Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo de hoje – PONDÉ (C)

PONDÉ, Luiz Felipe. Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo de hoje. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. Resenha de: RECH, Maria Helena Bortolon. Conjectura, Caxias do Sul, v. 25, 2020.

O autor e sua filosofia – Luiz Felipe Pondé é filósofo, escritor e ensaísta. Doutor pela USP e pós-doutor pela Universidade de Tel Aviv (Israel), é professor na FAAP e PUC-SP, além de colunista na Folha de S. Paulo e comentarista da TV Cultura. Autor de vários livros, entre eles os bestsellers Filosofia para Corajosos e Amor para corajosos, também pela Editora Planeta.

A ideia e a filosofia de Pondé baseiam-se num certo pessimismo, na valorização das tradições religiosas ocidentais e no combate ao pensamento politicamente correto, nos meios universitários. Carrega fortes influências do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, do niilismo e do existencialismo. Em 2011, em entrevista à revista Veja, Pondé declarou ter deixado de ser ateu. Comecei a achar o ateísmo aborrecido do ponto de vista filosófico. A hipótese do Deus bíblico, na qual estamos ligados a um enredo e um drama morais muito maiores do que o átomo, me atraiu. […] Tenho a clara sensação de que às vezes acontecem milagres. Só encontro isso na tradição teológica, afirmou.

Organização da obra – A obra de Luiz Felipe Pondé apresenta 31 tópicos que versam sobre as diferentes formas de espiritualidade. O âmbito desta obra abarca, de um lado, o mundo judaico-cristão, e, por outro, o mundo da filosofia sem religião, e o limite geográfico estabelecido é Jerusalém e Atenas. Seu livro percorre formas inconsistentes de espiritualidade, como a espiritualidade para idiotas; a espiritualidade light ou a commoditizada; as formas negativas de espiritualidade, como o gnoticismo cristão; e as concepções satânica e trágica de espiritualidade, abordando também questões como a espiritualidade nas inteligências artificiais e nos animais.

O termo espiritualidade – Para o autor, o termo espiritualidade, embora polissêmico, na essência significa a busca de uma conexão com o divino, não importando a crença ou religião em que se acredita. Afirma que a obra não é um manual de espiritualidade e nem um manual da história da espiritualidade. Na verdade, o autor faz uma peregrinação às mais diversas formas de espiritualidade, não se atendo somente na espiritualidade religiosa clássica. Pondé deixa claro que o roteiro da obra segue um “percurso marcado pelo estranho” das mais diversas crenças.

Conceito de espiritualidade, ou ciência dos santos – Do ponto de vista histórico, o conceito de espiritualidade nasceu no âmbito do catolicismo francês, em meio ao século XVII. Nesse universo, ambos os conceitos significavam uma vida próxima a Deus, e os desdobramentos práticos era uma vida “acompanhada” por Deus. Tratava-se de uma vida prática e cotidiana regada a experiências místicas (contato íntimo com Deus), mediadas pelos elementos institucionais como missa, oração, magistério somados à execução de trabalhos físicos. Hoje, porém, o que se presencia é uma desinstitucionalização da ideia de espiritualidade em função da modernização burguesa em que vivemos, nos últimos séculos.

Ponto de partida – O que determinou o caminho percorrido em seu livro, segundo Pondé, foi a obra do escritor francês Albert Camus, que expressa o desejo do homem de encontrar um sentido para a sua vida. Diz Camus: “É porque a vida não tem nenhum sentido que é necessário encontrar um”. Sendo assim, “o que determina a busca espiritual, dentro e fora das tradições religiosas, é o sentimento de vazio que nos corrói” (p.

21). Assim, a hipótese de fundo do autor, ao longo desta obra, é que “a espiritualidade é uma disciplina que deita raízes no vazio profundo que nos segue dia a dia”. Há uma demanda, pois, para encontrar respostas, não só teóricas, mas práticas, o que exige coragem de quem enfrenta esse vazio de peito aberto, “seja na companhia de Deus, dos deuses, do ateísmo ou do Satanás em pessoa”, como diz Pondé (p. 21). Existe, nesse processo, “a metáfora da peregrinação” do ser humano, do movimento exterior e interior, na busca de uma transformação de sua vida.

Desfazendo conceitos – Luiz Felipe Pondé desfaz, na obra, a ideia de que a espiritualidade seria algo que trata do bem ou da felicidade, do paraíso, do equilíbrio, enfim, de tudo que uma espiritualidade pensa. Para ele, qualquer forma de espiritualidade consistente começa com o vazio da existência, com ou sem deuses. No caso judaico-cristão, inicia com a ideia do pecado, conceito-chave da condição antropológica e cosmológica do homem. Nesse sentido, o que funda, de fato, a espiritualidade, para o filósofo, “é o medo da finitude e do mal”. Pode-se dizer, assim, que viver a espiritualidade será sempre um teste cotidiano de enfrentamento e de coragem. O homem e sua relação com o sagrado apontam, pois, para duas virtudes capitais da espiritualidade, a coragem e a esperança. Coragem para ter uma vida espiritual e esperança como um caminho para superar o vazio da existência.

Filosofias não espirituais –Todo aquele “que busca sua ‘salvação espiritual’ num site, num workshop de três dias no campo, na física quântica, na pseudociência, enfim, em formas empobrecidas de espiritualidade, verborragias pseudo-espirituais, a serviço do abismal desespero presente na condição humana”, não vive a verdadeira espiritualidade, mas pratica um certo tipo de “espiritualidade para idiotas”, como o autor a chama. O primeiro problema decorrente dessas teorias é que elas colocam o “eu” como centro da espiritualidade e, nesse sentido, é o mundo divino que serve ao homem, quando é o contrário que deve ocorrer. Já o segundo problema supõe a contaminação do homem pela indústria cultural da espiritualidade e religião. A apropriação da espiritualidade, nesse caso, ocorre da mesma forma como se compra um determinado produto e visa tão somente ao equilíbrio mental e/ou físico do homem. Um exemplo desse tipo de espiritualidade é a obsessão pelo “equilíbrio energético”, como busca para todos os males, eliminando, assim, uma discussão espiritual profunda. Por último, a ausência de vínculos práticos condena essa forma de espiritualidade, porque todo o caminho da espiritualidade é mais uma prática do que uma simples teoria.

Nesse caso, Pondé diz que não se pode deixar o tema da espiritualidade, tão relevante para a nossa vida, nas mãos de mercadores e pregadores sem escrúpulos, que vendem a imagem de Deus, como se fosse um produto para ser consumido, segundo a vontade do consumidor.

Significado de espírito – Apesar de haver uma razoável imprecisão semântica, o autor toma como ponto de partida a “noção de espírito” do judaísmo e do cristianismo, que pressupõem a ideia de espírito de Deus. Já na filosofia grega, a noção de espírito é próxima à ideia de intelecto e da percepção de uma ordem cósmica existente. Para alguns, essa ordem é o centro da busca espiritual. Na visão bíblica israelita, a ideia de espírito relaciona-se mais ao coração como centro da vida intelectual, moral e afetiva.

É o coração que vê Deus e, na sua dimensão prática, espiritualidade significa intimidade com Deus. Na visão grega e israelita, portanto, a espiritualidade terá uma face múltipla: intelectual (intelecto), afetiva (coração) e prática (física).

Na Idade Média, para os escolásticos, a vida do espírito será sempre uma prática que enlaça corpo e alma, espírito e natureza física, intelecto e coração. Para Basílio Magno (330-379), monge cristão capadócio, a vida espiritual tem três dimensões essenciais: a oração ou contemplação de Deus, o estudo da literatura sagrada e o trabalho físico, todos vinculados um ao outro. A busca da “ordem das coisas” no mundo, ou seja, de teorias sobre a realidade das coisas e as suas práticas decorrentes marcam toda forma de busca espiritual. No mundo ocidental, essa ordem normalmente é Deus, e d’Ele derivam modos de vida como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo.

Espiritualidade não religiosa A natureza como centro da espiritualidade – Luiz Felipe Pondé descreve a espiritualidade não religiosa iniciando pela “filosofia estoica” que tem a natureza como seu centro de atenção e busca. Neste movimento filosófico grego antigo, o conceito de logos é famoso por representar a racionalidade permanente da natureza ou do Universo. A busca de viver segundo o logos é o centro dessa vida. Dessa forma, toda espiritualidade busca ver o que é de fato real por detrás das aparências e se libertar de todos os enganos que o mundo social oferece.

Existem outras formas de espiritualidade também centradas na natureza. Muitas religiões primevas tinham a natureza como uma divindade.

A ideia é que a natureza ou o Universo são realidades divinas.

Outra derivação dos elementos espirituais atribuídos à natureza é a chamada espiritualidade do deserto, presente nas três religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Trata-se de um isolamento do homem no deserto, lugar esse considerado altamente purificador. Ali no deserto, os bens materiais são inúteis, tudo é vaidade, e viver a verdade última é perceber que tudo passa e só Deus, a essência, permanece.

Espiritualidade negativa – Trata-se das narrativas ditas gnósticas. O gnosticismo acredita que há como que dois deuses regendo o mundo: um deus bom e outro mau. Se a questão essencial na espiritualidade é a busca da ordem das coisas, no gnosticismo essa ordem é má, o cosmo é, na verdade, desordem e não ordem. Logo, a espiritualidade será negativa, contrária a tudo que nos ligue ao mundo.

Espiritualidade trágica – “A cultura grega era profundamente marcada pela sensação de falta de saída diante das forças divinas, representantes da ordem das coisas” (p. 81). A religião trágica grega sempre verá o homem sem liberdade e os deuses indiferentes à sua busca de autonomia. Entretanto, se a ordem das coisas é destrutiva da vida, a espiritualidade trágica estaria em tirar sentido da realidade frágil, finita e sem sentido com força e coragem, mesmo diante do caos.

Espiritualidade do ateísmo – No ateísmo também existe espiritualidade, pondera o autor. Diante do ceticismo e no lugar de Deus, coloca-se a possibilidade ética, social e política, o amor pelo outro, mesmo que sem a fundamentação transcendental de Deus. Nesse sentido, os ateus sustentam uma resposta espiritual ao vazio universal, mas sem o apelo à presença de Deus como fundamentação universal do bem.

É no cristianismo, todavia, que a história da vida espiritual organiza o entendimento que temos da palavra espiritualidade, afirma Pondé.

Deixando de lado várias questões no sentido da Bíblia, Pondé enfatiza que a “espiritualidade da graça” leva diretamente à ideia do amor cristão pelo próximo, uma das facetas da própria graça. Só se salva, diz Cristo, quem perde a vida, e isso significa que somos cegos para a graça enquanto estivermos voltados só para nós mesmos. Assim, a condição necessária para uma verdadeira experiência espiritual é a superação do “eu”.

O que impede que haja uma verdadeira espiritualidade? Em primeiro lugar, é o autocentramento em si mesmo, ou a não superação do “eu” em direção ao outro; em segundo lugar é a não superação da vontade própria, a vontade vaidosa do pecado, em favor da vontade livre, ou seja, a vontade de Deus em nós; e, por último, o desprendimento da alma para “tornar-se parte da substância divina” (p. 106).

Santo Agostinho – (354-430) filósofo, escritor, bispo e importante teólogo cristão do Norte da África –, durante a dominação romana, afirma que “só quem ama é livre, porque só quem ama sai de si mesmo e olha para o mundo à sua volta”. Nesse sentido, só quem desiste de ser o centro do mundo e de sua própria vida é capaz de experimentar a verdadeira doçura de Deus e da vida.

A espiritualidade nos dias de hoje – A vida moderna é muito pautada pela busca pessoal do prazer, a serviço da autossatisfação e dos interesses próprios do ser humano, num círculo vicioso narcisista, incapaz de libertar-se de si mesmo. Tudo isso, na visão do autor, impede a libertação do homem para o encontro com Deus.

Existiriam aspectos contemporâneos que determinariam uma forma específica de espiritualidade? – pergunta-se o autor. Ele argumenta que sim, dizendo que, se considerarmos, nas diferentes épocas, que as formas espirituais são entidades culturais, alguns tópicos podem compor uma espiritualidade contemporânea.

Hipóteses 1. O mundo moderno é pautado pela eficácia. O ser humano deve ser inovador, produtivo, flexível e conectado com o mundo. Se a busca de um sentido para a vida nos leva a um enfrentamento da dura sensação de vazio que assola a existência, uma espiritualidade contemporânea deve ser pautada pela possibilidade de perder o medo de não ser eficaz, nem produtivo.

Nessa linha, surgem, então, como fatores determinantes, o respeito ao outro, a fuga da esterilidade afetiva que nos impede de amar e aceitar o outro, o enfrentamento do sucesso e da ansiedade e, sendo assim, passamos pelo risco de abrir mão da própria vida. Entretanto, enquanto essas formas pensam no bem-estar do outro de forma racional, as formas clássicas de espiritualidade falam de “compaixão” por estarmos todos lançados ao vazio do ser como experiência cotidiana, superando o próprio eu para olhar o mundo ao seu redor e ao seu próximo.

  1. Na política, pode haver espiritualidade. Se considerarmos que espiritualidade é uma tentativa teórica e prática de enfrentar o vazio da existência, alguns casos da história e da literatura mostram como pode acontecer espiritualidade na política. Na obra de Rousseau (1712-1778), aparece a ideia de esperança como redenção política, ou seja, o seu ideal de tirar do poder os corruptos para dá-lo aos menos corruptos, e um retorno do homem ao estado pré-social em que a vida mais próxima da perfeição natural existiria; Karl Marx (1818-1883), outro exemplo, que prega a utopia igualitária que redimirá o homem e o mundo; e até a teologia da libertação do século XX, com seu ideário de libertação da exploração dos mais pobres, etc.

A ideia de pecado – O pecado faz parte da natureza humana, atormentada pelo orgulho, pela vaidade, pelo egoísmo e pela concupiscência sexual que nos cegam, impedindo nosso intelecto de iluminar o percurso cognitivo. O pecado, na verdade, revela-nos o vazio de ser que nos habita, mostrando-nos a verdadeira condição humana. Achar o sentido da vida seria reconhecer essa nossa fraqueza essencial, e tomar consciência dela nos aproxima da verdade de nossa insuficiência. Assim, a espiritualidade que assume o pecado como condição humana deve também buscar uma via que enfrente esse mecanismo que nos escraviza. E isso nos aproxima de Deus e à possibilidade de perdão e misericórdia. Só um pecador consciente de si é capaz de perceber a misericórdia e receber o perdão.

Formas de baixo teor espiritual – Se a espiritualidade é um caminho que dá sentido à vida, Pondé pergunta se podemos não ter fé e ainda assim encontrar sentido na vida. Ele responde que sim, embora a resposta seja um tanto discutível 1. Formas commodizadas de espiritualidade e redes sociais – Quando pensamos que um dos pontos centrais da espiritualidade sempre foi a “superação do eu”, e a ilusão que essa afirmação implica quando o “eu” é tomado como centro da vida, pode-se supor que formas altamente commoditizadas de espiritualidade tenderão a ser sempre de baixo teor espiritual. A espiritualidade num mundo altamente commoditizado significa uma oferta de bens produzidos, para oferecer aos consumidores que desejam encontrar um sentido para a sua vida; e, nas pontas das redes sociais, encontram-se seres solitários em busca de significados para sua vida. Essas formas modernas diferem das formas clássicas de vida espiritual, pois são caracterizadas pela ideia de uma espiritualidade feita para satisfazer e agradar segundo a vontade do homem e não serão capazes de oferecer a verdadeira vida do espírito, que é feita de ambivalências e contradições.

  1. Formas de espiritualidade sem religião – Parece comum hoje em dia ouvir alguém dizer: “Não tenho religião, tenho espiritualidade”. Essa assertiva tem razões históricas que iniciaram nos séculos XVIII e XIX com uma crítica filosófica sistemática à religião. Uma das ideias desse movimento era que as instituições religiosas serviam de ferramentas para a alienação das potências intelectuais, políticas e afetivas humanas. Ao longo do tempo, isso foi gerando uma grande desconfiança e uma consciência crítica em relação às instituições religiosas históricas. Apesar de a religião não ter sido eliminada como ferramenta social e psicológica, o homem criou opções menos ligadas às religiões. E aí nasceu a espiritualidade ligh, ou a religião pessoal, ou seja, uma vida espiritual subjetiva. Assim, desapegado de instituições religiosas, “esse sujeito livre foi parar no facebook, nas modas de comportamento, num consumidor de lojinhas e feirinhas descoladas, na especulação imobiliária”, ou em outras opções de mercado que, na verdade, funcionam como um mercado espiritual, disputado tanto pelas velhas instituições religiosas como pelas novas, que ensejam a criação de um sujeito consumidor espiritual muito mais do que um praticante de uma espiritualidade específica.

Condições para uma verdadeira espiritualidade – Pondé afirma que o espírito parece falar melhor na ausência de multidões, manifestando-se no silêncio da alma, pois é esse silêncio que permite um contato profundo com a vida do espírito. “O silêncio espiritual só se instala, diz o escitor filósofo, quando você esquece de você mesmo, quando você está ‘morto’ para si mesmo” (p. 170). É o próprio Jesus que afirma que, para se salvar, temos que perder primeiro a vida. Para chegar a esse estado, porém, é preciso atingir um certo cansaço, mas é o cansaço de servir ao sucesso e à felicidade, pois só o cansaço como emancipação pode nos levar ao repouso espiritual.

A espiritualidade, a moral e a ética – Quando se fala em bem e em mal, o autor diz que está falando de moral e ética (no livro, esses termos são tidos como sinônimos). Se espiritualidade é uma prática, toda prática humana é um ato moral. Assim: “A expectativa moral frente à vida espiritual é que ela some ao mundo um sentimento de verdade, generosidade e amor em relação às coisas e às pessoas” (p. 175).

Quem nunca teve dilemas morais? – pergunta o autor. Só os covardes, responde ele, pois esses elegem o conforto e o bem-estar como valores absolutos. Isso é uma forma segura de degeneração do espírito, porque é a espiritualidade da preguiça, oposta ao cansaço. O cansaço é o repouso de alguém que percorreu uma guerra, e a vivência espiritual é uma luta que só os corajosos assumem, enfim, um “teste cotidiano de enfrentamento e de coragem”.

Apresentei até aqui um conjunto das principais ideias de Pondé divididas em blocos. Mas a grande pergunta que se pode fazer, no final, é: De onde vem a descrença do homem frente ao homem e ao mundo? O que vale a pena para o homem: crer ou não crer? Concordo, inicialmente, com as ideias de finitude, fragilidade, medo e mal como carências substantivas do ser humano, ideias essas que fundamentam ou justificam a obra de Luiz Felipe Pondé. Buscamos, sim, caminhos ou respostas para ter esperança, para fugir da nossa falta de sentido, mas nem todas preenchem o vazio e o medo que sentimos.

Como explicar, por exemplo, a falta de sentido e liquidez de valores que sentimos hoje? Pondé deixa implícitas ideias sobre as profundas mudanças pelas quais passou e passa a humanidade. A Pós-Modernidade (segunda metade do século XX), realmente, trouxe várias transformações sociais e culturais, muitas vezes favorecidas e propagadas pelos avanços tecnológicos. Essa mudança de paradigmas culminou na instabilidade das ideias como: O que é justiça? A razão deve prevalecer? Os avanços da ciência devem predominar sobre os valores religiosos? Ciência e fé podem andar juntas? Todos os ideais de justiça, fraternidade e igualdade que nortearam o humanismo francês (e daí para o mundo) organizavam-se em sistemas de pensamento e determinavam uma visão de mundo, de homem e de valores.

Mas eles caíram em descrédito, esfacelando-se diante de uma realidade que estimula o consumismo, o individualismo, o hedonismo, ou seja, a busca incessante pela satisfação de prazeres imediatos e efêmeros, nos quais o sujeito é soterrado pela oferta de sensações externas, que dominam seus interesses pessoais e culturais, seus vínculos afetivos e, sobretudo, limita sua capacidade de pensar criticamente sobre si e o meio circundante.

Não havendo mais interdição ditada pelas instituições sociais, o homem passa a desacreditar nos valores e nas crenças prometidos pela ciência, pela fé e pela justiça no mundo; os valores tornaram-se uma opção e, diante dessa nova realidade, o indivíduo tem a oportunidade de criar seu próprio valor, sua própria crença, sua própria religião e, consequentemente, sua própria identidade, na qual tudo é inventado e descartável, desmanchando-se no ar.

Em outras palavras, o homem, de modo geral, descrê de quase tudo, e essa nova consciência traz consigo insatisfação e angústia, Diante da angústia, muitas vezes o homem busca respostas para crer em alguma coisa, mesmo que seja, como mostrou Pondé na obra, em formas equivocadas, como as que nos levam a pseudos bens espirituais que não passam de produtos vendidos por mercadores que prometem felicidade e um novo sentido à vida.

Diante desse quadro, muitos preferem não ter religião alguma, nem acreditar em Deus, muito menos em qualquer ideia que dê algum significado à vida. Muitos até podem considerar a ideia de que pode haver um Deus, mas a existência d’Ele não legitima um significado que justifique a finalidade da sua vida e dos seus atos.

A ideia de que somente a razão humana e a ciência sejam os únicos instrumentos válidos para buscar a verdade exclui, a priori, qualquer caminho rumo à transcendência. Muitos acreditam que o homem é pura existência, o que contribui para que ele perceba a si mesmo como uma simples realidade biológica com necessidades que devem ser satisfeitas.

Diz a Psicologia que, diante de uma existência marcada pela descrença, pela indiferença, pela falta de sentido e por comportamentos imprevisíveis, o vazio e o nada apoderam-se da vida emocional, restando ao indivíduo que padece desse mal a morte psíquica, ou seja, a indiferença, o “tanto faz” (ça m’est égal) do personagem da obra de Albert Camus, O estrangeiro, um romance símbolo de uma geração.

Mesmo tendo nomeado a si mesmo, por muito tempo, como ateu, Pondé diz que a ideia de Deus ainda é o melhor conceito filosófico inventado pelo homem, pois alimenta a esperança e “há algo de belo na possibilidade de ter esperança, mesmo quando não há nenhuma esperança” (p. 187).

Enfim, crer ou não crer? Eis a grande questão que se coloca diante de nós. Acreditando, como mencionado na obra, que a vida espiritual clássica tem três dimensões essenciais: (a) atitudes de contemplação, uma relação com algo maior, divino; (b) estudo, aprofundamento dos princípios que dão embasamento à nossa vida espiritual; e ( c) uma prática, ou seja, uma conexão entre o que acreditamos e os nossos comportamentos e atitudes, reiteramos com o autor, embora afirme ser muito difícil, que vale a pena cultivar a esperança nessa ou em outras formas de espiritualidade que nos conecte a um ser divino e, consequentemente, a princípios morais, éticos e políticos que permitam dar um sentido à nossa existência.

Referências

HARARI, Yuval Noah, 1976. Sapiens: uma breve história da humanidade. Trad. de Janaina Marcoantonio. 30. ed. Porto Alegre, RS:L&PM, 2017.

KARNAL, Leandro. Diálogo de culturas. 1.ed. 3. reimp. São Paulo: Contexto, 2017. KUCHENBECKER, Valter (coord.). O homem e o sagrado: a religiosidade através dos tempos. 3. ed. Canoas: Ulbra, 1996 (Série Alfa, 8).

PONDÉ, Luiz Felipe. Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo de hoje. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.

WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Luiz Felipe Pondé. Disponível em: http www. Google.com.br. Acesso em: 15 mar.

Maria Helena Bortolon Rech – Professora aposentada. Mestra em Letras e Cultura Regional. E-mail: mhbrech@ucs.br

Acessar publicação original

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.