Estado, sociedade, culturas políticas e economia no longo século XIX brasileiro | Vozes, Pretérito & Devir | 2022

A organização do dossiê Estado, sociedade, culturas políticas e economia no longo século XIX brasileiro é parte do esforço coletivo de um grupo de pesquisadores vinculados ao Grupo de Pesquisa Política, Sociedade e Economia do Brasil no longo século XIX, cadastrado no Diretório de Pesquisa do CNPQ. O referido grupo, que é formado por docentes e pesquisadores de cursos de Graduação e Pós-graduação de diversas regiões do país, escolheu como uma das suas estratégias de ação a criação de espaços institucionais de discussão e divulgação de pesquisa historiográfica, e tem como foco temporal o longo século XIX brasileiro.

Assim, a intenção do presente dossiê na Revista Vozes, Pretérito e Devir é a de acolher artigos que expressem o resultado de pesquisas articuladas dentro e fora do Grupo de Pesquisa e que, partindo de diversas matrizes teóricas e documentais, desenvolvam trabalhos de cunho historiográfico relacionados aos quatro campos de investigação propostos. Igualmente é necessário enfatizar as disposições das relações entre Estado e sociedade, a vida política, as interações sociais entre os indivíduos, as práticas discursivas, os grupos institucionalizados, a economia política, o processo econômico, os projetos de sociedade e a natureza conflituosa dessas relações. Tudo isso no transcorrer do longo século XIX no Brasil, entendido aqui como o período que abarca as últimas décadas do século XVIII até as primeiras décadas do século XX, tempo que compreende a crise colonial, o processo de independência e a construção da nacionalidade brasileira.

No momento em que buscamos articular algumas palavras que possam representar o significado da coletânea de artigos que formam o dossiê, ficamos gratificados ao perceber que, mesmo diante das dificuldades do tempo presente, muitos profissionais interessados no longo século XIX brasileiro aceitaram o desafio e apresentaram relevantes contribuições. As dificuldades de acesso físico aos acervos documentais, em decorrência do inevitável afastamento social provocado pela pandemia de Covid-19, não foi obstáculo diante do interesse em continuar trabalhando e produzindo pesquisa historiográfica. Os estudiosos da área de história estão aprendendo, a cada dia, a usar a criatividade para se reinventarem e recriarem o nosso ofício. Os acervos digitais tornam-se mais acessados, ganham em volume de documentos disponíveis e quebram as barreiras interpostas diante do novo, do diferente. A digitalização de documentos mostra como esse instrumento é na verdade uma imensa ferramenta, não só por potencializar a preservação do acervo documental, matéria-prima dos historiadores, mas também por ser uma forma de democratizar o acesso às fontes e viabilizar inúmeros trabalhos.

A pandemia de Covid-19 não criou essa realidade, mas acreditamos que ela, por mais paradoxal que pareça, contribuiu para a ruptura de barreiras tecnológicas, ao fazer com que a pesquisa historiográfica alcançasse um novo patamar na sua trajetória científica. Dessa forma, acreditamos que o generoso volume de trabalhos que acudiu ao chamado deste dossiê possibilitou selecionar artigos de excelência, no que diz respeito ao processo de construção da narrativa histórica do longo século XIX brasileiro.

Os sete primeiros artigos tratam do mundo rural no século XIX, a partir do debate sobre o mundo do trabalho, as políticas de colonização e as questões de fronteira. Abre esse bloco o texto de Caio da Silva Batista, intitulado Direito à liberdade e à propriedade no interior de Minas Gerais: Leopoldina, anos finais da escravidão, que traz uma importante contribuição às discussões sobre as ações de liberdade no crepúsculo da escravidão, no Império do Brasil. O autor analisa os processos produzidos na cidade de Leopoldina, na Zona da Mata de Minas Gerais, em 1887. A partir desse fundo documental, Batista debate vários aspectos sobre a sociedade escravista na década de 1880, especialmente as estratégias dos advogados dos escravizados nos tribunais do Brasil, que em muitos casos conseguiram provar a ilegalidade do cativeiro. Também foram trabalhadas as trajetórias de vida daqueles indivíduos escravizados ao arrepio das leis brasileiras a respeito do tráfico ilegal, em vigor no período, a partir das ações de liberdade.

A dinâmica da consolidação de propriedade nas últimas duas décadas do Império do Brasil é o tema do segundo artigo do dossiê, de autoria de Pedro Parga Rodrigues, cognominado A Diretoria da Agricultura, o major e a solicitação de terras paulistas entre 1873-1889. Rodrigues nos traz um excelente exercício da Micro-História, ao analisar o caso da requisição de terras na Província de São Paulo, de autoria do major Sebastião Barreto Pereira Pinto Filho. O autor examina, a partir desse caso, a atuação da Diretoria da Agricultura daquela província. Pedro Parga Rodrigues mostra a excepcionalidade dos pareceres dos funcionários públicos com relação ao pedido do major. O favorecimento desse sujeito permitiu a análise da instrumentalização política da legislação agrária oitocentista por parte dos terratenentes locais.

Ainda sobre a afirmação da propriedade agrária e o universo das famílias pobres do mundo rural no oitocentos, temos o terceiro artigo de autoria de Darlan de Oliveira Reis Junior, intitulado O complexo econômico do Cariri em meados do século XIX: terra, trabalho e a desigualdade social, que discute a questão agrária na segunda metade do século XIX, na região do Cariri cearense. Reis Junior nos aponta os vários contornos e feições que a relação terra-trabalho assumiu nesse período. O autor parte da análise do complexo econômico brasileiro para discutir as atividades no Cariri, mostrando que a riqueza da classe senhorial estava umbilicalmente ligada à apropriação das terras e à exploração dos trabalhadores livres e escravizados, o que estava na base da desigualdade social na Província do Ceará.

As políticas de colonização no Brasil Império foram indissociáveis da geopolítica adotada pela Coroa brasileira. Esse é o tema do quarto artigo do dossiê, de Maria Jose dos Santos e Jaci Guilherme Vieira, cognominado Barão de Mauá e os interesses nacionais e internacionais nas terras da fronteira da Amazônia na segunda metade do século XIX, que é o resultado de vários anos de estudos de dois historiadores que abriram os caminhos da pesquisa sobre o Brasil oitocentista em Roraima. Santos e Vieira investigaram em seu artigo a consolidação do Império brasileiro na fronteira amazônica. Os autores iniciam a sua discussão a partir da Cabanagem e das disputas territoriais que levaram à criação da Província do Amazonas, em 1850, à implementação da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, além da concessão de territórios pelo Governo Imperial para a fundação de colônias agrícolas. Os autores mostram que, entre as décadas de 1830 a 1870, a região enfrentou tentativas de apropriação de territórios pelo Reino Unido – a Questão Pirara no Rio Branco – e a pressão dos Estados Unidos pela abertura da navegação e o comércio no rio Amazonas. Dessa forma, eles mostram que a Província do Amazonas apresentava singularidades geopolíticas que exigiam medidas que permitissem colonizar e consolidar o poder do Império na fronteira do norte, quando o contrato celebrado com o Barão de Mauá, com cláusulas mais flexíveis e vantagens maiores do que aquelas concedidas nas províncias do Sul, foi uma tentativa de implementar essa política.

O debate sobre a colonização também foi o tema do quinto artigo do dossiê intitulado Produção social do espaço imigrante (Brasil Meridional, século XIX): reflexões a partir da metodologia da micro-história de autoria de Octavio Becker Neto e Maíra Inês Vendrame, cuja análise foca na contribuição do método da micro-história italiana nas pesquisas em torno da imigração europeia e da produção de territórios de imigrantes no Brasil oitocentista. Os autores mostram que a sua utilização, centrada em mapear as escolhas de indivíduos, as estratégias de famílias e grupos, propiciou questionamentos acerca das visões homogêneas existentes sobre os estrangeiros radicados em solos sul-americanos. Nesse sentido, Vendrame e Becker Neto apontam que o uso de fontes de natureza diversas, somada ao emprego da perspectiva microanalítica, desencadeou uma renovação nos estudos sobre as migrações transatlânticas do oitocentos.

O tema da geopolítica e colonização também foi objeto do sexto artigo do dossiê, produzido por Paulo de Oliveira Nascimento, cognominado O último ministério do Império: reflexões sobre a Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas em tempos da Lei de Terras (1860 – 1873), que examina esse órgão enquanto uma estratégia do Governo Imperial na modernização da estrutura burocrática do Estado, especialmente na implementação das políticas de colonização. Oliveira Nascimento centrou a sua análise na relação entre essa secretaria e a aplicação da Lei de Terras, que ainda não havia apresentado os resultados almejados em seu projeto, na década de 1860. O autor inicia seu estudo pelos relatórios e decretos da Secretaria de Estado dos Negócios do Império, mostrando as dificuldades da “racionalização” desse aparelho estatal diante das especificidades das províncias e dos interesses dos terratenentes locais.

O artigo de Lucian Souza da Silva, A lavoura do Norte tem necessidades urgentes: a elite paraibana no Congresso Agrícola do Recife em 1878, encerra o primeiro bloco sobre o mundo do trabalho, as políticas de colonização e as questões de fronteira. Souza da Silva inicia a sua discussão examinando o acirramento das disputas políticas entre as elites políticas do norte e do sul do Império do Brasil. Para ele, o chamado “movimento de ideias da geração de 1870” teve um grande impacto na sociedade imperial ao criticar as bases econômicas e políticas do Império. Nesse sentido, a Lei do Ventre-Livre de 1871, que criou as bases para o fim do escravismo, o movimento político e social denominado de Quebra-Quilos, em 1874, e os deslocamentos de multidões de famintos, provocados pela seca de 1877-1879, foram centrais nas preocupações das elites nortistas, diante do protagonismo das pessoas escravizadas e das livres e pobres. A partir desse contexto, o autor analisou as reivindicações apresentadas pelos representantes da elite agrária paraibana, em meio a esse panorama de transformações do final da década de 1870.

Dois artigos do dossiê fazem, cada um ao seu modo, reflexões sobre a cultura e a intelectualidade brasileira do século XIX. Assim, temos o texto de Nicolas Theodoridis, que traz uma importante contribuição ao escolher trabalhar com fontes hemerográficas e, particularmente, com a reverberação na imprensa brasileira dos trabalhos e das ideias do intelectual francês Allan Kardec, a respeito do espiritismo e dos embates religiosos na Europa e no Brasil na segunda metade do século XIX. O período escolhido para análise foi o ano de 1875, momento de intenso debate e de confrontos entre os que acreditavam na doutrina espírita e os que a combatiam como um mal a ser excluído da sociedade. As análises do autor revelam os começos conflituosos impulsionados pelos embates, tão presentes no período, quando ideias e princípios filosóficos definidos como materialistas e espiritualistas povoavam o mundo intelectual francês e muitas rodas intelectuais brasileiras.

O segundo artigo que se enquadra no âmbito das reflexões sobre a cultura e a intelectualidade brasileira no século XIX é o trabalho de Luma Pinheiro Dias, com o título Ser filha, esposa e mãe: os papéis femininos no século XIX nas obras de Nísia Floresta. O longo século XIX no Ocidente constitui momento de intensa problematização das funções e dos papéis que deveriam ser reservados às mulheres na sociedade. A proposta de Luma Dias é entender como algumas mulheres oitocentistas, como é o caso de Nísia Floresta, conseguiram abrir espaços no mundo das letras e passaram, elas mesmas, a protagonizar o exercício de problematização e prescrição de comportamentos e práticas femininas na sociedade desse período.

Na sequência, encontramos o artigo de Talyla Marjore Lira Sousa Nepomuceno e Pedro Vilarinho Castelo Branco, Toda vigilância e as prontas providências, que trata da repressão ao tráfico atlântico de escravizados e seus reflexos na província do Piauí no século XIX. O artigo é lastreado em uma sólida base documental, que se encontra no acervo do Arquivo Público do Estado do Piauí, particularmente documentos da Secretaria de Polícia provincial, formados pelos Relatórios dos Chefes de Polícia, pelos Livros de Bandos e por Editais. Esses documentos fornecem aos pesquisadores pistas sobre as práticas do poder público, no sentido de buscar coibir o tráfico negreiro, mas também dão conta das possíveis formas de burlar a proibição utilizadas pelos interessados na manutenção do tráfico de escravizados. O intenso uso da base documental confere significativa sustentação e credibilidade aos resultados encontrados e expressos no texto pelos pesquisadores.

Fechando o dossiê, encontramos dois artigos que tratam de aspectos da vida política brasileira em momentos cruciais. O primeiro artigo é de autoria de Glauber Miranda Florindo, denominado A Câmara Municipal de Mariana após a Lei de 1º de outubro de 1828: continuidades e rupturas na construção do Estado imperial brasileiro, no qual o autor problematiza as mudanças e os conflitos que envolveram a reconfiguração das câmaras municipais na vida política brasileira. Essas instituições, depois de serem espaço central na vida política da América portuguesa e do Reino do Brasil, e mesmo de desempenharem importante papel no processo de emancipação política ocorrido nos anos iniciais da década de 1820, viram-se colocadas em lugar de inferioridade pela legislação que estruturava o Estado nacional brasileiro. Os Conselhos gerais de províncias, criados em 1828, deveriam assumir o papel de protagonista da vida política no âmbito provincial, em detrimento das câmaras municipais, que se viam agora, relegadas a espaço político secundário. Em alguns lugares, esse processo não se deu de forma tranquila e sem conflitos, como o autor do artigo evidencia, ao mostrar o caso da cidade de Mariana, na província de Minas Gerais.

O segundo artigo com foco na vida política do Brasil Império é o trabalho de Lis de Araújo Meira, com o título O recrutamento militar na visão de conservadores e liberais na província da Paraíba. A autora analisa os embates políticos na província da Paraíba no século XIX, ao abordar aspectos da cultura política do Brasil oitocentista, particularmente das formas de recrutamento militar e de como essa prática era largamente usada de forma arbitrária contra os grupos sociais menos favorecidos, levando em consideração os interesses políticos do grupo que estava no poder, que controlava e manejava a ferramenta do recrutamento militar. A autora usa como fonte documental privilegiada os jornais paraibanos A Ordem e O Reformista, que seguiam orientações políticas opostas, sendo o primeiro conservador e o segundo liberal. Nas páginas dos referidos jornais, a pesquisadora encontrou sustentação para construir o seu argumento, no qual os sujeitos históricos e políticos aparecem como agentes da cultura política do momento, e são percebidos a partir de suas práticas sociais em torno do recrutamento militar, e da forma como esse instrumento era utilizado para promover perseguições políticas aos adversários.

Em sequencia, ao término do dossiê, somos contemplados com três publicações na seção de artigos de livres temáticas. O primeiro deles intitula-se Del resto li facemo gratia… no qual o pesquisador Francesco Santini procura análisar os mecanismos da justiça feudal dos territórios do Colonna de Paliano, no Estado Pontifício, associado à sede senhorial do tribunal de Genazzano nos séculos XVI e XVII. Ao estudar os processos criminais da época, o autor aborda a relação constituida entre o senhor, vassalos e demais subalternos, focando em especial as tensões e conflitos atinentes a tal relação. Em sequencia, nos deslocamos para os de caso de violencia doméstica no interior do Piauí na contemporaneidade. No artigo Cartografando a violência contra as mulheres no sertão piauiense…, de autoria de Ângela Maria M. de Oliveira, é possível nos deparar com um estudo voltado a perscrutar a trajetória de mulheres que se encontram em condição de vulnerabilidade e que sofrem com a violência doméstica em seu cotidiano. Através desta análise, a autoria se volta a apreciar os processos e boletins de ocorrência oriundos da Delegacia de Polícia Civil, no município de Oeiras/PI. Por fim, a 14º Edição do nosso periódico se finda com o artigo Lembranças de luto e de memória. Nele a pesquisadora Marcélia Guimarães Paiva faz uma análise imagética dos santinhos presentes no arquivo pessoal de Filippe Coury Jabour, os quais são apresentados ao leitor como elos memorialísticos que representam, em seu caráter organizacional, a ideia de perda, e, consequentemente, podem expressar o sentimento de luto.

Enfim, nos despedimos desejando uma boa leitura a todos!


Organizadores

Pedro Vilarinho Castelo Branco – Doutor em História. Professor titular na Universidade Federal do Piauí e professor efetivo no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí.

Cristiano Luís Christillino – Doutor em História. Professor associado na Universidade Estadual da Paraíba e professor efetivo no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco.


Referências desta apresentação

CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho; CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Apresentação. Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.14, n.1, p.5-11, 2022. Acessar publicação original [DR]

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