupo de Pesquisa “Instituições, Práticas Educativas e História”, coordenado pela Professora Dra. Ana Chrystina V. Mignot. E-mail: shayenness@hotmail.com  http://orcid.org/0000-0002-3859-2852


Referências desta Resenha

SANTOS, Heloisa Helena Meirelles dos. Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível. Curitiba: Appris, 2017. Resenha de: SILVA, Shayenne Schneider. História da Educação. Santa Maria, v.25, 2021. Acessar publicação original [DR]

 

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