Das bandeiras levantadas por variados movimentos sociais e étnicos no Brasil, atualmente, a questão do fim dos estereótipos, tão vulgarmente propagado nos meios de comunicação para representar a tal da “diversidade cultural”, ainda mantém lugar de destaque, mesmo que pareça uma discussão “primária” (já que, teoricamente, seria óbvio que somos diferentes). Os povos indígenas, por exemplo, em suas reivindicações por reconhecimento por parte da sociedade civil, buscam ser vistos não por antigas características que os enquadravam numa homogeneidade exótica, mas a partir de suas próprias concepções repletas de diversidade.
Um desconhecimento arrogante parece reinar na maioria dos discursos que se dirigem a essa população, e o que mais intriga, a própria academia ainda engatinha em muitos meios para superar essa situação. Só há pouco tempo, a historiografia, graças a nomes como o de John Manuel Monteiro, tenta falar em diversos espaços, através de cuidadosos trabalhos com documentação, que os índios também têm história. Dizer isso, todavia, não é suficiente: os estudos que se debruçam sobre o passado desses povos vêm atentando cada vez mais para o fato de que os “discursos homogeneizantes”, combatidos pelos grupos atuais, precisam ser incorporados também nas análises históricas.
A obra Espelhos Partidos, fruto da tese de Patrícia Sampaio1, defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense em 2001, é um feliz e rico exemplo dessa renovação historiográfica. O estudo, que se concentra na região das capitanias do Rio Negro e Grão-Pará, já é esclarecedor (mas não só por isso) por tratar de um espaço colonial português na América que não era propriamente Brasil, mas o Estado do Grão-Pará e Maranhão.
Ou seja, a busca por combater estereótipos já inicia com a própria delimitação espacial, ao estipular um contexto bem diferente dos conhecidos paulistanos ou cariocas.
Desde o início, a proposta da autora é apresentar os sertões de uma região que, assim como outras nos domínios lusitanos, era profundamente crivada por uma série de diversidades étnicas e sociais. Os grupos indígenas, produtores de uma babel linguística protagonista dessa história, são tratados enquanto agentes que mantinham múltiplas e complexas relações com diferentes personagens coloniais, como proprietários, administradores, representantes da coroa, negros escravos e forros, mestiços etc. Muito além de serem apresentados como “inseridos” na lógica colonial, vemos pela aguçada análise documental que os índios, gentios ou aliados, eram coautores desse universo. Para isso, sabiam habilmente transitar por entre espaços e manipular elementos por eles criados ou modificados, revelando identidades fluidas, intimamente relacionadas com suas variadas formas de busca pela realização de seus interesses.
O livro é composto por duas partes: a primeira, Quando o fim é o começo: os mundos da fronteira na Amazônia do século XVIII, apresenta os vastos “sertões” amazônicos dos setecentos, revelando espaços e estratégias com que os grupos iriam lidar naquele mundo de fronteira(s), entre Espanha e Portugal, entre a barbárie (os matos) e a civilização (as vilas), “na tentativa de aproximar-se da complexidade que caracteriza os sertões do Grão-Pará nesse período” (p. 33).
Em seguida, Códigos de fronteira: consolidando diferenças. Essa segunda parte dialoga prioritariamente com os principais conjuntos legais indigenistas deste período: o Diretório dos Índios e a Carta Régia de 1798. Apesar de direcionados para um grupo específico daquela população, o seu peso na formação social e sua importância no funcionamento econômico destas capitanias faziam com que as transformações advindas desses arcabouços legais tivessem alcance bem mais amplo.
Por elas é possível perceber a enorme capacidade de leitura dos índios do contexto que se constituía ao seu redor. Longe de serem unicamente limitadores de suas ações por atitudes coercitivas, as leis eram também elementos apropriados pelos grupos indígenas em suas práticas políticas.
O que mais chama atenção na leitura dessa obra é a grande variedade de tipos sociais que constituíam aquela realidade fronteiriça.
O caráter limítrofe daqueles sertões era latente nos embates que se davam entre agentes que faziam do mundo ocidental e das antigas tradições realidades não tão separadas, mas ao contrário, geralmente conviventes. Nesse ambiente flutuante, índios brabos por vezes passavam para o lado aliado, que por sua vez, eram atravessados pelas hierarquias criadas pela lei, mas cuja capacidade de ação fugia e muito ao controle das autoridades.
Algumas conclusões da autora, contudo, não levaram em conta a heterogeneidade do território brasileiro no que dizia respeito à aplicação das leis indigenistas. Concordando com a ideia de Manuela Carneiro da Cunha, de que ao longo do século XIX a questão indígena passou a estar mais ligada à terra que à mão de obra, Sampaio acredita que a viabilidade da Carta Régia de 1798 no Grão-Pará se explicava pela contínua demanda de trabalhadores índios, ao contrário de outras regiões que continuaram utilizando os artigos do Diretório (p. 245). Contudo, esse não parecia ser o caso das capitanias do Ceará e Rio Grande do Norte, possuidoras de significativa população nativa e que permaneceram com a lei pombalina até meados dos oitocentos. Além disso, lá também se presenciaram “intervenções das populações nativas sobre a legislação pombalina”, que segundo a autora, seria uma das explicações sua revogação no norte do país (p. 226). Se as atitudes de rebeldia dos índios, resultantes das opressões sofridas por autoridades instituídas, provocavam declarações de insucesso dessa legislação, estas não eram exclusivas do Grão-Pará, estando presentes também em regiões que não aplicaram a Carta Régia de 1798.
O mérito maior do estudo em questão está em afirmar, convincentemente, que a análise da história desses povos não deve se resumir a perspectivas homogeneizantes que os enquadrem em submissos inertes, nem tampouco em guerreiros obstinados. A realidade social setecentista amazônica foi interferida fortemente pela ação desses grupos, que não estavam à margem do processo, mas como já foi dito aqui, eram dele coautores. O destino das práticas civilizatórias propostas em Portugal, cujo “fracasso” era sempre atribuído aos administradores sedentos pelo abuso da mão de obra, foi modificado em relação às ideias originais pela própria obstinação dos índios em realizar seus objetivos a partir de suas próprias opiniões, frequentemente divergentes das autoridades coloniais.
Na conclusão, o livro encerra tratando de silêncios: conta a breve história de duas crianças índias, Iuri e Isabella, cujos ancestrais e primeiros anos de vida pouco se conhece. Foram levadas para a atual Alemanha pelos viajantes Spix e Martius como artigos de curiosidades, e tiveram suas vidas encerradas pouco depois de chegarem ao continente europeu. A indiferença em relação a essas pessoas, cujo espectro silencioso é ensurdecedoramente revelador, relaciona-se diretamente com toda a história da relação da nossa sociedade com outros grupos étnicos, com índios, negros e ciganos, com minorias negligenciadas, com o incomodante “outro”. A historiografia, também silenciada e silenciante, era cúmplice dessa tendência, ao acreditar durante tanto tempo que registros para recuperar uma “suposta história” dos indígenas nem existiam. Dar o tom de denúncia a estas considerações finais, de forma provocativa e estimulante para outras reflexões, gritando contra emudecimentos reveladores, é mais que um serviço ao público: é um convite a toda a sociedade para se repensar, se (re)representar, se desconhecer, para, talvez, saber melhor de si.
Notas
1 Patrícia Maria Melo Sampaio possui doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorado pela Unicamp. Professora do departamento de história da Universidade Federal do Amazonas, é líder do grupo de pesquisa História Indígena e da Escravidão Africana na Amazônia (HINDIA) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Política, Instituições e Práticas Sociais – POLIS.
João Paulo Peixoto Costa Doutorando pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: qdedo@hotmail.com
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora Universidade Federal do Amazonas, 2011. Resenha de: COSTA, João Paulo Peixoto. Fronteiras Desiguais. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus, v. 14, n. 25, p. 245-248, jul./dez. 2013. Acessar publicação original. [IF]
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