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Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa | Antônio Carlos Mazzeo

Uma primeira associação ao título surge de maneira fácil, quase imediata: ao estudar as relações entre estado e burguesia na formação social brasileira, Antônio Carlos Mazzeo remonta à ideia originariamente expressa por Marx e Engels, em seu Manifesto Comunista, a qual serve de epígrafe a esta resenha e norteia nosso entendimento primário dos conceitos utilizados pelo autor ao apresentar suas ideias. Antônio Carlos Mazzeo é um autor marxista, que utiliza, em primeira instância, a análise de Marx e Engels para desenvolver sua apreensão das características da formação histórica da sociedade brasileira.

Trata-se da terceira edição, revista e ampliada, de um livro que ganhou o prelo pela primeira vez em 1989, ano politicamente interessante da história brasileira. Nele, ocorreu a primeira eleição direta para presidente da República, após um período ditatorial sombrio de triste memória, o qual estendeu-se por mais de vinte anos, período no qual a difusão e o trânsito de ideias – nas quais o autor teve seu meio de formação intelectual – era tarefa arriscada, para não dizer temerária. A eleição para presidente daquele ano marcava, em seu zênite, um conflito ideológico claro, do tipo “preto no branco”: um ex-sindicalista aglutinava as forças populares desde uma perspectiva de esquerda, enquanto um subproduto da oligarquia autocrática nordestina, inflado pela mídia e pelo dinheiro dos setores que se locupletaram com a ditadura de 1964, buscava justamente manter, e se possível aumentar, a selvageria do capitalismo no Brasil, ao mesmo tempo em que procurava justamente demonizar seu adversário. Naquela encruzilhada, venceu o Neoliberalismo, credo político e econômico que se espraiaria pela América Latina por toda a década seguinte, deixando sequelas nefastas em todos os seus países, à exceção de Cuba. Naquele contexto, Antônio Carlos Mazzeo lançou o livro, resultado de sua dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo anos antes.

1997 é o ano de uma segunda edição de “Estado e Burguesia no Brasil”. O Brasil, já no terceiro mandato de um segundo Fernando infelizmente parecido demais com o primeiro, encontrava-se em plena “Reforma do Estado”. Tradução: Neoliberalismo escancarado, com privatizações, aberturas comerciais desmedidas, superproteção ao mercado financeiro, ataque aos direitos previdenciários e dos trabalhadores, sucateamento dos serviços e bens públicos, tudo regado a doses generosas de desemprego. Na eleição que ocorreria no ano seguinte, esse segundo Fernando, um representante da aristocracia intelectual uspiana, não teria muita dificuldade em derrotar o que era aparentemente o mesmo candidato de 1989, à esquerda. Este havia inclusive, feito o sacrifício de postar-se à crítica de um plano de ajuste monetário rascunhado pela metrópole e aplicado pela burguesia nacional o qual, à custa de uma estabilidade recessiva, havia praticamente destruído a capacidade de política econômica autônoma do Governo. Isso não impediu que o eleitorado, mesmerizado pela estabilidade do então recém-criado numerário doméstico, aplaudisse o gesto de mão como um grande feito de Caramuru, curvando-se à recessão, ao desemprego e à vulnerabilidade externa. Daí o sacrifício.

Saltemos a 2015, a uma nova edição e uma nova encruzilhada política. No ano anterior, a sucessora do ex-sindicalista-então-político-profissional, reelegera-se para mais um mandato presidencial, dando continuidade a doze anos do projeto de poder do grupo estabelecido em 2003. Claro, para alçar-se ao poder, dentro do modelo político estabelecido pela burguesia e autorizado pelo capital internacional, muito teria de ser mudado ainda na pauta de propostas e ações. Na verdade, apesar de substancial, a emenda foi simples: saíram as mudanças estruturais, como a tributação progressiva, ou a reforma agrária, por exemplo, e entrava uma categórica defesa da propriedade privada, do capital financeiro e dos interesses internacionais, como se pode ler na Carta aos Brasileiros, de 2003. Tudo evidentemente salpicado por algumas políticas sociais para manter a legitimidade do governo junto à sua base popular, é claro.

Mas voltemos a 2015. Seu início observa uma polarização política raras vezes externada na história do país. Ao mesmo tempo, o governo mostra-se hesitante e fraco em meio à exaltação de ânimos, tomada de posições e defesa de interesses. Interesses conservadores e reacionários, ainda que satisfeitos com a política econômica pró-rentista e favorável á exportação primária, perderam a vergonha de espumar em público contra os programas sociais implementados nas últimas duas décadas, derramando xenofobia, racismo e outras patologias da mente e do espírito na mídia e nas redes sociais. É nesse ambiente que surge a terceira edição, revisada e expandida, do livro de Antônio Carlos Mazzeo. Esta é apenas uma das muitas dimensões em que Estado e Burguesia no Brasil pode ser analisado. Tal não aparece em nenhum momento no texto, mas é evidente a uma leitura mais atenta e concatenada à realidade em que se produziu e desenvolveu a obra.

É inegável o senso de premência dessa terceira edição de Estado e Burguesia no Brasil, dada a conjuntura. Aprofundando-se a análise sobre esse caráter da obra, é possível inseri-la nos três momentos de suas edições. Em 1989, pode-se dizer que o objetivo da obra era o de apresentar não apenas a tréplica da crítica do modelo elaborado pelo historiador Caio Prado Júnior à constituição da formação econômica e social do Brasil, mas também realizar um diálogo sopesado entre as vertentes de esquerda que buscavam uma explicação nesse sentido, o que se poderia chamar de uma “teoria da formação econômica e social brasileira”.

Tal objetivo primordial, obviamente, se manteve. Para tanto, Mazzeo busca identificar as características do processo ontogenético da formação econômica e social do Brasil, dentro de uma discussão sobre as formas produtivas que nela se estruturariam, dando o caráter de sua forma superestrutural.

Nesse sentido, é inegável o valor acadêmico da obra, ao adentrar em um dos debates mais ricos da historiografia econômica brasileira. A reafirmação da forma pradiana de ver a formação social e econômica brasileira, da parte do autor, privilegia as categorias de análise que podem ser empregadas não apenas na análise do passado, mas também do presente. A discussão sobre o feudalismo no Brasil foi e é travada por intelectuais de renome dentro e fora da academia. O método tradicional de olhar o passado com vistas à interpretação do presente gera discordâncias e debates calorosos ainda hoje, dadas as especificidades do Brasil colônia como estrutura produtiva. O que nós temos, até a atualidade, são resquícios do escravismo. O instinto opressor do senhor de escravos, a ideia de superioridade imposta ao negro, mestiço e ao índio pelo branco e/ou descendente de europeu, nada mais são que heranças do passado colonial escravista.

Ao mesmo tempo, Mazzeo também realiza um importante descarte de um empirocriticismo à visão pradiana, que somente pode ser explicado em termos de um atávico mal-estar com os desdobramentos a que o entendimento do “Sentido da Colonização” pode causar. Isso é perfeitamente compreensível ao se observar a trajetória intelectual e a carreira acadêmica de Caio Prado Júnior, que somente obteve no final de sua vida o devido reconhecimento de uma academia de mentalidade burguesa. Nessa grande limpeza de área, “à direita e à esquerda”, reside um primeiro grande mérito da obra.

O efeito do tempo sobre a obra de Mazzeo parece aparecer de maneira mais evidente em um apêndice do tamanho de um quinto capítulo, que discorre sobre a teoria da via colonial no desenvolvimento do capitalismo. Ali, o autor parece retornar ao início à primeira vista, fugindo do que seria uma conclusão no quarto capítulo. Mas essa impressão de equívoco logo se dissipa: trata-se de uma reafirmação da tese do Estado Autocrático Burguês no cerne de nossa formação e nos determinantes de nosso desenvolvimento. Ao olhar as características do desenvolvimento da formação da sociedade e economia brasileiras, o autor volta às raízes.

Tais raízes, segundo a proposta de Mazzeo, estariam nas próprias transformações da transição do Feudalismo para o Capitalismo. Portugal foi um dos primeiros estados do chamado Antigo Regime, um Estado caracterizado pela forte ingerência da burguesia, no caso da portuguesa, a comercial. Esta se encontrava ávida por novos meios de obtenção de lucros, elemento que junto às características geográficas terminou por conceder aos portugueses a primazia do Atlântico. À medida que novas rotas foram descobertas, o Novo Mundo foi encontrado. Portugueses e Espanhóis, primordialmente, dividiram a dominação desde, aproximadamente, o território que compreende hoje do México até a parte mais ao sul da América. A iniciativa principal foi a extração de produtos nativos, depois, no caso, em maior parte, português, por não encontrarem metais preciosos tão depressa quanto os espanhóis, a agricultura. Ali se estabeleceu a orientação de nossa formação socioeconômica: aquilo que ficou conhecido através dos trabalhos de Caio Prado Júnior como Sentido da Colonização, qual seja a intenção do ocupante colonizador de extrair recursos o mais rápido e facilmente possível, para que estes se tornassem valor de uso no mercado, conferindo o resultado de seu valor de troca a seus detentores.

A vinda de aventureiros para colonizar a América Portuguesa tinha a intenção de proteger o achado e enriquecer para retornar a Portugal. Não havia interesse nas colônias da Zona Tropical, de sair da Europa para fazer trabalho braçal. O papel da colônia na estrutura econômica era de produzir para o mercado de forma ampliada. A dinâmica seguia a seguinte ordem: A colônia produziria mercadorias primárias que eram apropriadas por Portugal que, no comércio internacional, seriam vendidas para a compra de bens manufaturados.

Portugal apresentava baixa densidade populacional, fator que foi crucial na ocupação das colônias, e optou por usar mão de obra escrava nos novos territórios. Enquanto a Europa já havia se desvencilhado do escravismo antigo havia alguns séculos, haja vista que já havia passado pelo Feudalismo e agora se encontrava naquilo que ficou conhecido como Mercantilismo, o escravo negro foi introduzido como trabalho forçado para saciar a ganância portuguesa pela extração cada vez maior de riquezas da colônia, além do incentivo intrínseco do comércio negreiro ser altamente lucrativo. Esse trabalho forçado, conforme explicitado no livro, não se constituiu em reprodução do escravismo da antiguidade clássica, mas é fruto do processo de expansão mercantil do capital. Dessa forma, essa inserção da forma escravista de trabalho no sistema, não o constitui como um modo de produção diferenciado ou associado ao Capitalismo. Segundo o autor, essa seria uma particularidade da formação social e econômica do Brasil.

O Brasil foi o projeto mais exitoso de colonização portuguesa. Essa afirmação traz em si muita divergência e contradição. A colônia não se encaixava propriamente, dados os conceitos, em nenhum modo de produção comumente conhecido, não era nem feudalismo, pois não havia classe camponesa, senhor feudal e afins, nem era Capitalista, haja vista que a mão de obra utilizada era escrava. Segundo Décio Saes1, em seuos Estados que combinam elementos diversos de dois tipos de Estados são contraditórios, ou seja, podem ser classificados como Estados de Transição ou ainda Estados em Crise. Para Mazzeo, a contradição não consistiria em uma crise ou transitoriedade dos Estados, mas justamente em seu caráter autocrático: à margem da constituição de um Estado democrático do tipo burguês, para sua sobrevivência e necessidades acumulativas, a burguesia nacional, muitas vezes respaldada pelo capital internacional, criaria formas autocráticas sob governos transitórios, estados de exceção, ditaduras bananeiras, formas oligárquicas com aberrações representativas, etc. Observando-se uma história independente de 193 anos, descontados os 67 anos de Monarquia (sob poder Moderador ou Regência Provisória), os 40 anos de aberrações representativas da República Velha, a Era Vargas, o Regime Militar, restaria, com um grande grau de liberdade analítica2 , 50 anos de “normalidade democrática”. Ou seja, menos de um terço. Nesse sentido remontamos a dimensão presente em que a obra de Mazzeo é reeditada, que marca um contexto em que setores conservadores da sociedade brasileira e boa parte de sua burguesia vê com bons olhos a quebra da ordem democrática. Ainda que governando prioritariamente em seus interesses, a presença de um governo com o mínimo de representatividade popular e interesse em políticas sociais que não se mostre totalmente pronto a atender às demandas de novas necessidades acumulativas incomoda, e estimula o espírito autocrático dessa gente.

Uma das grandes habilidades da Burguesia autocrática em promover sua sobrevivência está na capacidade de absorver forças políticas de caráter progressista, mas inconsistentes do ponto de vista teórico. Sem uma teoria que categorize formal e explicitamente as formas de luta e os elementos de tática e estratégia, a tendência dessas forças progressistas é a anulação, cooptação e até absorção pela autocracia burguesa. Mesmo esforços no sentido de preservarem aspectos progressistas como “conquistas sociais”, terminam por adquirir caráter vago e sucumbir à pseudo-objetividade de termos como “ajuste fiscal”, por exemplo. Curiosamente, o discurso progressista se mantém. Talvez venha daí a grande proliferação de partidos e forças que se definem de “centro-esquerda” na fauna política brasileira.

Em suma, identificamos na obra de Antônio Carlos Mazzeo, um trabalho que realiza um diálogo importante em três lugares: o primeiro, na Academia, no campo da História Econômica, a estabelecer a primazia do paradigma Pradiano sobre a formação econômica e social do Brasil. Um segundo estabelece-se na descrição das características do Estado Autocrático Burguês no Brasil, elemento que tem sua evidenciação presente justamente pela análise a partir do paradigma Pradiano. Por fim, a leitura do livro de Mazzeo ensina muito sobre as estratégias e táticas de perpetuação da burguesia autocrática no Brasil, assim como os pontos nos quais seria possível sua superação histórica, os quais a nosso ver, estariam na reestruturação da posse fundiária, combinada com uma reforma tributária progressiva, política de ajuste anti-rentista, intensificação dos programas de redistribuição de renda, extensão e publicização efetiva da rede de serviços e bens públicos.

Resta saber o grau de contradições que a atual ordem democrático-burguesa no país estaria disposta a suportar, antes de uma nova virada autocrática, ou se forças populares estariam dispostas a fazer sua própria virada antes.

Notas

1. SAES, Décio. A Formação do Estado Burguês no Brasil (1888-1891). São Paulo: Ed. Paz e Terra. 1990.

2. Não estamos descontando os períodos em que partidos como o PCB foram colocados na ilegalidade, no final dos anos 1940, nem o período da crise parlamentarista no início dos anos 1960, tampouco o período em que vice-presidentes assumiram o poder por impedimento físico ou legal do titular, durante a Nova República.


Resenhista

Tallyta Rosane Bezerra de Gusmão – Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Alagoas. Mestranda em História Econômica pela Universidade de São Paulo.


Referências desta Resenha

MAZZEO, Antônio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. 3ª edição. São Paulo: Boitempo, 2015. Resenha de: GUSMÃO, Tallyta Rosane Bezerra de. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 11, n. 36, p. 212-216, agosto, 2016. Acessar publicação original [DR]

 

Itamar Freitas

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