Li com muito interesse – e fiquei encantado com o que li – o livro Espírito Santo indígena. Até porque ele nos dá pistas importantes daquilo que chamo da construção imaginária da sociedade capixaba, da sua identidade e do papel relativo de cada etnia neste contexto.
O livro, afirmo, é de leitura indispensável para os que querem compreender melhor a construção histórica da nossa sociedade. Seu nome expressa muito: Espírito Santo Indígena: conquista, trabalho, territorialidade e autogoverno dos índios, 1798-1860.
É primoroso o trabalho da professora e pesquisadora Vânia Maria Losada Moreira. Isto porque a autora introduz várias dimensões novas nos estudos sobre a questão indígena em nosso estado, enriquecendo sobremaneira o seu entendimento. O trabalho mostra uma realidade, conhecida certamente por poucos, e socializa entre os que desejam estudar o nosso estado informações e análises da maior importância. Amplia nossa compreensão sobre os nossos sertões, quase sempre muito esquecido, pouco levado em conta.
Fundamental é quando ele mostra que o Espírito Santo oitocentista foi uma região do Império bastante indígena, até porque eles atuavam no cotidiano de sua vida social e política, contribuindo para moldar e desenvolver a vida local, junto com os brancos, pardos e escravos. Ela mostra, através da análise da correspondência oficial da época, a evolução dos dois principais assuntos tratados entre os presidentes da província e as autoridades da vila indígena: trabalho e terra. Era enorme a importância destes elementos em nossa história, até porque era costume na província do Espírito Santo tomar-se conta dos índios desde meninos, mesmo que pertencessem a alguma instituição do tipo orfanato, comprometendo-se a criá-los e vigiá-los até uma certa idade, como empregados.
O livro tem grande importância porque reúne cinco estudos sobre a presença dos índios na história do Espírito Santo. Todas as questões levantadas e problematizadas situam-se no horizonte de um mesmo período histórico, entre o fim do Diretório dos Índios, em 1798, e a início da segunda metade dos oitocentos, período no qual passamos da condição colonial para a nacional. No período, rico em mudanças ocorridas na sociedade como um todo, vemos que elas impactaram a vida dos índios e sua relação com a própria sociedade.
Assinala Maria Regina Celestino de Almeida, no prefácio da obra, que boa parte das análises fundamentam-se no cruzamento de informações obtidas em muitas fontes, nos mais diversos documentos, principalmente aqueles sobre a Vila de Nova Almeida, a mais populosa e longeva antiga aldeia de índios no Espírito Santo. Os dados trabalhados pela autora evidenciam a importância do trabalho indígena entre nós e a presença significativa dos índios no exercício de cargos nas câmaras municipais de Nova Almeida e de Benevente, outra antiga aldeia indígena. Aliás, é sobre a questão do trabalho dos povos autóctones entre nós que a pesquisa de Vânia Losada tem um de seus pontos altos, esclarecendo questões fundamentais para a compreensão das nossas raízes.
No começo dos oitocentos, Nova Almeida era uma vila mestiça, segundo o que lemos no trabalho, do ponto de vista cultural, agregando pessoas, valores e práticas dos campos ameríndio e afro-luso-brasileiro. O trabalho inicia-se com a análise da carta régia de 13 de maio de 1808, que deflagrou a guerra ofensiva contra os índios botocudos do Rio Doce tanto da capitania das Minas Gerais quanto na do Espírito Santo. Nela foi permitido o cativeiro indígena por dez anos ou enquanto durasse a fereza ou antropofagia entre eles. Em outra carta régia, datada de 02 de dezembro do mesmo ano, os territórios conquistados foram qualificados de devolutos, com os quais se colonizaria o vale graças à distribuição deles como sesmarias entre novos colonos. A autora interpreta essa norma como um arcaísmo, já que reabilitou o velho princípio da guerra justa e do cativeiro indígena, mas chama a atenção que, na verdade, tratava-se da reconstrução do império português no Novo Mundo com a chegada da família real. A presença de índios, considerados hostis e refratários ao controle da sociedade regional em expansão, foi durante todo o século XIX um dos problemas centrais da chamada segurança pública em todo o norte da província, que incluía São Mateus e a região do vale do Rio Doce.
As leis pombalinas existentes até então eram menos rigorosas. O cativeiro tinha sido abolido em 06 de junho de 1755 graças à decretação da liberdade absoluta dos índios, que se transformam em vassalos do rei. Deveriam ser integrados nos corpos de ordenança e estavam sujeitos ao recrutamento para prestarem serviço nas milícias. Ficaram equiparados aos demais vassalos luso-brasileiros, embora fossem vassalos especiais, principalmente aqueles que viviam nas matas “sem lei” e “sem fé”. Desse ponto de vista, a guerra e a conquista dos territórios indígenas do Espírito Santo e de Minas Gerais faziam parte do movimento de reorganização do abastecimento comercial da corte implantada no Rio de Janeiro e também da integração econômica do Centro-Sul. Os índios ocupavam, em Nova Almeida, os principais cargos e lugares da governança da vila, no chamado sistema de autogoverno.
Chama a autora a atenção para o fato de que tanto em Linhares como nos minúsculos povoados, quarteis e destacamentos existentes na bacia do Rio Doce, parte considerável dos soldados eram composta dos chamados índios civilizados. Conceito que se aplicava em nossa capitania ao grupamento assentado nas antigas missões jesuíticas da região e que a partir das leis pombalinas passou a compor a população das vilas e lugares que surgiram nos antigos aldeamentos. Interessante que se eles não viviam mais de acordo às regras e valores de seus grupos de origem, também não podiam ser confundidos com os escravos de origem africana nem com a população de origem europeia.
É, contudo, na articulação entre o trabalho dos indígenas e dos negros escravizados que o trabalho de Vânia Losada ganha força especial. Ela sustenta a hipótese de que a proliferação de quilombos no Espírito Santo, especialmente no norte da província, durante a primeira metade do século XIX, esteve intimamente ligada ao que ela chama de política de segurança pública. Ou seja, a aliança entre índios e senhores no combate a escravos fugidos, quanto de escravos armados e seus senhores contra os índios no sertão estavam no coração da vida social na capitania.
Importante informação é a de que houve a construção, mesmo que transitoriamente, de uma espécie de república na região de Guarapari. Segundo a autora, os escravos de duas fazendas da região passaram a desfrutar de uma vida comunitária regular para os padrões da vida local. O que ficou conhecido como a república negra de Guarapari não era propriamente bem vista pelas autoridades, mas eles a toleravam devido tanto à incapacidade de reprimi-los, mas sobretudo porque o inimigo maior não eram os escravos que se recusavam a trabalhar. Os chamados botocudos que viviam nos sertões, em guerra permanente com a população afro-luso-indígena, eram os que enfraqueciam ou subvertiam o sistema vigente. Mas havia também alianças entre senhores e grupos de índios aliados com a finalidade de combater os escravos evadidos do cativeiro, já que a formação de quilombos parecia atingir praticamente todas as localidades do Espírito Santo. Chama a atenção a autora que, nos anos 1840, a formação de quilombos tornou-se endêmica na província, com notícias de sua existência em cada quadrante do território, quando já não se aceitava mais o trabalho cativo.
Muitas informações valiosas terão aqueles que lerem o trabalho. Muitas análises esmeradas nos faz a autora de trabalho tão significativo para todos nós capixabas
João Gualberto Vasconcellos – Professor emérito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Doutor em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciência Política de Paris, na França, Pós-doutorado em Gestão Social pela Universidade Federal da Bahia. Secretário de Estado da Cultura do Estado do Espírito Santo.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Espírito Santo Indígena: Conquista, trabalho, territorialidade e autogoverno dos índios, 1798-1860. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2017. Resenha de: VASCONCELLOS, João Gualberto. Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo, Vitória, v.2, n.3, 2018. Acessar publicação original [DR]
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