A história das mulheres foi, por muito tempo, um campo de estudo ignorado. As transformações políticas e culturais da sociedade foram, aos poucos, alterando essa situação. Passamos a ver, então, como estas são também seres históricos, que vivem e atuam no tempo e como suas jornadas poderiam ser estudadas também sob o olhar feminino e não mais apenas pelo viés da historiografia tradicional, masculina e, por vezes, elitista. Esse processo se deu principalmente pela ação de um movimento social em particular: o feminismo.
A luta das feministas no Brasil ganhou força, sobretudo, no século XX, apesar de ter sido iniciada antes. Trata-se de uma luta que ocorreu de forma lenta e que vem ocorrendo até hoje. Com o intuito de compreender como parte dessa movimentação em prol dos direitos das mulheres se desenvolveu em nosso país, Catarina Cecin Gazele nos traz um belíssimo estudo intitulado Estatuto da Mulher Casada: Um marco na conquista dos direitos femininos no Brasil.
Gazele, que é procuradora de Justiça e professora do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo, escreveu o livro com um olhar de historiadora, que é também um título que carrega. Este importante trabalho desenvolvido pela autora é fruto de sua dissertação de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. O que ocorre nesta obra, é, portanto, uma interessante dança entre História e Direito, como bem assinala a Professora Dra. Adriana Pereira Campos na apresentação do livro, ao dizer que este trabalho pertence tanto à História do Direito quanto à História de Gênero.
Apesar de trazer um conteúdo denso, a leitura é leve e fluida, de forma a não se restringir apenas ao público acadêmico. Apesar de utilizar expressões e conceitos do universo jurídico e do campo da História, a autora obtém sucesso na empreitada de tornar o texto mais acessível ao leitor. Apresentando mulheres como protagonistas da narrativa, destaca sua condição de sujeitos de direitos e não apenas como um simples objeto de pesquisa. A obra não se limita apenas ao público feminino, ao contrário, é capaz de despertar interesse em toda a sociedade, já que seu objetivo é demonstrar como o avanço dos direitos civis das mulheres representava (e representa) também o progresso no campo dos direitos humanos. A pesquisa empreendida pela autora nos evidencia como conceitos arcaicos, vinculados ao pensamento machista, dificultavam esses avanços.
Ao longo de três capítulos, a autora nos guia por um passado não tão distante, do início do século XX, em que a mulher casada era vista como propriedade de seu marido e a instituição do casamento era entendida como uma mera relação patrimonial na lei positivada. Somos levados, então, a familiarizar-nos com as batalhas travadas por mulheres que almejavam a mudança dessa situação, buscando alcançar certo patamar de igualdade em relação aos homens, em especial, com os maridos. Essas lutas desdobraram-se em importante conquista obtida por meio da Lei nº 4.121 de 1962, conhecida como o Estatuto da Mulher Casada. A partir dessa legislação, a mulher casada deixa de ser vista na ordem jurídica como um ser relativamente incapaz, desprovida do controle sobre seus direitos e deveres civis, para ser vista em paridade ao cônjuge, pelo menos no sentido da capacidade civil absoluta.
Para realizar a empreitada, Gazele utilizou como fontes os discursos de deputados e senadores do Congresso Nacional no tocante às transformações do Código Civil de 1916 que levaram ao Estatuto. Além desse material, a autora também realizou entrevista com a advogada Romy Medeiros da Fonseca, figura central na conquista pela capacidade absoluta da mulher casada em gerir sua vida civil.
Com o intuito de ressaltar o papel do Estatuto da Mulher Casada como um documento deflagrador dos direitos humanos da mulher casada no Brasil, a autora abordou a trajetória do movimento feminista nacional e internacional no primeiro capítulo do livro, Gênero, feminismo e direitos humanos das mulheres. Neste capítulo, podemos compreender melhor a condição da mulher na sociedade em diferentes classes e como lentas mudanças ocorreram desde a Revolução Francesa, no século XVIII, por meio de mulheres que ansiavam transformações na seara civil e política que as concerniam. Sabendo que as mudanças do universo feminino ocorreram sempre de forma vagarosa, entendemos o porquê de da advogada Romy ter mantido sua persistência e perseverança até que o Estatuto fosse conquistado.
No segundo capítulo, intitulado O estatuto da mulher casada e a condição jurídica da mulher no Brasil, a autora nos mostra como a mulher perdia seu direito de gerir com capacidade plena seus atos da vida civil ao casar-se. De acordo com o Código Civil de 1916, ao marido era incumbida a função de gerir o patrimônio da mulher, decidir se a esposa poderia trabalhar fora de casa, bem como a chefia conjugal. Para Gazele, isso reduzia a mulher a um acessório a ser controlado pelo cônjuge e a família, a uma relação patrimonial, uma vez que o homem era considerado o único ser capaz de gerir os bens familiares. Empreende-se dos discursos dos parlamentares que as mulheres eram vistas como seres inferiores, por vezes até mesmo débeis, sem instrução, incapazes de tomar decisões, a não ser que estas fossem concernentes aos serviços domésticos.
A autora levanta a hipótese de que, apesar do sucesso do movimento sufragista, capitaneado sobretudo por feministas, no início do século XX, o sufrágio universal alcançado com o Código Eleitoral de 1932 não trouxe consigo mudanças no âmbito civil. Somos presenteados, então, com a luta das advogadas Romy Medeiros da Fonseca e Orminda Bastos, a partir de 1950, em elaborar o projeto que fizesse com que artigos do Código Civil fossem alterados. Essas protagonistas da História alegavam que o Código Civil se mostrava arcaico ao não respeitar os direitos das mulheres e advogavam para que fossem respeitados os documentos internacionais que o Brasil assinara nesse ínterim, sobretudo aqueles que declaravam a proteção da igualdade de todos como um direito humano.
No terceiro e último capítulo, A lei nº 4.121 de 1962 e a nova cidadania da mulher no Brasil, a autora discute o alcance e as consequências do Estatuto. O projeto escrito por Romy, em 1949, fora entregue ao senador Mozart Lago, em 1950. Com grande relutância dos parlamentares, o projeto chegou ao senado apenas em 1960, sendo aprovado em 1962 sob a Lei nº 4.121. A lentidão do trâmite legislativo, segundo Gazele, deuse por conta da contrariedade dos parlamentares e da Igreja em aceitar a mulher como um igual e Romy sabia que a mudança não poderia se dar de forma radical, pois não seria aceita. Com efeito, a aprovação do Estatuto da Mulher Casada eliminou do Código Civil a incapacidade relativa da mulher casada e colocou a mulher como coadjuvante na chefia do lar.
A igualdade entre homens e mulheres iria demorar mais algumas décadas para se consolidar no campo legal, sendo definida com o Código Civil de 2002. A igualdade civil e a isonomia política significaram novos espaços públicos abertos às mulheres casadas, de forma que movimentos femininos em busca de seus pleitos fortaleceram-se. Mesmo com a instauração dos militares no poder em 1964, o feminismo continuou a ganhar força, porém com interesses voltados à garantia dos direitos humanos de homens e mulheres.
O livro revela, portanto, como gênero, feminismo e direitos humanos são correlatos, sendo o Estatuto da Mulher Casada o deflagrador dos direitos humanos das mulheres no Brasil. A isonomia dos direitos civis liga-se a um dos conceitos mais importantes de nossa Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana. Ainda que a cidadania esteja em constante construção, o excelente trabalho de Catarina Cecin Gazele nos mostra como a luta feminista trabalhou e trabalha em prol de conquistas no campo da cidadania para as mulheres como um direito à condição humana. A obra certamente contribui com o debate nacional acerca dos direitos das mulheres no século XX e XXI e ganha ainda mais relevância ao pensarmos o estado do Espírito Santo, cujas estatísticas de violência doméstica contra as mulheres são alarmantes. Pensar o papel jurídico das mulheres casadas no Brasil e as mudanças ocorridas nas últimas décadas constitui, com efeito, importante contribuição para compreender a trajetória cidadã brasileira.
Bárbara Lempé Alonso Scardua – Graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do Núcleo Criminológico sobre a Violência contra a Mulher (FAVENI).
GAZELE, Catarina Cecin. Estatuto da Mulher Casada: Um marco na conquista dos direitos femininos no Brasil. Vitória: Do autor, 2016. Resenha de: SCARDUA, Bárbara Lempé Alonso. Estatuto da Mulher Casada e a cidadania no Brasil: História, Gênero e Direito. Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo, Vitória, v.4, n.8, 2020. Acessar publicação original [DR]
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