Especialistas na Migração: Luteranos na Amazônia (1967-1997) | Rogério Sávio Link

Desenvolvido como um trabalho acadêmico, uma tese de Doutoramento, o livro de Rogério Link, deve encontrar leitores para além do espaço universitário, por vários aspectos: a narrativa, mesmo quando trata de questões teóricas, não é hermética; os temas tratados dizem respeito a indivíduos e grupos que estão enfrentando circunstâncias que são apresentadas com clareza pelo autor, muitas vezes com as palavras dos próprios protagonistas; o livro é bem organizado, com bastantes subdivisões, permitindo facilmente a releitura de parte da obra. Eventualmente, algumas subdivisões, como 4.1.7 e a 4.2.7, poderiam ser unificadas em um rearranjo diferente, mas o importante é o texto ter sua lógica e coerência. Acrescente-se também a presença do índice remissivo, que é muito importante em um estudo que perpassou tantos agentes, indivíduos e entidades, pois, afinal, a pesquisa abrangeu luteranos vinculados àIgreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)dos estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima e parte do Mato Grosso num período de três décadas. Por outro lado, aextensa bibliografia, as inúmeras fontes documentais, a par das entrevistas, as discussões conceituais e de campos acadêmicos, sinalizam uma obra de reconhecido perfil científico.

Desenvolvido em uma instituição religiosa, a prestigiada Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (EST), e tendo por objeto um grupo religioso, o estudo, entretanto, transcende o âmbito religioso, a despeito de seu objetivo manifesto de “analisar a experiência eclesial, comunitária e existencial dos luteranos nessa região com a finalidade de compreender o lugar do religioso e das instituições religiosas no processo de colonização e ocupação de uma nova área de colonização” (p. 21). Como diz o próprio autor “A migração dos luteranos para a Amazônia deve ser analisada de diferentes perspectivas. Este acontecimento não está isolado da dinâmica nacional e internacional” (p.107).No livro estão analisados, além da organização luterana em áreas de expansão da IECLB, as relações de religiosos com a ditadura militar e com a organização de movimentos sociais camponeses e sindicais, a política militar de ocupação da Amazônia no seu aspecto de envolvimento de grupos da sociedade, o encontro com populações indígenas, a questão ambiental, e vários outros temas. E, destacando-se sobre todos estes assuntos, está a temática migratória. Tradicionalmente terreno de sociólogos e geógrafos, o tema das migrações internas ampliou-se para uma acolhida interdisciplinar, atraindo, por exemplo, a atenção de historiadores mais recentemente.

No que tange à migração, um primeiro diálogo pode ser feito com o autora cerca da expressão que dá título ao livro, “especialistas na Migração”: “A ideia é que os luteranos vão se especializando no processo migratório para que parte de cada nova geração migre em direção a novas fronteiras” (p. 21). A expressão faz sentido no livro de Link, que apresenta a tessitura do processo migratório, com a formação das novas áreas de colonização (NAC), a chegada de novos migrantes e pastores, e o trânsito de religiosos entre as comunidades. O que o autor poderia ter realizado, ainda que não seja propriamente uma ausência em seu trabalho, é um diálogo com estudos que apontam perfil “migratório” em outros grupos. Galegos espanhóis, cabo-verdianos, maranhenses, para citar alguns exemplos, são populações identificadas por um comportamento migrante no século XX. A descrição da imigração alemã desde o século XIX (p. 298), ainda que um pouco alongada, faz sentido tendo em vista a ascendência alemã de muitos luteranos, fiéis e pastores, o que caracteriza a IECLB como uma Igreja de “imigração” (p. 298), fato que favoreceu o recebimento de financiamentos da Alemanha para muitos projetos (pp. 254, 286). Em termos contrapontos, cabe uma referência ao caso similar dos imigrantes italianos, também acompanhados por seus religiosos, padres imigrantes ou missionários. Movimentos migratórios diferentes podem ser aproximados pela noção de “rede”, que os sociólogos, e agora também os historiadores, têm empregado para explicar o estímulo a novas migrações, por parte de comunidades mais antigas já instaladas. Em outras palavras, os luteranos são “especialistas”, mas não são específicos, havendo outros grupos para os quais a migração é uma constante em várias gerações. Para o caso dos luteranos, mais especificamente os pomeranos, uma narrativa de como funcionava a rede:

Assim, à medida que os pomeranos do Espírito Santo ficavam sabendo que em Rondônia existiam terras, que poderiam ser compradas a preço mais acessível, que já moravam outros pomeranos ali e que também a igreja já estava assistindo aquela região, embarcavam rumo ao “novo território” (p. 63).

Além da identidade religiosa, os membros da comunidade são identificados por sua origem étnico-regional. No caso dos migrantes do Espírito Santo, que são a maioria, e de Minas Gerais, eles se autoidentificam mais especificamente como pomeranos, totalizando 63 % dos luteranos do Sínodo da Amazônia (p. 45); outra parcela expressiva de migrantes é composta por “gaúchos”(p. 156). Estes migrantes, ao se deslocarem, chegam a um lugar onde há outros grupos sociais. Estas demarcações identitárias conduziram o autor a lançar mão de autores reconhecidos que teorizam a identidade, a etnicidade, a memória, e, por esta razão, as vinte primeiras páginas do capítulo 4 são quase um texto independente, que poderia estar com menos citações, todavia muito oportuno a quem pesquisa no ramo.

O que a literatura étnica aponta é que os preconceitos são acirrados em situações de disputa por recursos, e Rogério Link nos apresenta como isto acontece na Amazônia brasileira: vistos de modo estigmatizados pelos luteranos, os indígenas causam inveja quando, em virtude de seu acesso ao comércio da madeira, eles adquirem um maior poder aquisitivo, e mais ainda, quando dirigem um carro (p. 162). Esta situação diz respeito à conjuntura relativamente recente do país. Porém o livro também descreve os efeitos iniciais do processo migratório, a morte de indígenas no final da década de 1960, unicamente pelo contato com brancos, que transmitiam doenças fatais (p. 93), e, por outro lado, o ataque indígena a migrantes que adentravam terras indígenas, em função das poucas terras recebidas do INCRA (p. 179). Outro fenômeno étnico é a “etnogênese” de “gaúchos”, que engloba sulistas de modo geral, tendo o termo adquirido conotações de empreendedorismo, pioneirismo e trabalhador, mas o gaúcho também pode ser visto de fora, pelos pomeranos, como “papudo” (p. 164-165). Outra identificação a ser interpretada: pomeranos instalados em cidades se autodenominam “alemães” enquanto os da zona rural se identificam como “pomeranos”; a condição de “colono” estaria inscrita no termo “pomerano”, o que é evitado pelos migrantes que optaram pela cidade (p. 65).

A segunda parte do livro trata da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, abordando o trabalho pastoral desta instituição no norte do país, destacando o período pós 1970, que marca “a emergência por uma nova postura da Igreja em relação aos problemas brasileiros” (p. 318).Essa nova postura foi gestada no contexto da Teologia da Libertação durante a década de 1970, ese manifestou, por exemplo, na forma como passou a ser tratada a questão da missão entre povos indígenas; abrindo-se às discussões interdisciplinares, com presença de antropólogos, os luteranos ouviram críticas ao “conteúdo etnocêntrico da atividade missionária” e este questionamento levou a uma adesão ao conceito de autodeterminação dos povos (pp. 358, 396). Em termos ambientais, é reconhecida a participação dos migrantes na depredação do ambiente e devastação da floresta, e este reconhecimento conduziu algumas lideranças eclesiásticas à tomada de posição em defesa da preservação (pp. 364, 404).O fato de haver falta de terras para pequenos proprietários motivou ações em conjunto com a Comissão Pastoral da Terra, órgão católico, e à defesa da reforma agrária nos anos 1980 (p.263), postura diferente da assumida em décadas anteriores, de apoio ao golpe militar de 1964 (p.324).Em 1982, o posicionamento por parte de párocos e obreiros da IECLB a favor de populações sem terra (posseiros) levou à prisão e ao indiciamento de vários deles (p. 388). Quando ocorre o assassinato de Chico Mendes, os obreiros do Acre conseguem um posicionamento da IECLB que se manifesta repudiando o acontecimento (p. 277).

Em suma, os luteranos estavam em lugares onde os confrontos por terra eram acirrados. A particularidade do contexto, que só uma pesquisa in loco poderia ter revelado, é que estas lutas se traduziam na disputa entre diferentes grupos identitários. Ou seja, no processo migratório, a disputa pelos espaços de poder e pela posse da terra ocorre entre pomeranos (alemães), gaúchos, paulistas, nordestinos, indígenas, caboclos, seringueiros. Assim, se num início da migração para a Amazônia, a IECLB parece estar muito comprometida com as estruturas de dominação social, num segundo momento, seu corpo sacerdotal e seus missionários leigos deixam entrever uma autocrítica ao sistema econômico-social. Todo este comprometimento levou a que a IECLB, que possuía uma marca germânica, fosse se distanciando desta origem étnica e abraçando uma postura que R. Link denomina “brasilidade” (p. 426).

A descrição do dia a dia das paróquias mostrará, em algumas situações, que a equipe religiosa era mais aberta que os membros das paróquias. Trabalhos técnicos, como atendimento à saúde e assessoria agrícola, visavam todos os moradores, mas algumas famílias argumentavam que deveriam ser beneficiados primeiro os luteranos (p. 426). E quando, nas primeiras eleições após o período ditatorial, ocorreu envolvimento político por parte da equipe vinculada aos projetos sociais dos religiosos, a diretoria do centro comunitário decidiu que não seriam mais feitas reuniões partidárias no centro (p. 237).

Especialistas na Migração transcende o âmbito religioso, porque os agentes religiosos analisados não estavam apenas em uma frente de expansão religiosa; estavam em uma nevrálgica frente de expansão do país, e se defrontaram com questões urgentes: migrantes, comunidades indígenas, posseiros, grandes proprietários de terras e seus jagunços, movimentos sociais, isso num período que acompanha a ditadura e a abertura do país, com seus contextos específicos no Norte do país.

O livro, portanto, tem inúmeras “frentes” de debate, e o saldo que fica da leitura é de um texto denso, que merece inúmeras palavras-chave de identificação bibliográfica, pois seu conteúdo é muito amplo, tratando de Igreja, economia, cultura, sociologia, história…


Referência

LINK, Rogério Sávio. Especialistas na Migração: Luteranos na Amazônia (1967-1997). São Leopoldo: Editora Karywa, 2015.

Resenhista

Regina Weber – Docente do Programa de Pós-graduação e da Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: regina.weber@ufrgs.br


Referências desta Resenha

LINK, Rogério Sávio. Especialistas na Migração: Luteranos na Amazônia (1967-1997). São Leopoldo: Editora Karywa, 2015. Resenha de: WEBER, Regina. Fronteiras: Revista de História. Dourados, v.18, n.31, p.488-492, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

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