Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino – AQUINO (SY)

AQUINO, Santo Tomás de. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Tradução e introdução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. Resenha de: BELLO, Joathas Soares. Synesis, Petrópolis, v. 7, n.1, p.155-158, jan./jun., 2015.

Os Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino, publicados pela Editora Vozes, trazem dois textos fundamentais para a compreensão da questão política no Aquinate: as “Questões sobre a lei na Suma Teológica” e o Do reino ou do governo dos príncipes ao rei de Chipre. A tradução dos dois textos, feita por Francisco Benjamin de Souza Neto, está baseada no texto crítico da edição leonina sob sua forma mais recente. O tradutor nos brindou, ainda, com uma introdução, na qual apresenta uma síntese dos textos.

Para Tomás de Aquino, as reflexão e prática política e jurídica são inseparáveis da ética: o exercício do governo, as relações sociais, as leis, o bem comum, devem estar em harmonia com o que é considerado bom e justo para o indivíduo – ao contrário da ciência política moderna, inaugurada por Maquiavel, em que a prática política é considerada autônoma, independente da ética individual. A ética tomasiana, por sua vez, enquanto fundamentação do agir formalmente ético, é inseparável da moral, enquanto conteúdo concreto em que a forma da ética se realiza – ao contrário da concepção formalista inaugurada por Kant, que acabou por estabelecer uma dicotomia entre a forma do agir ético e a moral como conjunto de costumes ou leis que variam de povo para povo e que, portanto, é múltipla e não universal. De outra parte, ética/moral têm uma fundamentação metafísica, estão ancoradas no ser mesmo da pessoa humana, na sua natureza ou essência, naquilo que a tradição clássica chamou de Lei (moral) natural, que não deve ser entendida como alguma espécie de dado “espontâneo” ou meramente biológico, mas como a leitura ou interpretação que a razão humana faz das inclinações naturais e consequente promulgação dos deveres/direitos daí decorrentes –“natureza” aqui tem o sentido clássico  anterior à separação entre natureza e espírito ou natureza e história ou natureza e cultura, etc.; também ou principalmente a razão constitui a natureza da pessoa humana. Deve-se dizer, ainda, que tal Lei natural é um reflexo do que Santo Tomás chamou de Lei Eterna, isto é, a Sabedoria eterna de Deus, pela qual este pensou e criou suas criaturas –a qual não deve ser confundida com os dez mandamentos ou Lei divina positiva ou revelada para auxiliar o homem a conhecer seus deveres morais–, Sabedoria esta que está espelhada no próprio âmago da criação. Em síntese, pode-se dizer que, ao estudarmos política em Santo Tomás, estudamos conjuntamente o direito, a ética, a moral, a metafísica (antropologia filosófica e teologia natural), e aludimos à teologia moral. Como é característico no pensamento tomasiano, a realidade –no caso, a realidade política– é compreendida nas suas múltiplas relações ou conexões com outros âmbitos do real, sem os quais não chegaria a ser entendida de modo mais pleno.

O homem é um “animal sociável e político”: desprovido de instrumentos que lhe garantam automaticamente a sobrevivência, mas dotado de razão para buscar os meios da existência, não pode, sozinho, encontrar tudo o que necessita, sendo-lhe natural, portanto, a vida social –ao contrário do que diria a filosofia política de Thomas Hobbes, segundo o qual o homem, no “estado de natureza”, é “o lobo do homem”, e o Estado é um artifício, o “Leviatã” que, por meio da força, impõe a “paz”. E se o homem não pode viver sua vida a não ser em sociedade, é preciso sobrepor aos bens particulares o bem comum de todos. A política é a arte de dirigir a multidão à consecução do bem comum –e não meramente um jogo de luta pelo poder, como a modernidade passaria a considerar–, para a qual é imprescindível a presença de um governante, que saiba harmonizar os interesses presentes na sociedade, subordinando-os aos interesses mais gerais.

Quando o governante busca seu bem privado, é injusto e perverso o governo: tirania (governo injusto de um só), oligarquia (governo injusto de alguns poucos ricos) e “democracia” (governo injusto de muitos) –não há que se entender, aqui, a palavra no sentido moderno, mas como oposição à politeia, como “demagogia”. Os governos justos são: a politia(transliteração latina de politeia) ou governo da multidão, a aristocracia ou governo de poucos, porém virtuosos (os “melhores”), e a realeza ou monarquia, isto é, o governo de um só, o rei. No De Regno, Tomás diz preferir o governo do rei para realizar o objetivo primordial da sociedade, que é a unidade da paz, precisamente porque considera que um só tem mais condições de evitar a dissensão; mas no Tratado da Lei se inclina a um governo misto, que combina os três regimes justos: “Esta é a organização política mais perfeita, bem mesclada do reino, enquanto um preside; da aristocracia, enquanto muitos exercem o principado segundo a virtude; e da democracia, isto é, do poder do povo, porque dentre os populares podem ser eleitos os príncipes e ao povo pertence a eleição dos príncipes” (S.Th I-II, q105, a2).

O fundamental, no governo, é a orientação da sociedade ao bem comum; o governante não pode deliberar sobre este bem comum, mas tão somente sobre os meios para alcançá-lo. Nesse sentido, Tomás não veria com bons olhos uma democracia que se entendesse, não como método que faz a multidão participar da eleição dos meios ou estratégias políticas, mas como fim do próprio processo político, como se a noção do bem comum pudesse ser constantemente refeita por novas demandas.

Entre os regimes injustos, a “democracia” é o menos pior, porque os muitos governantes se atrapalham, o que minimiza os estragos do regime; o pior é a tirania, pois se busca somente o bem de um. Os tiranos se esmeram para que seus súditos não sejam virtuosos ou magnânimos, perdendo assim a capacidade de reagir a seu regime; semeiam discórdias entre os súditos, para que não haja entendimento entre eles e assim sua tirania possa se exercer mais facilmente. Tomás reconhece à sociedade o direito de destituir o governante instituído ou lhe refrear o poder, caso dele abuse tiranicamente. Ao tirano, cujo governo só se sustenta pelo temor, Deus não permite que reine por muito tempo.

Cabe destacar, aqui, dois princípios estabelecidos no Tratado da Lei, para compreender este “princípio da rebelião”: o primeiro, de que uma lei humana é injusta, se contradiz a Lei natural (S.Th I-II, q95, a2); e o segundo, de que a autoridade política pertence ao povo (ou a seus representantes): “Ora, ordenar algo para o bem comum compete a toda a multidão ou a alguém a quem cabe gerir fazendo as vezes de toda a multidão. Portanto, estabelecer a lei pertence a toda a multidão ou à pessoa pública à qual compete cuidar de toda a multidão” (S.Th I-II, q90, a3) –vale à pena mencionar o seguinte comentário de Domingo de Soto, tomista da Escola de Salamanca: “os reis e os príncipes são criados pelo povo, aos quais [(reis e príncipes), o povo] transpassa seu império e potestade” (Sobre a justiça e o direito). Este segundo princípio não implica menoscabo da ideia bíblica de que “todo poder vem de Deus”, precisamente porque a Lei natural é uma participação na Lei eterna, e a autoridade humana é uma participação no domínio de Deus sobre os homens. A política não significa uma ordem humana independente da ordem cósmica, mas inserida na mesma, e com isso podemos entender melhor a relação entre a vida política e o sentido religioso da vida humana segundo Santo Tomás.

O fim da sociedade humana é a vida virtuosa, mas o fim último do homem é a fruição divina, assim o fim último da multidão também é chegar à fruição divina; daí que os governantes humanos devam estar sujeitos à Igreja, que realiza a obra de Cristo, de conduzir os homens à bem-aventurança eterna –trata-se, não de confusão entre Estado e Igreja (teocracia), mas de uma distinção sem separação, com uma subordinação do Estado, não nos assuntos eminentemente políticos, mas naquilo que toca à salvação dos homens.

Para finalizar, são três as condições exigidas para uma boa vida da multidão: a unidade da paz, o procedimento virtuoso dos cidadãos (isto é, a ação em conformidade com o bem moral que se expressa na Lei natural), e abundância do necessário para o viver bem.

Temos aqui uma teoria política inexequível nos dias atuais? Talvez… Mas se trata de uma teoria necessária para mitigar os danos do “realismo” político maquiaveliano, evidenciando que a prática política deve se fazer na busca do bem comum, ainda que o conteúdo do mesmo já não seja tão evidente para nós como fora para Tomás, desde a perspectiva clássica e cristã por ele assumida.

Referências

TOMÁS DE AQUINO (SANTO). Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Tradução e introdução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Editora Vozes, 2011 (Coleção Textos Filosóficos).

Joathas Soares Bello – Faculdade São Bento do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Filosofia pela Universidade de Navarra, Espanha. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0908316222954469.  E-mail: joathasbello@gmail.com

Acessar publicação original

[DR]

 

Itamar Freitas

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