Espaços da ciência no Brasil: 1800-1930 | Maria Amélia M. Dantes

Organizado pela professora Maria Amélia M. Dantes, docente do programa de pós-graduação em história social da Universidade de São Paulo (USP), a presente publicação abrange sete estudos que integraram um amplo projeto, financiado parcialmente pelo CNPq, no qual foram analisadas a constituição de diferentes instituições científicas brasileiras, seus modelos organizacionais e práticas estabelecidas.

Como resultado deste projeto, além dos trabalhos de pós-graduação relacionados, surge esta publicação que deverá ocupar lugar importante na historiografia sobre as atividades científicas realizadas no país.

O livro foi dividido em duas partes: Espaços Institucionais no Brasil Império e Espaços Institucionais na Primeira República. Estes dois blocos agrupam avaliações sobre as características não apenas inaugurais, como também estruturais das instituições científicas escolhidas como objetos de estudo. Deste ponto nasce a meu ver a principal qualidade do trabalho, sua unidade conceitual.

Partindo desta unidade é possível perceber que os temas discutidos podem ser agrupados em dois núcleos, primeiro, o dos textos que transitam na esfera da história da saúde e que avaliam a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o Serviço Sanitário de São Paulo e o Instituto Butantan, também de São Paulo. Segundo, o núcleo de textos que se aproximam da história das ciências naturais e que têm como tema o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional e a Comissão Geológica do Império, e ainda transitando entre eles o último texto, sobre a Academia Brasileira de Ciências.

Dantes aponta duas questões iniciais que nos auxiliam a qualificar a base comum dos trabalhos apresentados. Inicialmente mostra o combate à idéia bastante disseminada na nossa historiografia de que, antes da criação das primeiras universidades brasileiras, principalmente da USP em 1934, havia apenas uma “pré-história” da ciência no Brasil, ou seja, todas as atividades iniciadas antes deste período foram apenas iniciativas esporádicas e conjunturais, idealizadas por indivíduos geniais e por eles conduzidas (p. 19).

Em segundo lugar, avalia contrariamente as noções de que estas experiências pontuais teriam demonstrado que não havia grupos sociais interessados que apoiassem as atividades científicas aqui desenvolvidas, implicando a idéia de que o Brasil estaria em desacordo com movimentos científicos mundiais, o que também corresponderia, mais tarde, à pequena expressão do país no contexto das nações desenvolvidas.

Por mais que estas duas proposições tenham a aparência de questões já ultrapassadas pelos estudos históricos recentes, elas guardam ainda força e importância para impulsionar muitos projetos, quer sobre atividades científicas realizadas fora do eixo Rio — São Paulo, quer no debate em torno de pontos já estabelecidos na historiografia, principalmente em trabalhos que não transitam na órbita dos estudos sobre história das ciências e que formam o grosso do material utilizado pelos historiadores de maneira geral.

Para exemplificar a gama de elementos que estas proposições contêm é interessante lembrar que nem mesmo a história da ciência em seu conjunto escapa a este tipo de conceituação, que delega ao tempo atualizado a responsabilidade retrospectiva pelos aconteci-mentos. Como comenta, entre outros, Serres (1996, p. 187):

Vivemos e pensamos numa civilização munida de uma Antiguidade … . Num dado momento, tudo se detém e recomeçamos a contar a partir do zero, atribuindo números negativos ao segmento precedente. Deste modo, os chineses não contam, nem os hindus. Pensamos e vivemos a história pelas rupturas de que fala. O mesmo esquema aplica-se à ciência: a sua pré-história, no momento em que não existia, precede, como um arcaísmo doravante escondido, o momento em que, de repente, ela começa. Quantos filósofos se servem desse efeito? Antes dos gregos ninguém pensava, depois deu-se o milagre grego, que inventou tudo, ciência, filosofia.

Uma terceira questão importante presente no livro diz respeito à pertinência de se pensar a história institucional das ciências integrada à natureza do conhecimento científico (p. 13). Maria Amélia Dantes aponta que as instituições científicas implantam não somente as práticas pelas quais são responsáveis, como também influenciam os conhecimentos produzidos. Isto soma aos estudos institucionais a responsabilidade de avaliar socialmente os produtos do trabalho científico, orientação que terá também conseqüência na metodologia adotada no livro.

A ciência como uma formação cultural entre outras (Serres, 1996, p. 191) contribui para a leitura que podemos fazer das nossas sociedades. A partir das relações que estabelecemos com os objetos da ciência, alteramos nossas próprias relações e também as relações que havíamos criado com aqueles objetos.

Esta percepção, nada óbvia, está presente na abordagem adotada pelos autores, pois, ao meu ver, estes conseguem conjugar estudos de caso delimitados por seus interesses pessoais de pesquisa com questões histórico-culturais mais amplas, tentando articular àquelas questões as pressões socioideológicas que competiram na organização das instituições científicas estudadas.

De modo geral, os autores em seus artigos relacionam os diferentes projetos científicos identificados nas instituições com propostas para a organização da sociedade, demonstrando a possibilidade de avaliar também, através destas mesmas atividades científicas, diferentes idéias de nação que despontavam naquele período.1

Este tipo de encaminhamento tem como ponto de inflexão permanente a preocupação em identificar quais práticas científicas se estabeleceram no país e como estas tradições foram sendo reorgani-zadas ao mesmo tempo que se reorganizavam também a disposição e os objetivos mais gerais da sociedade. Alinhavam-se a estas questões as origens, sobretudo européias, dos conhecimentos científicos e suas transformações ao se estabelecerem no Brasil.

No caso dos artigos do grupo identificado como das ciências naturais, localizados no período do Brasil Império, o fio condutor que vai permitir a avaliação das relações estabelecidas entre a disciplina e a produção de conhecimento é a idéia de exploração da natureza, no contexto da transformação do país de uma colônia portuguesa a país independente.

Por este viés podem ser vistos os artigos de Heloísa M. B. Domingues sobre o Jardim Botânico e a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional. Neles a autora trata, no primeiro caso, do caráter utilitário da botânica para a exploração agrícola da colônia e, no segundo, da criação de associações que valorizavam o estudo das ciências naturais e dos conhecimentos científicos obtidos.

Como diz Heloísa Domingues, referindo-se à Sociedade Auxiliadora: “A grande valorização das ciências naturais na instituição deveu-se ao caráter pragmático que haviam adquirido os conhecimentos. A esta valorização respondia a sua organização estrutural … . Porém, os conhecimentos que projetavam aplicar ou que aplicavam, em cada lugar, guardavam as originalidades próprias das demandas sociopolíticas locais” (p. 106).

Pontos semelhantes vão ser destacados por Silvia Fernanda de M. Figuerôa, quando trata da criação da Comissão Geológica do Império do Brasil. Ao apontar para a especificidade do trabalho exclusivo com as ciências geológicas, movimento que se alinhava com um formato de “desenvolvimento institucional” corrente no mundo, as atividades da comissão correspondiam a uma intervenção da ciência com o fim de produzir conhecimento sistemático sobre o território brasileiro, especialmente relacionado ao conhecimento que pudesse ser direcionado ao trabalho agrícola, proposta que na opinião da autora adequava o quadro econômico brasileiro às necessidades do período (p. 117).

Ao lado dos diferentes motivos e circunstâncias que serviram para o encerramento das atividades destas instituições, e que em cada um dos casos vai refletir (no sentido de causar reflexão, examinar) o modo como estas atividades correspondiam às novas faces da sociedade, pode-se destacar também como ponto de discussão por parte das autoras os esforços empreendidos pela produção de conhecimento “puro” em cada área envolvida (botânica, química, geologia, mineralogia).

Este mesmo tipo de associação entre produção de conhecimento não aplicado (“puro”) e instituição científica é discutido mais especifi-camente no texto sobre a Academia Brasileira de Ciências, de José Jerônimo de Alencar Alves, que finaliza o livro. Embora localizadas no século XX, as questões apontadas pelo autor estabelecem um interessante ponto de contato com os textos anteriores, o que também vai se dar com os artigos sobre saúde.

O movimento mais imediato deste autor foi enfatizar a avaliação dos trabalhos científicos que foram discutidos e ratificados pelos membros da Academia: “Importa para a presente análise saber o que se apresentava com estatuto científico no seu próprio contexto. Desse modo, a atividade científica pode ser observada deixando transparecer sua historicidade, tal como seus objetos e métodos de pesquisa, os fins a que se destinava, o modo de legitimação e o papel no contexto social em que se inscrevia” (p. 186).

A opção pela “ciência pura” que caracterizou a implantação da Academia de Ciências, à primeira vista poderia parecer apenas uma resposta ao excessivo utilitarismo das aplicações práticas enfatizadas em diferentes áreas científicas naquele momento. Ao mesmo tempo que este foi o aspecto principal das atividades da Academia, foi também uma busca por parte de alguns cientistas em ultrapassar a hegemonia de determinadas áreas tradicionais na ordem estabelecida.

Esta associação com representantes de áreas científicas em expansão, como a física, a química, a matemática e a fisiologia, garantiu que a Academia fosse um espaço de transformações. Mesmo demarcando pontos de contato com atividades que apontavam para a utilização prática do conhecimento, a Academia buscava alinhar-se a uma nova ordem científica internacional e estabelecer seus próprios espaços de legitimação.

Movimento similar se verificava em outros países do Ocidente e proporcionava que uma certa “expectativa de progresso” (p. 191) desse contornos modernizadores às práticas realizadas no país, sendo avaliadas pelo autor especialmente a fisiologia experimental e a teoria da relatividade.

  1. Jerônimo Alves parte da definição de instituição, com o sentido de instituir ou implantar uma atividade científica, para pensar também o significado que o estabelecimento de diferentes noções de ciência podem ter através do tempo, análise que permite ao leitor focalizar a questão da natureza do conhecimento científico como termo de ligação entre história e ciência.

Este mesmo procedimento será o ponto de partida que os artigos sobre saúde trazem para discussão, formando nexo com os demais artigos do livro.

A principal referência no texto sobre a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de Luiz Otávio Ferreira, Maria Rachel F. Fonseca e Flávio C. Edler, são as alterações e rupturas ocorridas no entendimento do que seria a própria ciência médica no século XIX, através das novas noções de “medicalização do hospital … (e) de uma nova medicina de laboratório” (p. 59), que para os autores aparecem como fundamentais para a compreensão dos processos de criação de escolas médicas e de seu desenvolvimento posterior.

A partir das noções de alteração na produção de conhecimento médico em toda sua extensão, processo discutido a partir da medicina européia, os autores reforçam que as mudanças nas práticas de saúde que caracterizaram a medicina naquele período e as diversas alterações que sofreram as orientações teóricas, preventivas ou terapêuticas no campo médico, foram responsáveis também por modificações na estrutura do ensino, no Brasil influenciadas principalmente pela medicina de origem francesa.

Segundo os autores: “A diferenciação e complementaridade das especialidades clínicas emergentes, relacionadas a novos objetos — certas patologias, áreas limitadas do organismo humano e faixas etárias específicas — estiveram estreitamente relacionadas à mudança das condições institucionais sob as quais se exerciam a formação e a prática médicas” (p. 60).

No Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina passou a ser um lugar em que se concentravam esforços na tentativa de encontrar soluções para as graves questões sanitárias que caracterizavam o país, questões estas diretamente relacionadas à produção de novos conhecimentos, processo aliado ao uso cada vez mais amplo do laboratório como espaço de legitimação da ciência.

Em São Paulo, por outro lado, embora em período diferente, a avaliação sobre as transformações do conhecimento relacionado à solução de problemas de saúde vai se fazer pela atuação do Serviço Sanitário, como apontam Marta de Almeida e Maria Amélia M. Dantes.

O foco principal do artigo é a análise do Instituto Bacteriológico pertencente ao Serviço Sanitário, sob a direção de Adolfo Lutz. Primeiro como centro de diagnósticos das principais doenças que caracterizavam a sociedade paulista no período e, depois, como centro de pesquisa microbiológica sobre estas mesmas doenças.

Legitimando uma nova área, a da microbiologia, esta instituição serviu de apoio para a configuração de políticas de saúde e para a legitimação cada vez maior dos médicos, como pertencentes a uma comunidade científica: “Aos poucos, as concepções bacteriológicas, apresentadas ao grande público como cientificamente comprovadas, foram se impondo e passaram a constituir um novo consenso orientador das práticas médicas” (p. 150).

Aqui as autoras analisam também a imprensa diária, no caso o jornal O Estado de S. Paulo, para ampliar o entendimento sobre a visão de saúde pública e microbiologia recebida pelo público mais geral, discutindo a importância do periódico como mais um espaço de legitimação das novas práticas microbiológicas em discussão.

No último artigo deste conjunto, também pensando os espaços do Serviço Sanitário, Luiz Antonio Teixeira analisa o Instituto Butantan, procurando aproximar uma instituição especializada na solução de problemas de saúde com a questão da produção de conhecimento, tendo como enfoque uma administração específica, no caso de Arthur Neiva.

Para o autor, o desenvolvimento de pesquisas e o reforço especial em algumas áreas, assim como a adoção e implantação de “novos modelos” de assistência e intervenção nas questões de saúde realizadas pelo Estado, geraram uma ruptura que transformou as funções desenvolvidas pelo Instituto Butantan durante a sua trajetória, principalmente no que concernia à produção e comercialização de produtos biológicos: “A partir daquele momento, o Butantan deveria se transformar numa instituição apta a contribuir para a implantação e manutenção das novas atividades do Serviço Sanitário não mais de acordo com necessidades epidemiológicas episódicas, mas sim de forma permanente e especializada” (p. 170).

Mais do que apenas avaliar as questões ligadas à reforma sanitária no que dizia respeito à imigração e à interiorização das ações de saúde, o autor enfatiza principalmente a expansão das atividades do Butantan em conseqüência da adoção de diferentes modelos de assistência e ao início da preocupação com doenças endêmicas, não apenas com epidêmicas como havia sido mais enfatizado até aquele momento.

Ao fim da leitura deste livro, é possível perceber que as diversas formas de organização que assumiram as atividades científicas no Brasil, em diferentes disciplinas e nos períodos analisados, apontam para o redimensionamento da idéia de ciência como uma atividade que se bastaria a si mesma.

Nem em sua descrição nem em suas práticas, as ciências estão separadas do ambiente social, cultural ou econômico que as cercam. Esta conclusão, também amplamente debatida por diversos estudiosos das ciências (por exemplo, Latour, 1989) me parece importante por ser um conceito que permite aos estudos realizados no Brasil responder a questões capitais de sua história e por estabelecer pontos de contato entre as perspectivas atuais de planejamento e organização das ciências no país.

Podemos perceber que houve um esforço conjunto em responder, através dos trabalhos que se consubstanciaram neste livro, àquelas duas questões iniciais apontadas na introdução. Primeiro de que existiu sim uma história específica das atividades científicas brasileiras ainda no período do império e que estas se constituíram de tradições forjadas no espaço nacional a partir de diversos matizes.

Estas atividades cumpriram assim funções próprias do campo científico na sociedade, de acordo com o que se entendia como ciência em cada período, como bem aponta J. Jerônimo Alves: “Importa para a presente análise saber o que se apresentava com estatuto científico no seu próprio contexto” (p. 186).

Além disso, há a meu ver uma inquietação que dinamiza os estudos sobre práticas científicas e que este livro é capaz de ampliar, que seria uma proposta para se pensar a ciência praticada na sociedade atual, a partir dos estudos institucionais sobre história das ciências, pois se “Um projeto de educação sempre traz a marca de uma interpretação do homem e da sociedade. De qual interpretação se trata, hoje?” (Lefort, 1999, p. 209).

Acredito que com os esforços deste trabalho de tentar compreender de onde partiram e para onde seguiram algumas das ciências hoje importantes no Brasil, este livro contribui em muito também para a nossa formação acadêmica em geral, o que, sem sombra de dúvida, demarca um ganho tanto para especialistas da história das ciências como para os leitores interessados em história tout court.

Nota

1 Esta discussão pode ser acompanhada em outros autores. Ver especialmente Luca (1999, pp. 185-238). Também é possíivel consultar sobre as especialidades em questão: Gualtieri (1994); Hochman (1998); Santana (2001); Schwartcz (1993).

Referências

GUALTIERI, Regina Cândida E. 1994 O Instituto Butantan e a saúde pública (São Paulo, 1901 ¾ 1927). Dissertação de mestrado, São Paulo, Faculdade de Educação da USP.         [ Links ]

HOCHMAN, Gilberto 1998 A era do saneamento. São Paulo, Hucitec/Anpocs.         [ Links ]

LATOUr, Bruno 1989 ‘Qui combat? Les hommes ou les choses? Pasteur e Pochet: hétérogenàse de l’histoire des sciences’. Em Michael Serres, Éleménts d’histoire des sicences. Paris, Bordas, pp. 423-46.         [ Links ]

LEFORT, Claude 1999 ‘Formação e autoridade: a educação humanista’. Em Desafios da escrita política. São Paulo, Discurso Editorial, pp. 207-23.         [ Links ]

SANTANA, José Carlos B. De 2001 Ciência e arte: Euclides da Cunha e as ciências naturais. São Paulo/Feira de Santana, Hucitec/Uefs.         [ Links ]

SCHWARCZ, Lilia K. M. 1993 O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questões raciais no Brasil: 1870 – 1930. São Paulo, Companhia das Letras.         [ Links ]

SERRES, Michel 1996 Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo (conversas com Bruno Latour). Lisboa, Instituto Piaget.         [ Links ]

LUCA Tânia Regina de 1999 A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. São Paulo, Fundação Editora da Unesp.         [ Links ]


Resenhista

Márcia Regina Barros da Silva – Pesquisadora do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde Universidade de São Paulo (USP). E-mail: mbarros.cehfi@epm.br


Referências desta Resenha

DANTES, Maria Amélia M. (Org.). Espaços da ciência no Brasil: 1800-1930. Rio de janeiro: Editora Fiocruz, 2001. Resenha de: SILVA, Márcia Regina Barros da. Desafios da história das ciências. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.9, n.3, set./dez. 2002. Acessar publicação original [DR]

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