Em setembro de 2013, veio a lume em Portugal o livro Estado Novo e Universidade: a perseguição aos professores, de Fernando Rosas e Cristina Sizifredo. A obra trata de episódios ocorridos durante a Ditadura Militar (1926-1933) e o Estado Novo (1933-1974), nos quais pesquisadores e professores, por razões político-ideológicas, foram afastados do campo universitário luso ou nele impedidos de ingressar.
Em um panorama geral da obra, sobressaem-se dois aspectos relativos a seu conteúdo: a solidez da pesquisa histórica em que se apoia a publicação e seu apoio aos movimentos em defesa da memória dos perseguidos políticos portugueses do século XX. No que diz respeito à forma, destaca-se o estilo fluido, um tanto lacônico e bastante claro da narrativa.
Fernando Rosas é um dos principais especialistas na história do Estado Novo português, com vários livros publicados sobre o tema e mais de 30 anos de atuação na área. Na Universidade Nova de Lisboa (UNL), é catedrático no Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH/UNL) e pesquisador do Instituto de História Contemporânea (IHC/UNL). Cristina Sizifredo é uma jovem historiadora, também vinculada à FCSH/UNL e ao IHC/UNL, atuando, assim como Rosas, nas áreas de História Contemporânea e História de Portugal no século XX.
A origem da publicação foi uma mobilização em defesa da memória daqueles professores e pesquisadores atingidos pela repressão do Estado Novo. Promovida pela Fundação Pulido Valente, pela Fundação Mário Soares, pelo IHC/UNL e pelo movimento Não Apaguem a Memória, a iniciativa contou com o apoio da Universidade de Lisboa, da Universidade Técnica de Lisboa, da Universidade de Coimbra e da Universidade do Porto, onde foram realizadas cerimônias de homenagem à memória daqueles perseguidos políticos, incluindo a inauguração de placas rememorativas. Para distribuição durante as atividades, Rosas e Sizifredo produziram uma brochura, que serviu de base para a redação de Estado Novo e Universidade. No livro, contudo, optaram por ampliar o recorte e incluir os expurgos promovidos durante a Ditadura Militar.
Estado Novo e Universidade é composto por três capítulos, entre os quais se nota certa descontinuidade. O primeiro é eminentemente analítico e constitui o núcleo da obra. Já os outros dois são fundamentalmente descritivos. O capítulo 2, uma “relação dos investigadores e docentes demitidos das universidades portuguesas por razões políticas”, apresenta, além dos nomes, os cargos acadêmicos e, em alguns casos, os decretos de afastamento e dados em notas de rodapé sobre eventuais reingressos. Já o capítulo 3 é composto por um conjunto de notas biográficas dos perseguidos políticos, apresentadas em ordem cronológica. Nele, há uma importante recuperação no plano da forma: a narrativa volta a fluir, reforçando a hipótese de que o capítulo 2 instaura uma ruptura. Embora no capítulo 3 predomine o caráter descritivo das notas biográficas, que bem poderiam ter mantido a linha analítica do capítulo 1, é de se salientar que o último capítulo apresenta uma série de informações de difícil acesso que podem servir como importantes subsídios para outras pesquisas como, por exemplo, no caso da indicação de prisões promovidas pela PIDE.
Se, por um lado, seria desejável maior detalhamento na análise do processo, por outro é inegável que o livro cumpre função de suma importância nos embates pela memória em Portugal, também se constituindo em obra de referência para estudiosos da área.
Nota-se a preocupação dos autores em relacionar os casos de expurgos docentes com seus respectivos contextos, proporcionando ao leitor uma visão processual das mutáveis relações entre universidade, órgãos repressivos e dirigentes políticos ao longo daqueles regimes de exceção.
O levantamento indica a seguinte distribuição na aplicação da medida repressiva ao longo do período: 1927 (nº de expurgos: 1), 1931 (1), 1934 (3), 1935 (6), 1941 (2), 1945 (1), 1946 (2), 1947 (29), 1949 (1), 1962 (2), 1969 (1), 1973 (1). O enfoque recaiu sobre alguns momentos decisivos que resultaram em expurgos docentes, como as “ofensivas” de 1935/36 (p. 44-47) e de 1946/47 (p. 49-52), o episódio gerado pela Concordata entre o Vaticano e a ditadura salazarista em 1940/41 (p. 48-49) e o desenlace da ocupação da Capela do Rato em 1972/73 (p. 52-53).
O livro oferece importante aporte aos estudos de controle social e áreas correlatas, ao apresentar uma tipologia dos expurgos ocorridos em Portugal naquele contexto (p. 12-13): (1) grandes vagas de demissões, decididas pelo Conselho de Ministros e assumidas pelo regime, com função exemplar (e.g. casos de 1935 e 1947); (2) expurgos pontuais, em geral determinados pelo Ministro da Educação Nacional e realizados com discrição (e.g. caso da Concordata); (3) docentes contratados que, por decisão de dirigentes universitários, com respaldo do Ministro da Educação Nacional e baseados em “pareceres da polícia política”, “têm seus contratos interrompidos ou não renovados”; (4) candidatos a vagas na docência ou investigação universitária que, por orientação da PIDE, tiveram seu acesso àqueles postos de trabalho negados. É de se salientar que tal tipologia apresenta notável semelhança com a que poderia ser elaborada com base nos processos de expurgos docentes ocorridos no Brasil durante a Ditadura Civil-Militar.
A obra apresenta também duas grandes contribuições aos pesquisadores vinculados ao campo da História da Educação. Uma delas diz respeito ao fenômeno comumente designado como “fuga de cérebros”. O Brasil foi um dos principais destinos, nos anos 1940 e 1950, para os universitários portugueses expurgados pelo Estado Novo. O caso de António Aniceto Monteiro é exemplar. Angolano de nascimento e considerado “um dos mais brilhantes matemáticos portugueses”, Monteiro passou a trabalhar como professor e pesquisador na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro em 1945, a convite da instituição e com recomendações de cientistas de renome internacional, dentre eles Einstein. Em meados dos anos 1960, também o Brasil forçaria ao exílio alguns de seus mais brilhantes pesquisadores e docentes universitários.
Outra importante contribuição à História da Educação oportunizada pelo livro está nas observações acerca das origens sociais dos universitários portugueses durante o século XX (p. 31 e ss.). Rosas e Sizifredo, apresentando dados que delineiam um perfil fortemente elitista da universidade portuguesa no período, oferecem uma reflexão fundamental sobre os possíveis motivos pelos quais, a despeito da aplicação de medidas repressivas contra algumas dezenas de docentes e pesquisadores universitários, a maior parte dos membros daquele campo não apenas silenciou diante do regime salazarista, mas, em não raros casos, ofereceu seu apoio ativo e integrou altos cargos estatais. Mais um ponto de semelhança entre a Ditadura Militar e o Estado Novo em Portugal e a Ditadura Civil-Militar no Brasil.
Em suma, é notável a importância da obra, como estudo histórico e como crucial subsídio para os movimentos em defesa da memória dos perseguidos políticos portugueses do século XX. Os aspectos formais aqui criticados são evidentemente secundários, em nada prejudicando a significativa contribuição que Rosas e Sizifredo oferecem ao público interessado nos debates sobre o passado recente de Portugal.
Resenhista
Jaime Valim Mansan – Doutorando do PPGH/PUC/RS, Porto Alegre/RS, Brasil. Bolsista CNPq. E-mail: jaimemansan@gmail.com
Referências desta Resenha
ROSAS, Fernando; SIZIFREDO, Cristina. Estado Novo e Universidade: a perseguição aos professores. Lisboa: Tinta-da-China, 2013. Resenha de: MANSAN, Jaime Valim. Os expurgos de professores universitários em Portugal: da Ditadura Militar ao Estado Novo (1926-1974). Diálogos. Maringá, v. 18, n.1, p. 521-524, jan./abr. 2014. Acessar publicação original [DR]
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